Pedagogia da Esperança: (Re)encontro com a Pedagogia do Oprimido
Descubra como a Pedagogia da Esperança pode auxiliar na compreensão da Pedagogia do Oprimido e reencontre o poder da transformação educacional. Conheça os segredos e ousadias para o caminho de libertação.
Pedagogia da Esperança: um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido
As primeiras palavras de Pedagogia da Esperança mostram-nos claramente a convicção de Paulo Freire sobre a necessidade da esperança e do sonho para a existência humana e a luta necessária para fazê-la melhor. Segundo ele, a esperança é uma necessidade ontológica, pois sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate. Alerta, entretanto, que atribuir à esperança o poder de transformar a realidade seria um modo excelente de cair na desesperança, pois “enquanto necessidade ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica” (p. 11). Assim, explica a necessidade de uma educação da esperança, pois “como programa, a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo, onde não é possível juntar as forças indispensáveis ao embate recriador do mundo” (p. 10).
Uma das tarefas do educador ou educadora progressista é desvelar as possibilidades para a esperança, não importando os obstáculos. A pedagogia da esperança faz-se também necessária para o enfrentamento das “situações-limites”, ou seja: os obstáculos e barreiras que precisam ser vencidas ao longo de nossas vidas pessoal e social. Segundo Paulo Freire, as pessoas têm várias atitudes frente a essas situações-limites: “ou as percebem como um obstáculo que não podem transpor; ou como algo que não querem transpor; ou ainda como algo que sabem que existe e precisa ser rompido e então se empenham na sua superação” (p. 205).
A esperança faz-se necessária, portanto, para romper essas “situações-limites” e, ao assumir uma postura crítica frente ao mundo, negar o dado, em ações de superação denominadas por Freire de “atos-limites”. Através desses atos-limites, transpõe-se a fronteira entre “o ser e o ser mais”, ampliando a liberdade dos oprimidos e descobrindo o “inédito-viável”. O inédito-viável é uma coisa inédita, que o sonho utópico sabe que existe, mas que só será possível a partir da práxis libertadora, quando a partir da reflexão-ação se derrubam as situações-limites que nos limitam a “ser menos”.
Enfim, Freire nos alerta que, sem poder negar a desesperança como algo concreto e sem desconhecer as razões históricas, econômicas e sociais que a explicam, não podemos prescindir da esperança na luta por um mundo melhor. Com essas primeiras palavras, nos convida à leitura de sua Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido, a qual, segundo ele mesmo, organiza-se em três momentos.
No primeiro momento, fala “das tramas da infância, da mocidade, dos começos da maturidade” (p. 12), em que foi sendo pensada a obra Pedagogia do Oprimido. Fala de como aprendeu a escrevê-la: primeiro falando dela, falando das situações em que suas ideias foram sendo gestadas.
A escrita de Pedagogia do Oprimido tem a ver com tempos vividos na infância e na adolescência, como se todos fizessem parte de uma trama maior e nós não percebêssemos as ligações entre eles. E o saber crítico que dá sentido às velhas tramas e nos permite realizar “ligaduras” e “soldaduras” que dão razão de ser às memórias vivas que nos marcam. “Os momentos que vivemos ou são instantes de um processo anteriormente iniciado ou inauguram um novo processo de qualquer forma referido a algo passado” (p. 28).
Relembra nesse primeiro momento a experiência vivida no trabalho do SESI, fala de sua preocupação com as relações família-escola, da busca do diálogo para refletir sobre as consequências políticas de uma relação pais-filhos baseada no castigo. Ou seja: de como construir relações democráticas vivendo uma relação familiar autoritária. Assim, baseando-se em estudos de Piaget sobre o código moral da criança e sua representação mental do castigo, o grupo então constituído realizou uma série de debates com os professores e com as famílias sobre a questão da disciplina, “defendendo uma relação dialógica, amorosa, entre pais, mães, filhas, filhos, que fosse substituindo os castigos violentos” (p. 25).
Foi num desses encontros que ocorreu uma situação que Freire considerou culminante no aprendizado ao respeito do “saber de experiência feito”. Somente a transcrição desse relato é capaz de traduzir o significado dessa situação. “Acabamos de escutar”, começou ele, “umas palavras bonitas do Dr. Paulo Freire. Palavras bonitas mesmo. Bem ditas. Umas até simples, que a gente entende fácil. Outras, mais complicadas, mas deu para entender as coisas mais importantes que elas todas juntas dizem”.
“Agora, eu queria dizer umas coisas ao doutor que acho que meus companheiros concordam”. Me fitou manso mas penetrantemente e perguntou: “Dr. Paulo, o senhor sabe onde a gente mora? O senhor já esteve na casa de um de nós?”. Começou então a descrever a geografia precária de suas casas. A escassez de cômodos, os limites íntimos dos espaços em que seus corpos se acotovelam. Falou da falta de recursos para as mais mínimas necessidades. Falou do cansaço do corpo, da impossibilidade dos sonhos com um amanhã melhor […] Depois, silencioso por uns segundos, passeou os olhos pelo auditório inteiro, me fitou de novo e disse:
“Doutor, nunca fui à sua casa, mas vou dizer ao senhor como ela é. Quantos filhos tem? E tudo menino?”
