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Atualizado em 10/08/2024

Os contos de fadas e o mito: mediando valores e constituindo a personalidade

Este artigo explora a influência dos contos de fadas e mitos na formação de valores e na constituição da personalidade infantil, destacando a importância da literatura na educação e no desenvolvimento humano.

Os contos de fadas e o mito: mediando valores e constituindo a personalidade

1 – Literatura infantil: contos e mitos

Para falarmos sobre a influência da literatura infantil na construção de valores e seu papel na constituição da personalidade, consideramos relevante fazermos uma pequena introdução sobre a sua origem, destacando os Contos de Fadas e os Mitos.

Segundo Góes (1991), a literatura infantil tem sua origem na chamada Idade Oral do Mito. Onde, através da oralidade, as tradições dos antepassados – lendas, fábulas, mitos – eram transmitidas pelas “amas de leite” e pelos educadores às crianças.

Os mitos nasceram da necessidade do homem de explicar a si mesmo o mundo e os fenômenos, sendo que estes, em sua grande maioria, sobre a figura de deuses, se constituindo assim o primeiro estágio da arte de se narrar. Possui caráter pessimista e, na grande maioria das vezes, tem um final trágico.

Os Contos são uma evolução do mito; suas principais características são a presença do maravilhoso e de poucos personagens, onde estes possuem a sua característica principal elevada. Por exemplo: ou são muito bons ou muito maus, muito feios ou muito bonitos.

Góes (1991) relata que os primeiros contos datam da Idade Média (Séc. V ao Séc. XV). Dentre os grandes escritores destes contos, podemos citar: La Fontaine, que se destaca por suas fábulas; Hans Christian Andersen com sua obra mais famosa “O Patinho Feio”; Lewis Carrol e sua “Alice no País das Maravilhas”; Jacob e Wilhelm Grimm, mais conhecidos como os irmãos Grimm e seus contos maravilhosos.

Até o século XIX, a escola praticamente não existia, assim como não havia formação de professores e nem mesmo livros de textos para a sala de aula.

No Brasil, com a vinda de Dom João VI, se abriram novos horizontes para a educação, mas a literatura só começou a se esboçar nos fins do século passado, quando a preocupação com a educação e com a criança se tornou uma realidade. Daí então, as leituras para as crianças, os contos maravilhosos, a literatura de ficção começaram a ser adaptados ao gosto infantil para distrair e instruir, e a criança passou a ser preocupação constante de psicólogos, pedagogos e mestres.

O primeiro livro infantil foi publicado por Alberto Figueredo Pimentel, Os Contos da Carochinha, e depois vieram os Contos da Baratinha, que encantaram o público infantil. Mas, sem a menor sombra de dúvidas, o clássico da literatura infantil é Monteiro Lobato, que tinha como fonte de inspiração a própria criança. Sua principal obra é o Sítio do Pica-pau Amarelo, no qual ele combina a realidade e a fantasia, girando em torno do bem supremo que é a liberdade.

Depois de Lobato, houve uma eclosão de criatividade de vários autores, dentre muitos, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Eva Furnari e alguns escritores cearenses como Elvira Drummond, Fabiano dos Santos, Horácio Dídimo, Rachel de Queiroz e outros que nasceram no dia a dia.

A literatura infantil tem o objetivo central de atrair o pequeno leitor para o processo de descoberta do mundo, levando-o a participar do ato de leitura, da realidade e da imaginação, oferecendo-lhe histórias vivas e bem-humoradas que buscam diverti-los e ao mesmo tempo torná-los conscientes de si mesmos e do mundo com quem devem entrar em relação dinâmica e afetiva.

Diante do exposto, podemos observar de perto todos estes fatores através das atividades que propomos a essa turma do 4º ano. Para mais informações sobre a literatura infantil, consulte Literatura Infantil: Construção da Leitura e da Escrita.

2 – Experiências e vivências: trabalhando valores humanos

Na atual conjuntura da nossa sociedade, o crescente aumento da violência e a distorção de valores humanos – amor, respeito, solidariedade – nos levam a refletir sobre a necessidade de se trabalhar os referidos valores na escola, onde a criança passa boa parte de sua vida.

Várias iniciativas são elaboradas buscando trabalhar uma cultura de paz nas instituições escolares. Como por exemplo, o Programa Vivendo Valores na Educação (VIVE), que de acordo com MATOS, CASTRO e NASCIMENTO (2008) visa o conhecimento e a exploração de dez valores, dentre eles podemos citar a paz, o respeito, a humildade e a união.

