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Sumário A pesquisa das cefaleias na infância vive hoje uma grande evolução de conceitos. O reconhecimento das numerosas peculiaridades observadas na migrânea na infância e adolescência, consequência da interação de processos neuroquímicos e maturacionais subjacentes, pode ajudar-nos a compreender melhor os processos de dor em um sistema nervoso em franco desenvolvimento. Com esse racional, valemo-nos desta revisão para apresentar evidências científicas recentes que refletem esses avanços na compreensão da migrânea e de outras cefaleias na infância e adolescência, sem perder de vista a aplicabilidade desses novos conceitos na prática clínica diária. A partir de dados inéditos do Projeto Atenção Brasil, um amplo estudo epidemiológico sobre cefaleia, saúde mental e hábitos em crianças e adolescentes brasileiros, os autores discutem os principais resultados recentemente publicados por eles na literatura sobre epidemiologia das cefaleias primárias, exposições no período pré-natal e risco de cefaleia crônica diária na infância, agregação familiar das cefaleias primárias e síndromes periódicas da infância. Um resumo sobre tratamento sintomático e profilático da migrânea na infância é apresentado ao final, bem como as implicações desses avanços para a prática clínica diária. |
Sumário The research on headaches in childhood is nowadays undergoing a marked evolution in concepts. The knowledge of the numerous peculiarities observed in migraine among children and teenagers, a consequence of the interaction between underlying neurochemical and maturational processes, can help in a better understanding of pain processes in a nervous system in straight development. |
With this rationale, the authors undertook this revision in order to present recent scientific evidences that reflect these advances in the understanding of migraines and other headaches in infancy and adolescence, without losing sight of the applicability of these new concepts in daily clinical practice.
Based on fresh data of the Attention Brazil Project, an ample epidemiological study on headache, mental health and habits of Brazilian children and teenagers, the paper discusses the main results recently published in the literature on epidemiology of primary headaches, exposure in the prenatal period and risk of chronic daily headache in childhood, familial aggregation of primary headaches and periodic syndromes in infancy.
A summary on the symptomatic and prophylactic treatment of migraine in childhood is given at the end of the study, as well as the implications of these advances in daily clinical practice.
Numeração de páginas na revista impressa: 87 à 100
Resumo
A pesquisa das cefaleias na infância vive hoje uma grande evolução de conceitos. O reconhecimento das numerosas peculiaridades observadas na migrânea na infância e adolescência, consequência da interação de processos neuroquímicos e maturacionais subjacentes, pode ajudar-nos a compreender melhor os processos de dor em um sistema nervoso em franco desenvolvimento. Com esse racional, valemo-nos desta revisão para apresentar evidências científicas recentes que refletem esses avanços na compreensão da migrânea e de outras cefaleias na infância e adolescência, sem perder de vista a aplicabilidade desses novos conceitos na prática clínica diária. A partir de dados inéditos do Projeto Atenção Brasil, um amplo estudo epidemiológico sobre cefaleia, saúde mental e hábitos em crianças e adolescentes brasileiros, os autores discutem os principais resultados recentemente publicados por eles na literatura sobre epidemiologia das cefaleias primárias, exposições no período pré-natal e risco de cefaleia crônica diária na infância, agregação familiar das cefaleias primárias e síndromes periódicas da infância. Um resumo sobre tratamento sintomático e profilático da migrânea na infância é apresentado ao final, bem como as implicações desses avanços para a prática clínica diária.
Introdução
O estudo da migrânea na população pediátrica é de grande importância por várias razões: é a cefaleia crônica mais frequente nessa faixa etária(1) causa um impacto significativo não apenas sobre a criança, mas também sobre a família(2-4), decorrente de absenteísmo escolar(5) e comorbidades(6) seu fenótipo e diagnóstico diferencial variam em função da idade, impondo desafios diagnósticos e terapêuticos específicos(7,8) e, finalmente, pela relevância do estudo de sua prevalência, que na infância nos informa sobre os fatores determinantes de sua incidência. Para várias condições neurológicas, o surgimento precoce dos sintomas reflete a importância de fatores de risco biológico e genético(9,10). Para a migrânea, isso é verdadeiro e aponta para uma provável predisposição biológica ou suscetibilidade a fatores de risco de ordem ambiental(11).