“Cinco – disse eu – mais afundado ainda na cadeira. Três meninas e dois meninos.”
“Pois bem, doutor, sua casa deve ser uma casa solta no terreno, que a gente chama casa de ‘oitão livre’. Deve ter um quarto só para o senhor e sua mulher. Outro quarto grande, e pras três meninas. Tem outro tipo de doutor que tem um quarto para cada filho e filha. Mas o senhor não é desse tipo não. Tem outro quarto para os dois meninos. Banheiro com água quente. Cozinha com a ‘linha Arno’ […].
O senhor deve ter ainda um quarto onde bota os livros – sua livraria de estudo. Tá se vendo, por sua fala, que o senhor é homem de muitas leituras e de boa memória.
Não havia nada a acrescentar nem a retirar. Aquela era a minha casa. Um mundo diferente, espaçoso, confortável.
Agora veja, doutor, a diferença. O senhor chega em casa cansado. A cabeça até que pode doer no trabalho que o senhor faz. Pensar, escrever, ler, falar esses tipos de fala que o senhor fez agora. Isso tudo cansa também. Mas – continuou – uma coisa é chegar em casa, mesmo cansado, e encontrar as crianças tomadas banho, vestidinhas, limpas, bem comidas, sem fome, e a outra é encontrar os meninos sujos, com fome, gritando, fazendo barulho. E a gente tendo que acordar às quatro da manhã do outro dia para começar tudo de novo, na dor, na tristeza, na falta de esperança. Se a gente bate nos filhos e até sai dos limites, não é porque a gente não ame eles não. É porque a dureza da vida não deixa muito para escolher” (p. 26-27).
Essa, entre outras tantas “tramas” contadas, ilustram a profundidade da reflexão realizada por Freire nesse primeiro momento da pedagogia da esperança, em que nos dá mostras da rigorosidade necessária para percebermos criticamente a importância do senso comum e de toda a aprendizagem nele contida.
No segundo momento da obra
Freire vai retomar alguns aspectos da pedagogia do oprimido e analisar algumas críticas feitas a ela nos anos 70. Entre elas, a marca machista com a qual foi escrita. Ao receber as primeiras cartas que o criticavam por estar condicionado pela ideologia machista, reagiu: “Ora, quando falo homem, a mulher necessariamente está incluída” (p. 67). Entretanto, reconhece sua dívida a essas mulheres que o fizeram ver o quanto a linguagem tem de ideologia e que, portanto, a recriação da linguagem como recusa à ideologia machista faz parte do processo de mudar o mundo, ao alcance de nossas possibilidades.
No terceiro e último momento da obra
Freire repensa – e de certa forma revive – a Pedagogia do Oprimido, sem contudo assumir uma posição saudosista. Aborda, entre tantas outras, a questão do medo que inibe os oprimidos no embate necessário à recriação, um medo causado por motivos concretos. Atribui às lideranças a tarefa de “imunização” desse medo, através da leitura crítica permanente da realidade e da construção de ações estratégicas que viabilizem que se faça no futuro o que hoje não é possível.
Enfim, Paulo Freire nos fala, em sua Pedagogia da Esperança, do papel da educação para a compreensão da história como possibilidade, em oposição à visão pragmática neoliberal de futuro como inexorável. Nessa perspectiva, a esperança é elemento fundamental para se recuperar a utopia como sonho possível e compreendermos o futuro, assim como o presente e o passado, como fruto das opções e decisões humanas.
Sem ter tido a pretensão de esgotar a abundância de ideias trabalhadas nessa obra, destaquei propositadamente alguns trechos, a fim de despertar a “curiosidade epistemológica”1 dos possíveis leitores desse texto, para que possam buscar na própria obra o aprofundamento dessas reflexões. A leitura de Pedagogia da Esperança é, no mínimo, uma leitura emocionante a qual, particularmente, qualificaria de apaixonante. Sem dúvida, um referencial básico a qualquer educador ou educadora que se pretenda progressista. A lembrança sempre viva de Paulo Freire e de sua convicção sobre a necessidade da esperança certamente nos auxiliará a unir as forças necessárias para nos inscrevermos na luta cotidiana por um mundo melhor.
Fonte:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, 1992. 8ª edição. Editora Paz e Terra.
Notas:
1 Expressão usada por Paulo Freire em A sombra desta mangueira (1995), quando se refere ao rigor metódico necessário para, superando a curiosidade ingênua, fazer a passagem do senso comum para o do conhecimento científico.
Autor: Danilo Gabriel Tramontelli