É apoiado institucionalmente pela UNESCO e tem como sua responsável o Instituto Vivendo Valores na Educação (IVV). Possui como objetivos inspirar a autonomia para a responsabilidade na escolha de valores pessoais e sociais positivos, ajudando os educadores a perceberem a educação como filosofia de vida, apostando no desenvolvimento dos alunos, acolhendo-os e contribuindo para integrá-los na comunidade com respeito e confiança. (Guia de Capacitação do Educador, 2004, apud MATOS).

Inspiradas nesta perspectiva, optamos por trabalhar valores mediados pelos contos de fadas e os mitos, pois estes exercem uma influência benéfica na formação da personalidade e ao mesmo tempo formando seres mais humanizados com bons valores e virtudes, descobrindo assim a delícia de ser criança e um futuro adulto seguro de suas opiniões e atitudes.

Através dos contos, as crianças vão trabalhar certos conflitos, buscar soluções e procurar respostas para aquilo que não está bem.

Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em tantos níveis diferentes e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à multidão e diversidade de contribuições que esses contos dão à vida da criança. (BETTELHEIM, 1980, pág. 20)

Lembrando que procuramos trabalhar com os valores humanos, especificamente, e estes são entendidos como

…os fundamentos éticos e espirituais que constituem a consciência humana. (…) tornam a vida algo digno de ser vivido, definem princípios e propósitos valiosos e objetivam fins grandiosos. (…) A sobrevivência do mundo da espécie humana depende da força viva dos valores humanos pautando a nossa conduta. (MARTINELLI, 2009)

A primeira história trabalhada foi “O Patinho Feio” de Hans Christian Andersen, onde se discute o respeito às diferenças e o acolhimento das diversidades.

CHALITA (2005) aborda que a riqueza da história de Andersen reside na capacidade de nos tocar profundamente, de despertar em nós o sentimento de amor ao próximo, de solidariedade e respeito às diferenças.

Quando tomamos conhecimento dos infortúnios ininterruptos do patinho, é como se acordássemos para a necessidade de cuidar, de amar, de dedicar atenção a quem precisa, a quem está desamparado, carente, desprovido de paz, deslocado, perdido, fora do ninho.

Para criarmos cidadãos sem preconceitos, é preciso começar a educá-los ainda quando crianças, fazendo com que desenvolvam o respeito ao diferente por meio de máximas morais, contos e narrativas que instiguem avaliações e conclusões de que todas as pessoas merecem respeito, amor fraterno e tratamento digno. (CHALITA, 2005, pág. 138)

Primeiramente, perguntamos se eles sabiam o que era um conto de fadas; alguns relataram que já ouviram falar e outros não sabiam. Então, explicamos que estes contos foram criados há milhares de anos e que permaneceram até a atualidade.

No começo de todas as atividades propostas, eles estavam dispersos, mas aos poucos se concentram, até porque isso é uma característica da própria criança.

Apresentamos brevemente a história de vida do autor, que por si só, já é uma lição de vida. Ao iniciarmos a contação, os alunos, que já conheciam, começaram a interagir contando o que aconteceria na sequência da história. Quando apareceu a palavra RESPEITO, paramos e perguntamos se sabiam o que ela significava e responderam que era obedecer à mãe, à professora, e acrescentamos que também era aceitar as diferenças e tratar bem os colegas.

Para concluir, distribuímos folhas e pedimos para que os alunos desenhassem o personagem que mais gostaram e escrevessem o porquê. Alguns não quiseram desenhar e outros desenharam e não escreveram.

Dentre todos os trabalhos, destacamos o de três crianças. O primeiro se chama Jamilson (14 anos), que ainda não domina a leitura e a escrita. Em seu desenho, deixou um espaço para escrever, mas não o fez. Perguntamos então porque ele havia escolhido desenhar o Patinho e ele respondeu que foi porque este patinho havia sido humilhado.

Antonio M. (14 anos) é uma criança que possui algum tipo de deficiência, mas que ainda não foi diagnosticada e não conseguimos saber do que se trata. O fato é que esta criança, tida (pela professora) como o “atrasadinho da turma”, nos apresentou um lindo desenho que continha o seguinte relato: “Eu gostei a parte que ele criceu com outro pato e Ele ficou muito bonito e as pessoa deu aplauso pru cirnis.” Com o tempo, percebemos o contrário, ele é muito criativo.

Destacamos também João Emerson, pois este se identificou com o “Patinho Feio” de tal forma que, além da atividade que pedimos, ele desenhou várias vezes em outra folha patinhos diferentes. Sabemos que as crianças podem se identificar com o personagem, transferindo todos os seus conflitos para aqueles vividos na história e que por esse motivo pedem para repeti-la, mas no caso de João Emerson, resolvemos lhe emprestar o livro e podemos perceber, no brilho de seus olhos, sua felicidade.

