CORPO: Som e Movimento – Redescobrindo Brinquedos Cantados na Africanidade Brasileira
Até o século XIX, as brincadeiras das crianças eram muito limitadas pela rigidez patriarcal imposta ao comportamento infantil, e porque os infantes eram vistos como mini adultos. Freyre (2005) conta que muitas crianças brancas eram criadas pelas escravas africanas juntamente com seus filhos negros, os quais eram mais habilidosos com a natureza, mais dados a traquinagens e a criatividade devido a sua condição servil.
Outro aspecto característico das brincadeiras infantis no tempo colonial brasileiro é que as crianças, ao acompanharem seus pais no labor cotidiano da casa grande ou do jeito, repetiam em suas brincadeiras estes afazeres e também o contexto de violência vivido na época (Freyre, 2005).
Nos brinquedos cantados, encontra-se o canto, a poesia, a dança, a brincadeira, o compartilhar, devido à simplicidade musical, riqueza simbólica e ludicidade peculiar; as vivências através destes elementos lúdicos conquistam a criança como aquilo que é próprio do seu tempo.
Os termos brincar e jogar são referenciados como sinônimos por Cascudo (1988). Nos principais idiomas internacionais (Inglês, Francês, Alemão e Espanhol), brincar e jogar também servem para definir atividades artísticas como a interpretação teatral ou musical (Santa Roza, 1993). Na língua portuguesa, o termo “brincar” vem do latim vinculum e significa laço, união. No entanto, é o termo lúdico da nossa língua, também proveniente do latim “ludus”, que melhor abrange e define as atividades artísticas, culturais, brincadeiras e jogos.
Passando para o lado prático, vamos brincar com quatro exemplos curiosos do cancioneiro infantil brasileiro. O primeiro se chama “Uma, duas angolinhas”, é um brinquedo cantado tipo parlenda em roda, com as crianças sentadas, e um solista ao meio dando beliscos nas mãos de cada colega enquanto cantam as quadrinhas:
Aquele que tirar a mão por último, Vai levar um be-lis-cão. Além do beliscão refletindo a ideia da galinha d’angola beliscando as mãos de cada participante, a protagonista da música, uma ave, é um dos mais importantes mitos iorubanos sobre a origem da criação do mundo; conta Lopes (2004) que “a galinha d’angola ciscou sobre as águas iniciais uma porção de terra e a espalhou por todas as direções, fazendo nascer terra firme”. Por este mito e outras razões, ela também é considerada a primeira iaô e é o animal mais importante dentro da tradição dos orixás.
No divertido brinquedo cantado “O Saci Pererê”, as crianças em pé na roda devem cantar e imitar as habilidades do saci mostradas na música:
O Saci Pererê, pula numa perna só,
Ele toca o tambor, toca como ele só.
O Saci Pererê, pula numa perna só,
Ele toca o pandeiro, toca como ele só. (…)
Esta brincadeira é aberta a improvisações na letra, onde se podem colocar quantos instrumentos quiser para o Saci tocar e, consequentemente, para as crianças imitarem. O Saci Pererê, elemento tradicional no nosso folclore, aproxima-se de várias figuras da mítica iorubana como: Exu (em suas traquinagens); Arôni (duende iorubano de uma perna só, ligado a Ossãim, e que vive nas matas); e ainda é referenciado a uma palavra do campo semântico da magia e do sortilégio em ioruba “Ásasí”, conforme assinalado em Lopes (2004 e 2006).
Outro brinquedo cantado de significado muito expressivo é o Tangolomango; as crianças brincam em roda também para contagem de números decrescentes, no qual um participante deve deixar a roda ao final de cada verso. Eis algumas quadras desta cantiga:
Eram dez irmãs numa casa,
Uma delas foi tocar o fole,
Deu um Tangolomango nela,
E das dez ficaram nove.
Eram nove irmãs numa casa,
Uma delas foi fazer biscoito,
Deu um Tangolomango nela,
E das nove ficaram oito.
Eram oito irmãs numa casa,
Uma delas foi amolar canivete,
Deu um Tangolomango nela,
E das oito ficaram sete. (…)
A simbologia contida nesta brincadeira, onde a cada momento uma criança deixa de fazer parte do grupo acometida pelo Tangolomango, vai de encontro às diversas referências a esta palavra como “Uma doença atribuída a feitiçaria, bruxedo, azar, infelicidade, morte” (LOPES, 2004). Nota-se que este assunto é bastante difícil para o entendimento das crianças e carregado de discriminação e preconceito racial, social, entre outros.
Como é de praxe, vamos terminar em samba com uma brincadeira muito conhecida no sudeste brasileiro, onde as crianças finalizam a música sambando conjuntamente na roda – como fazem os adultos.
