O LIVRO DAS IGNORAÇAS
Publicada em 1993, a obra é composta por três partes:
Uma didática da invenção
Uma didática da invenção, que tem como subtítulo As coisas que não existem são mais bonitas, que faz parte do poema II do terceiro livro: “Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas/ ruas de Corumbá/ Me disse que as coisas que não existem são mais/ bonitas”. Nessa primeira parte, onde os poemas são nomeados por números romanos, o poeta joga com as sensações, inverte e transforma as características dos objetos e das palavras, como nos exemplos: “E um sapo engole as auroras” (poema IV) e “Hoje eu desenho o cheiro das árvores” (poema IX), construções que tiram das palavras seus sentidos corriqueiros, fugindo da linguagem comum. Para entender mais sobre a importância da leitura, você pode conferir nosso artigo sobre A Importância da Leitura.
Os deslimites da palavra
Na segunda parte, denominada Os deslimites da palavra, estão presentes as mesmas características da primeira, é dividida em três dias e cada dia é dividido em por numerais, sendo que cada número é o título de um poema.
Mundo pequeno
Na última parte, Mundo pequeno, em que os poemas também são intitulados por números romanos, o poeta rompe com a gramática da língua, criando construções como as dos versos do poema I “Ele me coisa/ Ele me rã/ Ele me árvore”. Como na primeira parte, aqui também há um subtítulo, Aromas de tomilhos dementam cigarras, que faz parte do poema IV da terceira parte.
O título do livro faz referência à ignorância, com sentido de desconhecimento de uma realidade, à própria desconstrução do conhecimento, que remete à origem de tudo, já que antes de conhecer é preciso desconhecer.
Nesse livro, a invenção poética não significa necessariamente fazer o novo, mas sim desautomatizar, desconstruir aquilo que é comum, que se tornou normal na poesia. Para isso, o poeta utiliza e cria verbos e substantivos com o prefixo de negação des-, como “descomeço”,” desinventar”, “deslimite”.
Além disso, o grande número de versos interrogativos tem função de exacerbar a incerteza do poeta e o aproximar do leitor, que, como qualquer ser humano, ainda tem dúvidas.
Análise do Poema VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos-
O verbo tem que pegar delírio.
O poema acima pertence à primeira parte de O livro das ignorãças e é composto por 13 versos, todos brancos e livres. Há encadeamento dos pares de versos 3 e 4; 7 e 8; 10 e 11. A pontuação com vírgulas, pontos e travessão confere um ritmo pausado ao poema, dando a quem o lê a sensação de que os versos foram construídos um de cada vez, cuidadosamente.
Já no primeiro verso, o poeta faz a desconstrução de uma passagem bíblica do livro de João 1:1, “No começo era o Verbo (…)" pela adição do prefixo des-, que tem função de tornar negativa a palavra a qual ele se junta. Esse prefixo parece sugerir, no poema, uma inversão do começo, que não seria o fim, mas a desconstrução da linearidade do tempo, criando o neologismo “descomeço”.
Depois do surgimento do verbo, ocorreu o “delírio do verbo”, que pode ser entendido como a mudança de função desse verbo, como se pode concluir pelos versos 7 e 8: “Então se a criança muda a função de um verbo, ele/
delira”. Essa capacidade de criar novas funções para as palavras, de brincar com a linguagem, é algo próprio das crianças, já que elas ignoram as funções dos verbos e não têm compromisso algum com a gramática e até mesmo com a lógica que os adultos têm.
No verso 4, a construção “eu escuto a cor dos passarinhos” atende aos requisitos sintagmáticos, ou seja, é constituída por sujeito, verbo e objeto), porém ela contraria os princípios paradigmáticos ao dar nova função ao verbo escutar. Essa construção pode ser lida como um trocadilho: eu escuto acordos (acordes).
No verso 9, o eu –lírico conclui, pelo uso da conjunção conclusiva pois, que fazer poesia é fazer nascimentos, ou seja, criar, fazer nascer nas palavras novos sentidos, diferentes daqueles que já estão cristalizados pelo uso cotidiano. Para isso, é preciso que o verbo “pegue delírio”, que o poeta não se prenda ao seu significado ou à sua função e o desconstrua, como se ele fosse uma criança. O próprio verbo delirar sofre essa alteração de função, já que esta é uma ação própria de seres humanos e não de categorias gramaticais, o que faz com que verbo seja personificado.
A metalinguagem é o mais importante recurso linguístico utilizado pelo poeta, a qual se pode observar nos versos 10, 11 e 12, nos quais o eu – lírico ensina, dentro do próprio poema, como se deve fazer poesia: delirando o verbo, ou seja, a palavra; transformando seu sentido e a lógica dos versos.
Manoel de Barros
Autor: mariana grava de moraes
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