Logo abaixo você irá ler a resenha do livro Os Bestializados de José Murilo de Carvalho, bem como algumas informações relevantes sobre o autor. Esperamos que goste!
O Autor José Murilo de Carvalho
PhD em ciências políticas pela Universidade de Stanford, o professor José Murilo de Carvalho não se cansa com a História do Brasil. Às vésperas dos 60 anos, ele continua a ensiná-la na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em seus livros e artigos, feitos com rara combinação de pesquisas pesadas e estilo leve, dedica-se incansavelmente a provar que o passado do país ainda é o melhor instrumento para atualizar o debate nacional. Exemplo disto ocorre em “Os Bestializados”, livro objeto desta resenha, onde o autor analisa a moldura do quadro da instauração do novo regime, a República. Filtra os acontecimentos pertinentes ao processo, deixando clara a sua repulsa concernente ao descaso atribuído ao povo, o qual deveria ser um ativo partícipe do movimento, mas, na verdade, assistiu a tudo bestificado.
Os Bestializados – O Livro
Segundo Louis Couty, “O Brasil não tem povo”. O autor menciona o significado desta afirmação como o problema da cidadania, ou seja, fissuras no relacionamento entre estado, cidadão, sistema político e a própria atividade política.
Segundo Carvalho, o período de mudança de Império para a República foi bem apropriado para se clarear a questão do exercício da cidadania. Por se tratar da primeira alteração do regime político após a Independência, o regime republicano tinha como objetivo aproximar mais o povo das atividades políticas, conforme desejavam seus propagandistas mais radicais, como Silva Jardim e Lopes Trovão. Embora não tenha havido participação do povo na proclamação da república, esperava-se que este despertasse na população excluída a vontade de participar ativamente do novo regime.
O Rio de Janeiro, por ser a capital política e administrativa, estava em plenas condições de ser o melhor terreno para o desenvolvimento da cidadania. O comportamento político de sua população refletia no resto do país, por se tornar o centro da vida política nacional. O autor se deterá em seus estudos na descrição desta cidade, no início da República, mostrando todas as transformações sociais, políticas e culturais que ocorreram, como também como os cidadãos exerciam o seu direito de cidadania, através da participação eleitoral. Para saber mais sobre a história do Brasil, você pode conferir o artigo sobre O Descobrimento do Brasil.
Os primeiros dez anos do regime republicano foram os mais conturbados. Palco de grandes dicotomias nos aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais. A tentativa de explicar tais mudanças se baseia no impacto sofrido pela população com a implantação do novo regime, que pretendia criar uma política comunitária, embasada na opinião pública. A expectativa dessas transformações e suas dificuldades para implantá-la refletiu fortemente sobre as novas realidades, expandindo-as rapidamente. A população se defrontou pela primeira vez como participantes dos problemas da cidade e do país. Esta nova consciência e as consequências que gerava caracterizavam o Rio de Janeiro da primeira década republicana.
A primeira alteração quantitativa foi de natureza demográfica. Houve um êxodo para a cidade, provocado pela abolição, que lançou o restante da mão de obra escrava no mercado de trabalho livre, aumentando o número de subempregados e desempregados e aumentando a imigração estrangeira, em especial os portugueses, que vinham da zona cafeeira.
A segunda alteração foi o desequilíbrio entre os sexos; havia predominância do sexo masculino. Entre os estrangeiros, os homens eram mais que o dobro das mulheres. Os casamentos entre os brancos eram de apenas 26% e reduziam para 12,5% entre os negros. Este fator gerava um número bem maior de solteiros em relação ao número de famílias regularizadas.
A terceira consequência deste rápido crescimento demográfico foi o acúmulo de pessoas em trabalhos mal remunerados ou que não tinham uma ocupação definida. Esta população poderia ser comparada às classes perigosas, as quais eram referidas na primeira metade do século XIX, como: ladrões, prostitutas, malandros, desertores do Exército, da Marinha e dos navios estrangeiros, ciganos, ambulantes, etc. Acumulava-se a isso a precária infraestrutura, no que diz respeito ao abastecimento de água, de saneamento e de higiene, tornando o ambiente propenso ao surgimento de várias epidemias, como aconteceu no ano de 1891, quando houve um surto combinado de varíola, febre amarela, malária e tuberculose. Apesar disto, houvera anos antes uma postura municipal que tornava obrigatória a vacina.
Já no lado econômico-financeiro da nação, as consequências também se mostravam preocupantes. O autor cita que “para aplacar os cafeicultores, especialmente os do estado do Rio, e de atender uma demanda real de moeda para o pagamento de salários, o Governo Imperial começou a emitir dinheiro…”. Isto deu origem a uma “febre especulativa” associada à oscilação do câmbio, que “fazia e desfazia milionários” da noite para o dia. Seguiu-se a isso um encarecimento dos produtos importados, aumento de seu consumo por parte dos recém-ricos e uma inflação generalizada, gerando um considerável aumento do custo de vida. Esse aumento ainda era complicado em virtude da imigração, ampliando a mão de obra e tornando mais acirrada a disputa pelas poucas vagas disponíveis no mercado de trabalho. Essa situação foi a mola impulsionadora da revolta do movimento jacobino, segundo o autor.
Para este, é imprescindível a menção da mutação ocorrida no palco das ideias e das mentalidades. A República não conseguiu produzir ideias próprias, antes incorporou várias vertentes do pensamento europeu, como o liberalismo e o Positivismo, vindo a reboque outras como: Socialismo e Anarquismo. Entre as elites, houve o sentimento de liberdade, que atingiu o mundo das ideias, sentimentos, atitudes e valores.