Como em outras áreas de estudo das cefaleias, a pesquisa das cefaleias na infância vive hoje uma grande evolução de conceitos. O reconhecimento das numerosas peculiaridades observadas na migrânea na infância e adolescência, consequência da interação de processos neuroquímicos e maturacionais subjacentes, pode ajudar-nos a compreender melhor os processos de dor em um sistema nervoso em franco desenvolvimento.
Com esse racional, valemo-nos desta revisão para apresentar evidências científicas recentes que refletem esses avanços na compreensão da migrânea e de outras cefaleias na infância e adolescência, sem perder de vista a aplicabilidade desses novos conceitos na prática clínica diária.
Classificação e critérios diagnósticos
O diagnóstico da migrânea frequentemente traz maiores desafios na criança do que no adulto(12,13), particularmente na criança menor de sete anos, dada a maior dificuldade na obtenção das informações necessárias ao diagnóstico. Nessa idade, a criança pode ter dificuldades na descrição das características da dor, seus sintomas associados, fatores desencadeantes, de piora e de melhora, elementos fundamentais para o diagnóstico. Comparadas ao adulto, crianças com migrânea tendem a ter crises de duração mais curta, às vezes múltiplas em um só dia, de menor intensidade, com localização bilateral, náuseas e vômitos mais proeminentes, caráter pulsátil menos frequente e alívio com o sono(14-21). Com a passagem para a adolescência, as crises de migrânea vão se assemelhando às do adulto.
Tendo em vista essas peculiaridades, torna-se óbvia a necessidade de critérios diagnósticos específicos para a idade pediátrica. Em 1988, a primeira edição da Classificação Internacional das Cefaleias (ICHD-1) propôs critérios para o diagnóstico da migrânea que previam uma duração das crises entre 4 e 72 horas. Um avanço à época foi estabelecer uma duração mais curta para crianças abaixo de 15 anos de idade, entre 2 e 48 horas(22). Não tardaram, no entanto, estudos comprovando a baixa sensibilidade e valor preditivo positivo desses critérios na infância, a despeito da alta especificidade(14- 21).
Em 2004, com a publicação da segunda edição dessa classificação (ICHD-2), a duração mínima das crises foi reduzida para uma hora(23), com o objetivo de aumentar a sensibilidade sem comprometer a especificidade desses critérios. Ademais, as seguintes observações foram inseridas: “em crianças mais novas, a migrânea frequentemente é de localização bilateral e frontotemporal (o padrão unilateral é mais relatado a partir da adolescência e vida adulta) e a presença de foto e fonofobia pode ser inferida às vezes apenas através da observação do comportamento da criança durante as crises”.
O Quadro 1 ilustra os critérios diagnósticos para a migrânea sem aura na infância, de acordo com a ICHD-2.
Apesar da melhora dos índices de sensibilidade e do valor preditivo positivo com essas modificações na ICHD-2, ainda assim é relatado na literatura um considerável contingente de crianças cujas crises são de duração inferior a uma hora(14).
O agravamento da dor com o esforço físico é uma das mais sensíveis e específicas características clínicas da migrânea. Nossa experiência clínica indica que uma cefaleia crônica recorrente e não progressiva capaz de inibir ou impedir que a criança corra ou pule durante as crises de dor, até prova em contrário, é migrânea(24).
Epidemiologia
Estudos sobre a epidemiologia da migrânea na infância refletem os avanços na classificação. A despeito das limitações dos critérios diagnósticos acima referidas, responsáveis pela não identificação de um considerável contingente de crianças cujas crises são de curta duração, a epidemiologia da migrânea é bem descrita em todas as idades e brevemente resumida a seguir.
Estudar a incidência da migrânea é um grande desafio. A idade de início pode sofrer o chamado efeito telescópico (da idade real de início para idade mais avançada), que atua como um importante viés. Ademais, os métodos para estudo da incidência de dor em crianças ainda não foram bem estabelecidos(25).
Avaliando a idade de início da migrânea em um estudo de prevalência, Stewart et al.(26) encontraram um pico de incidência de migrânea com aura (migrânea clássica) em meninas com 12 e 13 anos de idade (14,1/1000 ao ano) e de migrânea sem aura (migrânea comum) entre 14 e 17 anos (18,9/1000 ao ano). Em meninos, a migrânea com aura tem pico de incidência vários anos antes, por volta dos cinco anos de idade (6,6/1000 ao ano) e a forma sem aura, entre 10 e 11 anos (10/1000 ao ano).