Samba Lelê tá doente,
Tá com a cabeça quebrada,
Samba Lelê precisava,
É de umas boas lambadas,
Samba, samba, samba ô Lelê,
Samba, samba, samba ô Lalá. (bis)
Nosso velho conhecido samba não poderia ficar de fora das brincadeiras das crianças. Samba é um nome genérico para várias danças brasileiras e para a própria música; contudo, foi registrado em Angola o verbo samba querendo dizer “cabriolar, brincar, divertir-se”; é remetido também à palavra semba de origem Bantu, significando o mesmo que umbigada. A propósito, “Lê” é o nome do menor dos três atabaques da orquestra ritual dos candomblés jeje-nagô (LOPES, 2004). As crianças se divertem aprendendo e ensinando a dança do samba umas às outras. Este parece ser o maior objetivo dos brinquedos cantados: transmitir a cultura pela oralidade e pela corporeidade, favorecendo a vivência, a elaboração e o desenvolvimento da criança.
Buscamos neste trabalho retomar um pouco o tema da africanidade permeada em nossa cultura desde a infância. Há centenas de outros exemplos, mas precisaríamos de um espaço específico para mostrá-los.
Acredito que dar à criança a oportunidade de brincar, cantar e dançar é investir num caminho de busca da essência do ato, da mente, da voz e do pertencimento, inventando o prazer de ser feliz! Para ambientar o final deste artigo, deixo alguns versos de uma música popular brasileira do compositor Gonzaguinha que é um exemplo de ciranda:
REDESCOBRIR
Como se fora brincadeira de roda (memória)
Jogo do trabalho na dança das mãos (macias)
O suor dos corpos na canção da vida (história)
O suor da vida no calor de irmãos (magia) (…)
Referências:
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora Universo, 1988.
COSTA, Clarice Moura. O Despertar para o outro: Musicoterapia. São Paulo: Summus editorial, 1989.
FREGTMAN, Carlos Daniel. Corpo, Música e Terapia. São Paulo: Editora Cultrix Ltda, 1989.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e Senzala. 50ª edição. São Paulo: Global Editora, 2005.
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro Edições, 2004.
__________. Dicionário Escolar Afro-brasileiro. São Paulo: Selo Negro Edições, 2006.
PAIVA, Ione Maria R. Brinquedos cantados. Rio de Janeiro: Editora Sprint Ltda. 1998.
SANTA ROZA, Eliza. Quando brincar é dizer: A experiência psicanalítica na infância. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 1993.
* Por Denise Guerra
*CRÉDITOS DA AUTORA
Graduação em Musicoterapia (Conservatório Brasileiro de Música) – 1995.
Especialização em Psicomotricidade (Universidade Candido Mendes) – 2003.
Licenciatura e Bacharelado em Educação Física (Universidade Estácio de Sá) – 2004.
Especialização em Cultura Africana e Afro Brasileira (Universidade Castelo Branco) – 2007.
Trabalho de Dança e Musicoterapia com portadores de deficiência (Apae-Rio) 1996 – 2006.
Formação em Dança de Salão, Yoga, Massoterapia, Shiatsu.
Professora do Ensino Fundamental e E.J.A da rede municipal de ensino de Japeri e Queimados.
Artigo publicado em site da Argentina http://www.efdeportes.com.br 2004: A criação do clube escolar e núcleo de artes: uma nova alternativa no combate ao ócio estudantil. 2007: Preserve a sua natureza faça atividades físicas.
Artigo publicado no jornal Comunicandido – (Univ. Candido Mendes 2003): Ludomotricidade: Da espontaneidade à construção do sujeito.
Ministrou cursos no Instituto Isabel de: Recreação, Psicomotricidade, Dança.
Artigos para a revista eletrônica www.boletimEF.org 2008: A recreação na Educação Especial infantil com o portador de síndrome de down: contextualizando o desenvolvimento psicomotor 2008: Brinquedos Cantados na Psicomotricidade.
Revista África e Africanidades – Ano 2 – n. 5 – Maio. 2009 – ISSN 1983-2354
A música tem o poder de mexer com as emoções. Muitas cantigas populares são a expressão da cultura de um povo.
É bonito ver as cantigas acompanhadas por coreografias vibrantes.
Essa situação traz um momento de alegria. Mas o melhor é que nessa brincadeira as crianças se divertem e acabam também assimilando o conteúdo. Forma peculiar e espontânea de adquirir e compartilhar cultura.
Paz e felicidade,
Bruno Borges Borges
brunoborgesborges.blogspot.com
Pode sim amigo, abraço!