A segunda história apresentada foi Damon e Pítias, que revela a amizade grega em seu bojo uma série de valores, sentimentos e ações de natureza nobre, como o altruísmo, a solidariedade, a ética, a confiança mútua, a tolerância, o respeito, a coragem, o amor, o afeto e a dedicação extrema, pois sem esta a amizade simplesmente deixa de existir.

Ao pedirmos para escreverem e desenharem (opcional) o que era amizade para eles, Vitória nos deu o seguinte texto:

“A amizade é quando você precisar de ajuda, ajuda; quando precisar de apoio, apóia; quando estiver triste, consola; quando estiver magoada, abre a porta e deixa ir embora a mágoa; é ser irmão, amigo, encorajar.”

“Eu não tenho amigos, tenho colegas.”

“Porque eu não tenho amigo?”

“Eu já tive, mas ela me deixou muito magoada, agora eu não quero mais amigos, nunca mais vou confiar numa amizade. Só colegas.”

Notamos que esta criança tem tristeza e mágoa em relação à amizade verdadeira, isso fica mais evidente no seu comportamento com seus colegas em sala de aula.

Quem não tem amigos abre espaço para uma existência vazia que, frequentemente, pode levar a estados psicológicos negativos, como a depressão, a angústia, a ansiedade e a tristeza originadas da solidão extremada. (CHALITA, 2005, pág.36)

Esses estados são consequência de almas que se veem relegadas ao desespero de uma vida pautada por valores construídos sobre alicerces impróprios para sustentar as edificações da felicidade.

As outras crianças, em sua grande maioria, relataram que a amizade era amor, companheirismo, afeto, ser irmão.

Na terceira atividade, apresentamos um mito, o de Hércules, figura conhecida pela maioria através dos desenhos animados, e que assim como os contos de fadas, são

… versões amesquinhadas e simplificadas, que amortecem os significados e roubam-nos de todo o significado mais profundo, (…) onde os contos de fadas são transformados em diversão vazia. (BETTELHEIM, 1980, pág. 32)

É uma história repleta de simbologias sobre as opções que a vida nos concede ao longo de nossa trajetória por diversos caminhos bifurcados, assim como ocorre na narrativa de A Escolha de Hércules, quando somos jovens nos é dada a oportunidade de selecionar as trilhas que vão culminar num futuro construído sobre os pilares do sucesso ou do fracasso, dependendo do percurso que escolhemos seguir.

O trabalho nos torna seres sociais na medida em que, no exercício de nossa profissão, entramos em contato com outros indivíduos e pouco a pouco, aprendemos a estabelecer relações com pessoas diferentes, com ideias e opiniões muitas vezes divergentes das nossas. Pessoas de origens diversas, com costumes e histórias variadas que nos enriquecem social e culturalmente. Essa aproximação com o outro é fundamental para o nosso crescimento intelectual, bem como para a solidificação do nosso caráter. Em outras palavras, o trabalho nos ensina e fortalece em nós valores indispensáveis como ética, justiça e respeito às diferenças. (CHALITA, 2005, pág.94)

Apresentamos uma versão original deste mito, só que de forma resumida. Ao perguntar para eles o que era trabalho, na essência de suas respostas era ajudar a família, ter um futuro melhor e ajudar ao próximo. Percebemos que eles veem nos estudos a possibilidade de ingressar numa profissão que ajude a construir uma família. Alguns também falaram que o trabalho é lutar, lutar para ter uma vida melhor, sendo esta uma atividade árdua e que só depende da gente, não é fácil, mas no final é gratificante.

A quarta história abordava em essência o amor. A história de Sherazade é um exemplo da habilidade, da competência, da amorosidade e do espírito de doação existentes, em maior ou menor grau, em todas as mulheres. Porém, ela ensina a todos, independentemente de sexo, que o conhecimento apreendido por meio das histórias é fundamental para iluminar os caminhos – muitas vezes tortuosos – de nossa vida.

Vitória nos surpreendeu com o seguinte texto:

“A importância do amor”

“O amor é um sentimento de carinho, amor, paz.”

“Existem dois tipos de amor: o amor fraterno.”

“Amor fraterno = É o amor entre irmãos, o amor que temos com um pai, uma mãe, um colega.”

“E também o amor de namorados.”

“Amor de casal = é o amor entre um homem e uma mulher, dão beijos na boca, têm mais intimidade do que o amor fraterno.”