Com a sofisticação das técnicas utilizadas, o mesmo autor revisitou o tema como parte do Estudo Americano de Prevalência e Prevenção da Migrânea(27). Dois métodos foram utilizados para estimar a idade específica de incidência. O primeiro (naïve) não presumindo a presença sistemática de viés no relato da idade de início. O segundo usando um modelo estatístico para ajustar o efeito desse viés na estimativa. Finalmente, um modelo foi elaborado tendo como base esses dois métodos. Observa-se então um pico de incidência em idades maiores, entre 20 e 24 anos na mulher (18,2/1000 ao ano) e entre 15 e 19 anos no homem (6,2/1000 ao ano). A incidência acumulada foi de 43% na mulher e de 18% no homem.
Um insight numa questão: se na migrânea o início das manifestações ocorre mais frequentemente no final da segunda e início da terceira década, existiriam fatores de risco, exposições ou genes específicos que tão dramaticamente adiantariam essas manifestações para a infância?
A prevalência das cefaleias na infância tem sido investigada em numerosos estudos de base populacional ou escolar(13,28-30). Aos três anos de idade, esse sintoma já foi referido por 3% a 8% das crianças, aos cinco anos por 19,5% e aos sete por 37% a 51,5%. Entre os 7 e os 15 anos de idade, a prevalência de cefaleia varia entre 57% e 82%(13,28-30).
Projeto Atenção Brasil
Como mencionado anteriormente, uma importante lacuna na epidemiologia das cefaleias na infância é a escassez de estudos populacionais representativos com foco em crianças mais novas.
O Projeto Atenção Brasil é um amplo estudo populacional brasileiro dirigido à investigação de cefaleias, desenvolvimento e fatores de risco e proteção em saúde mental infantil(31). Foi desenvolvido no Instituto Glia, de Ribeirão Preto, com a colaboração de pesquisadores do Albert Einstein College of Medicine (EUA) e da Universidade La Sapienza, de Roma (Itália).
O projeto consiste em duas fases. A fase 1 (piloto) foi a campo no primeiro semestre de 2009, na cidade de Santa Cruz das Palmeiras (SP), e teve como amostra-alvo todas as crianças com idade entre 5 e 12 anos matriculadas no ensino público municipal. As mães de 2.173 crianças foram diretamente entrevistadas através de questionários padronizados e validados, num total de 238 questões de múltipla escolha, dirigidas a informações relativas a aspectos demográficos, socioeconômicos, do desenvolvimento, escolaridade, hábitos, antecedentes pessoais e familiares, cefaleia e saúde mental. As informações sobre cefaleia contemplaram as exigências da ICHD-2. Para avaliação dos aspectos de saúde mental, foi aplicado o Child Behavior Checklist (CBCL), adaptado e validado no Brasil por Bordin et al., em 1995(32). Os professores também responderam a questionário específico validado para esse fim, com perguntas referentes a comportamento, escolaridade e cefaleia. A caracterização demográfica seguiu as normas adotadas pelo IBGE.
A fase 2, de âmbito nacional, transcorreu ao longo do segundo semestre de 2009 e envolveu a participação de 125 professores, que aplicaram os questionários aos pais de mais de 8 mil crianças e adolescentes de 22 Estados brasileiros. Os resultados dessa fase ainda não foram publicados.
Portanto, o Projeto Atenção Brasil oferece uma oportunidade única no estudo das cefaleias, por contar com amostra representativa da população brasileira pré-adolescente. São apresentados a seguir os principais resultados de estudos da primeira fase do Projeto.
Prevalência e frequência de cefaleias primárias na infância
As cefaleias foram analisadas de duas formas distintas. Primeiramente foram aplicados os critérios diagnósticos da ICHD-2 e depois estratificamos a amostra em função da frequência de cefaleia, como segue: cefaleia episódica de baixa frequência (CEBF, menos cinco 5 dias de cefaleia ao mês), cefaleia episódica de frequência intermediária (CEFI, entre 5 e 9 dias de cefaleia ao mês), cefaleia episódica de alta frequência (CEAF, entre 10 e 14 dias de cefaleia ao mês) e cefaleia crônica diária (CCD, mais de 15 dias de cefaleia ao mês)(33).