Segundo o autor, essa fase de mutação da Cidade do Rio de Janeiro alicerçou-se no modelo europeu. Com raras exceções, as figuras pensantes, os literatos, desejavam viver em Paris, que, para eles, era o epicentro da arte. Queriam até morrer em Paris! Até o próprio esquema de transformação do Rio em uma cidade que não causasse vergonha aos “gringos” seguia um modelo estritamente europeu. As leis restritivas que tinham sua direção extremamente voltada para a classe negra e os desordeiros, como se classificavam os “capoeiras”, os ébrios, as prostitutas, propensos a revoltados contra o novo regime, e assim por dizer, monarquistas.
Desta maneira, segundo o autor, os republicanos tinham uma parada dura pela frente, ou seja, governavam uma nação heterogênea, indisciplinada, dividida por conflitos internos, que não tinha um pilar apoiador para a nova estrutura de governo, este representando os interesses da política agrária. Assim, pouco depois vieram as reformas que tiveram, como um dos efeitos, a diminuição da promiscuidade social em que se encontrava a população da cidade, a saber, no seu centro, onde se pairavam “repúblicas marginalizadas dentro da República”, legitimando aos poucos a sua cultura e coletivizando a identidade do Rio de Janeiro, uma cidade diversificada culturalmente já naquela época.
Culturas à parte, o autor cita as mudanças advindas no campo da mentalidade coletiva, com a implantação do liberalismo, mecanismo que influenciou grande parte das decisões da época, inclusive a constituição de 1824, no que diz respeito aos direitos civis, acrescentando-se ainda pela constituição de 1891. Permeou também os direitos políticos, com a introdução da eleição direta em 1881. Tais medidas colaboravam intrinsecamente com a reação da cidadania, reerguendo a noção estrita de pátria e de comunidade, objeto de positivistas e, abjeto de anarquistas.
À parte dessas transformações, e seguindo os ditames da sociedade hierarquizada e europeizada, houve a revolta da vacina, contra a obrigatoriedade da vacina contra a varíola, caracterizando-se numa revolta “fragmentada de uma sociedade fragmentada”, que tratava os cidadãos com desrespeito. O governo repressor, pela sua metodologia, impôs uma cara diferente para aquela vacinação. Por mais que fosse necessária, não poderia ser arbitrária e nem obrigatória. Segundo um negro capoeira, revoltoso, emitindo sua opinião sobre a revolta e a postura do governo: “isso é pra eles saberem que não se bota o pé no pescoço do povo”.
José Murilo estabelece um diálogo em torno de três temas e suas correlações: o Rio de Janeiro, a República e a Cidadania. Segundo o autor, haveria relação entre os temas, tendo em vista a experiência histórica de outros povos. A cidade, a vida e os valores urbanos, naturalmente favoreceriam a prática republicana, o que teria como característica a ampliação da cidadania.
No Brasil, a República foi apresentada como o regime da liberdade e igualdade. E conforme outros exemplos, se a cidade foi o berço da cidadania moderna, o Rio de Janeiro formava uma das melhores condições e bases para o crescimento da participação política, em virtude de ser na época a maior cidade do país, e assim chamar toda a atenção para si.
Apesar da cidade ter 500.000 habitantes, a república foi consolidada sobre um mínimo de participação eleitoral e sobre a exclusão do envolvimento popular no governo, que assistiu bestializado. As propostas alternativas de organização do poder foram postas de lado. A cidadania do Rio de Janeiro não seguia o modelo burguês europeu, não apresentando as características elementares, uma vez que a tradição escravista e colonial obstruía o desenvolvimento das liberdades civis. Desta maneira, se configurava em uma cidade de comerciantes, burocratas e de vasto proletariado, socialmente hierarquizada.
Segundo José Murilo de Carvalho, o Rio de Janeiro era “uma cidade em que desmoronava a ordem antiga sem que se implantasse a nova ordem burguesa”. A dicotomia existente na relação entre “república e cidade” só as separou, afastando delas a cidadania, inicialmente através da posição neutra da cidade em relação à política, causando a repressão dos direitos de mobilização política por parte da população urbana.
Segundo citado pelo autor, “a república que não era cidade, não tinha cidadão”. “O povo não se enquadrava nos padrões europeus”. Por isso, impossibilitada de ser “a República”, a cidade mantinha suas repúblicas particulares, ou seja, seus núcleos de participação social, nos bairros, nas associações, nas irmandades, nos grupos étnicos, nas igrejas, nas festas religiosas e profanas e mesmo nos cortiços e nas rodas de capoeira, que se transformaram, ao longo dos anos, em estruturas comunitárias que não se encaixavam no modelo contratual do liberalismo dominante na política. A despeito, foi a evolução destas repúblicas, algumas inicialmente discriminadas, que, se não perseguidas, formou a identidade coletiva da cidade. Foi nelas que se aproximaram povo e classe média, foi nelas que se desenhou o rosto real da cidade, longe das preocupações com a imagem que se devia apresentar a Europa. Foi o futebol, o samba e o carnaval que deram ao Rio de Janeiro uma comunidade de sentimentos por cima e além das grandes diferenças sociais que sobreviveram e ainda sobrevivem. Negros livres, ex-escravos, imigrantes, proletários e classe média encontraram nessa resistência o reconhecimento que lhes era negado pela sociedade e pela política, que os marginalizava, restringindo o seu forte apelo cultural. Apesar de terem se bestializado com a instalação do novo regime, que hipocritamente veio tolir seus direitos, eles deram a volta por cima.
Resenha escrita por: Renato Rodrigues de Almeida
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