As outras crianças relataram que o amor “é um carinho que você tem sempre”, “é amar quem te ama para ser amado”, “ele pode tudo”, “tira o ódio que a gente tem”.

Nas histórias encontramos ensinamentos que nos libertam e, ao mesmo tempo, nos habilitam a lutar pela liberdade daqueles que ainda são subjugados por sultões, piratas, ditadores, governantes do mal, prisioneiros de sua extrema ignorância ao não enxergar o real sentido e a verdadeira beleza da vida.

Durante este período de observação e realização destas atividades, podemos perceber que estas crianças já estavam condicionadas a fazer somente atividades ligadas às disciplinas obrigatórias e que a escola não possui nenhum projeto que proporcione outras atividades. Eles possuem um certo conhecimento a respeito dos valores, mas também possuem muita dificuldade em expressá-los.

Notamos, nos dias em que estamos com eles, uma melhora significativa em seu comportamento e na sua autoestima e assim podemos constatar de perto o poder que a literatura tem em destacar os contos de fadas.

Enfim, observamos que os contos de fadas e os mitos são os tipos de literatura capazes de conduzir a criança a uma dimensão que vai além do entretenimento, uma vez que eles permitem a construção de um imaginário singular, fundamental para a constituição da subjetividade, visto que os referidos levam a criança a se encontrar com seu ser psicológico, emocional e social por meio da imaginação e assim trabalhar questões relacionadas ao inconsciente que vêm à tona a partir das situações representadas e da simbologia dos personagens, na qual são a personificação de alguns valores humanos essenciais para a constituição da criança como pessoa.

Considerações Finais

Embora a nossa sociedade seja diferente daquela da época em que foram criados, a mensagem que estes contos encenam são intemporais. As crianças envolvem-se facilmente nos enredos porque sentem que o tipo de problemas das personagens é semelhante aos que as atormentam. Não é, portanto, de se estranhar que estas histórias se mantenham vivas no nosso inconsciente coletivo e que sejam transmitidas ao longo das gerações. Essas histórias carregam uma força profunda, que não se deve apenas à mera função de distrair ou embalar o sono das crianças. O grande poder dos contos está na magia que apresentam e na fantasia que despertam. E foi essa magia que tivemos o prazer de observar nesta pesquisa.

As histórias infantis fazem parte do imaginário da criança e devem fazer parte de seu cotidiano escolar. A atividade lúdica que esta oferece desenvolve na criança uma atitude positiva para com a aprendizagem, com a sala de aula, com a escola, pois ler, contar, recontar e cantar é estimulante, apaixonante, envolvente e mobilizador.

Referências Bibliográficas

ANDERSEN, Hans Christian. O patinho feio. São Paulo: Gold Editora,(s/d)

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Ed Paz e Terra S/A, 2007.

CARVALHO, Bárbara Vasconcelos, A literatura infantil: visão histórica e crítica, 6 ed. São Paulo: Global Editora, 1985.

CHALITA, Gabriel. Pedagogia do Amor. São Paulo: Gente, 2005.

COELHO, N. N. A literatura infantil. 7° Ed., Moderna, São Paulo, 2000.
Contos e desenvolvimento psíquico. Revista Viver Mente & Cérebro. Novembro, 2004.

GÓES, Lúcia Pimentel. Introdução à literatura infantil e juvenil. 2ª Ed. São Paulo: Pioneira, 1991.

MARTINELLI, Marilú. Educação em Valores Humanos. Disponível em: www.peiropolis.org.br/leitura.php?id=17. Acesso em: 10/10/2009

MATOS, Kelma Socorro Lopes de; CASTRO, Lívia Maria Duarte; NASCIMENTO, Elizangela Lima do. Semeando a paz: escolas e sujeitos em busca de valores. In. MATOS, Kelma Socorro Lopes de; NASCIMENTO, Verônica Salgueiro do; JUNIOR, Raimundo Nonato. (orgs.) Cultura de Paz: do conhecimento à sabedoria. Fortaleza: Edições UFC, 2008.

ROCHA, Ruth. Histórias das mil e uma noites. São Paulo: FTD, 1991.

Autora: Francisca Samara Teixeira

Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Ceará; Pós-Graduação em psicomotricidade pela Universidade Federal do Ceará.


Este texto foi publicado na categoria Cultura e Expressão Artística.

 About Pedagogia ao Pé da Letra

Sou pedagoga e professora pós-graduada em educação infantil, me interesso muito pela educação brasileira e principalmente pela qualidade de ensino. Primo muito pela educação infantil como a base de tudo.

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