A prevalência de migrânea com ou sem aura nessa população de crianças foi de 3,8%, sendo de 3,9% nos meninos e 3,6% nas meninas (diferença não significativa). A prevalência em crianças brancas foi de 3,2% e nas não brancas de 4,7% (não significativa). Nas meninas, a prevalência por raça foi similar (3,6% nas brancas e 3,5% nas não brancas), mas nos meninos foi significativamente maior nos não brancos [5,8% vs. 2,9%, risco relativo (RR) = 1,99, 95% intervalo de confiança (IC) = 1,1-3,7]. A prevalência aumentou com a idade. Tendo como referência a idade de 6 anos (2,6%), a prevalência foi numericamente maior em todas as idades subsequentes e significativamente maior a partir da idade de 10 anos (5,5%, RR = 2,13, 95% IC = 1,02-4,44).
A prevalência de provável migrânea (PM, quando todos os critérios para migrânea são contemplados com exceção de um) foi expressiva – 17,1% da amostra. Como seria esperado, a grande maioria dos casos classificados como PM foi por conta da duração de crises inferior a 1 hora (76% dos casos) e por não referência a sintomas acompanhantes (apenas foto ou fonofobia, sem náusea ou vômito). Dessa forma, conclui-se que um considerável contingente de crianças apresenta crises de muito curta duração (inferior a uma hora) e com poucos sintomas acompanhantes da dor. Não podemos concluir ainda, baseados nesses dados, se a duração das crises de migrânea na criança é realmente mais curta ou se esse seria um artefato decorrente das dificuldades de obtenção da informação nessa faixa etária. Achados semelhantes têm sido relatados por outros grupos na literatura(14,15,34). Devemos, portanto, ter em vista essa importante peculiaridade da migrânea ao atendermos crianças com cefaleia.
A prevalência de CCD nessa amostra foi expressiva – 1,68%, maior em meninas do que em meninos (2,09% vs. 1,33%), apesar da diferença não ter sido significativa [prevalence ratio (PR) = 1,6, 95% IC = 0,7-3,4]. Quando dicotomizada por idade, nem a prevalência total nem a estratificada por sexo foi significativamente diferente em crianças com menos vs. crianças com mais de nove anos de idade(35).
Como mencionado anteriormente, também avaliamos a amostra em função da frequência das crises de cefaleia e encontramos uma prevalência de CEAF de 2,52%, embora numericamente maior nas meninas (2,8%) do que nos meninos (2,3%), essa diferença não se mostrou estatisticamente significativa. A prevalência de CEAF também não diferiu significativamente em função da idade, embora tenha sido próxima à significância na comparação entre meninas abaixo e acima de nove anos de idade (3,2% vs. 2,3%). Um dado de grande importância nesse estudo foi a alta prevalência de crianças com dez ou mais dias de cefaleia ao mês, 4,2%.
Procura por atendimento médico e uso de analgésicos
Um grande contingente de crianças com migrânea avaliado no Projeto Atenção Brasil nunca havia recebido atendimento médico para sua cefaleia. A proporção delas foi de 93,7% com migrânea crônica (frequência das crises maior que 15 dias ao mês), 75,6% com migrânea episódica (frequência de crises menor do que 15 dias ao mês) e 58,5% com provável migrânea.
A Figura 2 mostra o número de dias em que a criança usou analgésico no último mês em função da frequência de suas crises de migrânea. De grande interesse é que para todos os subtipos de migrânea a maioria das crianças usou analgésico ao menos um dia no mês 42,7% daquelas com migrânea usaram analgésico entre dois e quatro dias e cerca de 8% por cinco ou mais dias e 12,5% das crianças com migrânea crônica usaram analgésico por dez dias ou mais.
Esses dados alertam para o fato de que mesmo em crianças não referidas, avaliadas em amostras populacionais, o impacto da cefaleia não pode ser negligenciado(33).
Exposições no período pré-natal e risco de cefaleia crônica diária
A maior vulnerabilidade de subpopulações pediátricas a determinadas doenças pode refletir a combinação de uma forte predisposição biológica, exposições no período pré-natal ou exposições/comorbidades nos primeiros meses e anos de vida(36). Entre as exposições no período pré-natal são de grande interesse as relacionadas ao tabaco e ao álcool. A nicotina se liga a receptores de neurotransmissores específicos no cérebro fetal, desencadeando alterações na proliferação e diferenciação celular que podem, eventualmente, provocar redução na população neuronal e alterações na atividade sináptica(37). As anormalidades genéticas, cerebrais e biométricas fetais relacionadas à exposição pré-natal ao álcool têm sido amplamente relatadas(38).
No Projeto Atenção Brasil, as mães foram especificamente inqueridas sobre exposição ativa ou passiva à nicotina e consumo de álcool durante a gestação(39).
O risco de cefaleia crônica diária (CCD) foi significativamente maior nas crianças com histórico de tabagismo materno durante a gestação. Quando presente o relato de tabagismo materno ativo e passivo, a odds ratio (OR) para CCD foi de 2,29 (95% CI = 1,6 vs. 3,6) para tabagismo ativo OR = 4,2 (95% CI= 2,1-8,5). O consumo de álcool pela mãe durante a gestação mais do que dobrou o risco de CCD (24% vs. 11%, OR = 2,3, 95% CI = 1,2-4,7). O risco permaneceu significativamente elevado após o ajuste por renda familiar, cefaleia nos pais, cuidados médicos recebidos durante a gestação, hipertensão arterial na gestação e uso de drogas.
* Veja a sessão de métodos para maiores detalhes sobre ajustes e lista de covariáveis.
Frequência da cefaleia na criança em função da frequência da cefaleia nos pais
Apesar de estar bem estabelecido que a migrânea apresenta agregação familiar(40-42) e que essa agregação aumenta em função da sua gravidade (prejuízo que provoca na vida do portador)(43,44), pouco se sabe da influência da frequência das cefaleias episódicas e da CCD no fenômeno de agregação familiar. Estudar a possível inter-relação é de suma importância, por várias razões. Primeiro, se a frequência de cefaleia também sofre agregação familiar, a identificação de probandos severamente afetados viabilizaria a triagem e o tratamento precoce de familiares em primeiro grau(45). Segundo, uma vez que muitos casos de CCD evoluem a partir de cefaleias episódicas, investigar se a mesma se agrega não apenas em famílias de portadores de CCD, mas também naquelas de portadores de cefaleia episódica de alta frequência (CEAF), permitiria conclusões sobre a fisiopatogenia que poderiam ou não solidificar o conceito de que algumas formas de cefaleia são de evolução progressiva(46). Finalmente, se a frequência das cefaleias se agrega nas famílias, genes candidatos de “progressão da dor”, como também fatores de risco de ordem ambiental poderiam ser identificados.
No Projeto Atenção Brasil, avaliamos essa inter-relação e observamos que a presença de um histórico de cefaleia no pai ou na mãe aumenta o risco relativo (RR) de cefaleia episódica (RR = 1,6 e 95% IC = 1,3-1,8) e de CCD (RR = 6,6 e 95% IC = 1,4-28,4) na criança, quando comparado a uma história negativa(47).
A frequência de cefaleia na mãe foi capaz de predizer a frequência de cefaleia na criança quando a mãe tinha cefaleia episódica de baixa frequência (CEBF), a criança tinha um maior risco de ter CEBF ou cefaleia episódica de frequência intermediária (CEFI) (RR = 1,4, IC = 1,2-1,6), mas não de ter CCD. Quando a mãe tinha CCD, o risco de a criança ter CCD foi 13 vezes maior, mas não de ter cefaleia episódica. Os modelos de análise multivariada confirmaram que a presença de cefaleia na mãe ou no pai era capaz de predizer, de forma independente, a presença de cefaleia na criança (p < 0.001) a presença de cefaleia em ambos os pais e a frequência de cefaleia na mãe foram capazes de predizer a frequência de cefaleia na criança (p < 0.001 para ambos).
Nossa impressão final é de que não apenas a migrânea se agrega em famílias, mas também a frequência de cefaleia(47).
Síndromes periódicas da infância
O conceito de que a migrânea pode manifestar-se bem precocemente na vida da criança através de outros sintomas que não a cefaleia surgiu, em 1933, com Wyllie e Schlesinger, que denominaram por “síndromes periódicas da infância” uma série de manifestações recorrentes e transitórias que ocorriam em crianças sem uma causa determinada e que persistiam na vida adulta sob a forma de vômitos e migrânea, entre elas: febre de origem desconhecida, vômito, dor abdominal e cefaleia(48).
Ao longo do tempo, várias outras manifestações clínicas recorrentes sugeriam uma associação com a migrânea: dores em membros (“dores do crescimento”)(49,50), parassônias(55), cinetose(51), torcicolo paroxístico benigno(52), pseudoangina(53), síndrome de Tourette(54), hiperatividade(55) e vertigem paroxística benigna da infância(56). No entanto, enquanto algumas evidências correlacionam alguns desses sintomas periódicos com a migrânea, a maioria dos estudos o fazem de forma anedótica.
A ICHD-1 (1988) caracterizou a vertigem paroxística benigna da infância (VPBI) e a hemiplegia alternante da infância como síndromes periódicas da infância possivelmente precursoras ou associadas à migrânea. Em contrapartida, de forma pragmática, considerava impossível propor critérios para delinear os “múltiplos, heterogêneos e indefinidos transtornos compreendidos sob o termo síndromes periódicas, migrânea abdominal e vômito cíclico”, tarefa factível “apenas quando marcadores da migrânea fossem identificados”(22). A ICHD-2 (2004), no entanto, trouxe modificações importantes nesse capítulo, em consequência de um maior corpo de evidências científicas reunidas nos 15 anos de intervalo da primeira edição. A VPBI foi mantida e foram incluídas a migrânea abdominal e os vômitos cíclicos, cada qual com critérios diagnósticos específicos. A hemiplegia alternante da infância foi suprimida(23).
O estudo e reconhecimento dessas manifestações interictais da migrânea pôde ajudar-nos a compreender melhor a história natural dessa cefaleia, sua fisiopatogenia e prognóstico, viabilizando algoritmos de triagem para seleção de crianças com risco de desenvolver essa cefaleia.
Arruda e cols. compararam a prevalência dessas manifestações em um grupo de crianças com migrânea e um grupo-controle de crianças sem cefaleia, pareados por sexo e idade(57). Os autores observaram, no grupo de crianças com migrânea, uma prevalência significativamente maior de cinetose, dores em membros, dor abdominal recorrente, febre recorrente, sonambulismo, bruxismo, sonilóquio e terror noturno. Analisando a relação temporal entre o início dessas manifestações e o das crises de migrânea nas crianças do grupo em estudo, os autores observaram que cinetose, dores em membros, dor abdominal recorrente, febre recorrente, sonambulismo e sonilóquio haviam se manifestado predominantemente antes do início da migrânea, apontando para a possibilidade desses distúrbios serem considerados fatores de risco para esta cefaleia na infância(57).
C = crianças A = adolescentes.
* A apresentação intranasal de sumatriptano não tem sido mais encontrada no mercado brasileiro, apenas a forma oral.
** Evidências científicas:
Classe I – Evidência proporcionada por pelo menos um ensaio clínico bem desenhado, randomizado, com grupo-controle. Classe II – Evidência proporcionada por pelo menos um estudo clínico do tipo caso-controle ou estudos coorte.
Classe III – Evidência proporcionada por expertos, estudos não randomizados ou relato de casos.
Obs.: constam aqui apenas as drogas e apresentações existentes no mercado brasileiro.
Tratamento sintomático da migrânea na infância
Se a cefaleia for de moderada a grande intensidade e estiverem ausentes náuseas e vômitos, a primeira opção será paracetamol ou ibuprofeno, ambas as medicações apresentam evidências do tipo I na migrânea infantil. A presença de náuseas e vômitos reflete ação dopaminérgica sobre o trato digestivo, condição em que os medicamentos administrados por via oral não terão uma pronta absorção enteral. Em adolescentes nesta condição, uma boa opção é o uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), como o piroxicam e o cetorolaco de trometamina por via sublingual, dada sua pronta absorção e rápido início de ação (evidência tipo III)(24).
Na criança ou no adolescente em crise de migrânea de moderada a grande intensidade associada a náuseas e vômitos, uma opção são drogas antieméticas, como a metoclopramida e domperidona, seguidas de um analgésico comum ou AINE. Apesar da possibilidade de efeitos indesejáveis da série extrapiramidal (distonias, acatisia) dramáticos, mas de caráter absolutamente reversível, são medicações bastante úteis nesta condição(24).
Recomenda-se a repetição da dose do analgésico comum ou do AINE após quatro horas, caso a cefaleia persista. Caso a repetição da dose, todavia, não resolva a crise de migrânea, deveremos considerar a internação da criança para investigação e uso das seguintes medicações: diclofenaco (via retal), dipirona (endovenosa), clorpromazina (sublingual) e dexametasona (endovenosa)(24).
Os derivados da ergotamina devem ser evitados na infância pelo risco potencial de efeitos colaterais decorrentes de vasoconstricção. Tais medicamentos estão contraindicados na fase de aura da migrânea, pois são descritos casos de quadros isquêmicos cerebrais.
Os triptanos têm lugar assegurado por evidências científicas no tratamento da crise de migrânea no adulto. Na infância e adolescência, os estudos mostram evidência do tipo I apenas para o sumatriptano (via oral e intranasal) e o rizatriptano (via oral) em adolescentes(24,59). Considerando a eficácia similar à dos analgésicos comuns e AINE e o alto custo em nosso meio, os triptanos não são considerados drogas de primeira linha no tratamento da crise de migrânea em crianças e adolescentes.
TAB = Transtorno Afetivo Bipolar TDAH = Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade MNV = Manifestações Neurovegetativas PVM = Prolapso de Válvula Mitral.
* Evidências científicas:
Classe I – Evidência proporcionada por pelo menos um ensaio clínico bem desenhado, randomizado, com grupo-controle. Classe II – Evidência proporcionada por pelo menos um estudo clínico do tipo caso-controle ou estudos coorte.
Classe III – Evidência proporcionada por expertos, estudos não randomizados ou relato de casos.
Obs.: constam aqui apenas as drogas e apresentações existentes no mercado brasileiro.
Tratamento profilático da migrânea na infância
A literatura não estabelece os critérios para indicação do tratamento profilático da migrânea na infância e adolescência, nem tampouco o seu tempo de duração. No entanto, a instituição do tratamento profilático deve ser feita quando for evidente o impacto da doença sobre a qualidade de vida da criança ou adolescente, portanto, não devemos considerar apenas a frequência, mas também outros parâmetros importantes, como a duração e a incapacidade provocada pelas crises(24).
São escassos os estudos acerca da profilaxia da migrânea na infância e adolescência e só existem evidências de nível 1 (estudos randomizados, duplo-cegos e controlados por placebo) para a flunarizina e o topiramato. As demais drogas, muitas delas tradicionalmente utilizadas neste tratamento, apresentam nível de evidência menor.
O racional para a escolha da medicação profilática deve contemplar as oportunidades e contraindicações existentes no paciente em questão. Oportunidades são outras condições clínicas presentes na criança ou adolescente com migrânea que podem ser também beneficiadas com a mesma medicação profilática. Um exemplo é o uso de flunarizina, ciproeptadina ou pizotifeno numa criança inapetente que apresente migrânea, uma vez que estas drogas podem aumentar o apetite(24).
A Tabela 3 relaciona as drogas indicadas para o tratamento profilático da migrânea na infância e adolescência, de acordo com este racional.
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Marco A. Arruda |
Instituto Glia, Ribeirão Preto, SP, Brasil. |
Regina C. A. P. Albuquerque |
Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, SP, Brasil. |
Marcelo E. Bigal |
Merck Research Laboratories, Whitehouse Station, NJ, EUA. Departamento de Neurologia do Albert Einstein College of Medicine, Bronx, NY, EUA. |
Correspondência: Marco A. Arruda. Av. Braz Olaia Acosta, 727, s. 310, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil – CEP 14026-040 Fone (fax): (16) 3911-9234 [email protected] Potenciais conflitos de interesse: Este trabalho de revisão foi realizado sem suporte financeiro comercial. O dr. Marco A. Arruda já recebeu bolsa da Janssen-Cilag para palestras e atividades educacionais sobre o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. O dr. Marcelo E. Bigal é diretor global para a área de Neurociências da Merck Research Laboratories e detém ações e opções de ações da Merck. A dra. Regina C. A. P. Albuquerque não declara potenciais conflitos de interesse. |
Pediatria Moderna Mai/Jun 10 V 46 N 3
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Indexado LILACS: S0031-39202010003000001 Unitermos: cefaleia, migrânea, infância, adolescência, tratamentoUnterms: headaches, migraine, childhood, adolescence
Fonte:moreirajr.com.br