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História da Educação: Período Moderno e a Educação Brasileira Contemporânea sob uma Perspectiva Libertária

Conheça a história da educação no período moderno e sua evolução na educação brasileira contemporânea sob uma perspectiva libertária. Saiba mais sobre a importância da educação para o crescimento e desenvolvimento de uma sociedade livre e justa.

História da Educação: Período Moderno e a Educação Brasileira Contemporânea sob uma Perspectiva Libertária

PERÍODO MODERNO

História da Educação – Período Moderno
Resumo:
  • Surge no século XVII;
  • Separação entre a igreja católica e o estado;
  • Principais pensadores: Pestalozzi, Herbat e Froebel;
  • Consolidação da burguesia.

    Duas instituições educativas, em particular, sofreram uma profunda redefinição e reorganização na Modernidade: a família e a escola, que se tornaram cada vez mais centrais na experiência formativa dos indivíduos e na própria reprodução (cultural, ideológica e profissional) da sociedade. As duas instituições chegaram a cobrir todo o arco da infância – adolescência, como “locais” destinados à formação das jovens gerações, segundo um modelo socialmente aprovado e definido.

A família, objeto de uma retomada como núcleo de afetos e animada pelo “sentimento da infância”, que fazia cada vez mais da criança o centro-motor da vida familiar, elaborava um sistema de cuidados e de controles da mesma criança, que tendiam a conformá-la a um ideal, mas também a valorizá-la como mito, um mito de espontaneidade e de inocência, embora às vezes obscurecido por crueldade, agressividade etc. Os pais não se contentavam mais em apenas pôr filhos no mundo. A moral da época impõe que se dê a todos os filhos, não só ao primogênito, e no fim dos anos seiscentos também as filhas, uma preparação para a vida. A tarefa de assegurar tal afirmação é atribuída à escola.

Ao lado da família, à escola: uma escola que instruía e que formava que ensinava conhecimentos, mas também comportamentos, que se articulava em torno da didática, da racionalização da aprendizagem dos diversos saberes, e em torno da disciplina, da conformação programada e das práticas repressivas (constritivas, mas por isso produtoras de novos comportamentos). Mas, sobretudo, uma escola que reorganizava suas próprias finalidades e seus meios específicos. Uma escola não mais sem graduação na qual se ensinavam as mesmas coisas a todos e segundo processos de tipo adulto, não mais caracterizada pela “promiscuidade das diversas idades” e, portanto, por uma forte incapacidade educativa, por uma rebeldia endêmica por causa da ação dos maiores sobre os menores e, ainda, marcadas pela “liberdade dos estudantes”, sem disciplina interna e externa. Com a instituição do colégio (no século XVI), porém, teve início um processo de reorganização disciplinar da escola e de racionalização e controle de ensino, através da elaboração de métodos de ensino/educação – o mais célebre foi a Ratio studiorum dos jesuítas – que fixavam um programa minucioso de estudo e de comportamento, o qual tinha ao centro a disciplina, o internato e as “classes de idade”, além da graduação do ensino/aprendizagem.

Também é dessa época a descoberta da disciplina: uma disciplina constante e orgânica, muito diferente da violência e autoridade não respeitada. A disciplina escolar teve raízes na disciplina religiosa; era menos instrumento de exercício que de aperfeiçoamento moral e espiritual, era buscada pela sua eficácia, como condição necessária do trabalho em comum, mas também por seu valor próprio de edificação.    Enfim, a escola ritualizava o momento do exame atribuindo-lhe o papel crucial no trabalho escolar. O exame era o momento em que o sujeito era submetido ao controle máximo, mas de modo impessoal: mediante o controle do seu saber. Na realidade, o exame agia, sobretudo como instrumento disciplinar, de controle do sujeito, como instrumento de conformação.

 


Período Moderno

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA NUMA PERSPECTIVA LIBERTÁRIA

Sílvio Gallo

RESUMO

A educação contemporânea pode ser analisada sob o prisma libertário em seus mais diversos matizes. Nesta oportunidade, privilegiarei apenas um deles: um aspecto macropolítico, dizendo respeito às mediações entre o Estado, a sociedade e a educação.

 

 

Trata-se de debater aquilo que a maioria dos educadores progressistas considera óbvio: a educação pública e universal deve ser uma função do Estado. Mas será de fato necessária esta mediação do Estado entre a sociedade e a educação? Uma educação gerida pelo Estado não estará à mercê de seus interesses políticos e sociais? A comunidade não pode gerar e gerir sua própria escola, organizando-a segundo seus interesses e necessidades? Em outras palavras: entre o sistema público-estatal e o sistema privado de ensino, não podemos viabilizar um sistema público-comunitário de ensino, com base nos princípios libertários?

 

Quando falamos em educação pública, pensamos, de forma quase que imediata, em educação fornecida pelo Estado, como se entre as duas expressões houvesse um laço, invisível e indissolúvel; mas será que conceitualmente podemos reduzir a educação pública apenas àquela fornecida pelo Estado?

 

Num movimento que ganhou mais ênfase durante as discussões que nortearam a redação da Constituição Federal promulgada em 1988 e que agitou-se novamente em torno das discussões sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em dezembro de 1996, alguns grupos – bastante heterogêneos em sua composição – defenderam e têm defendido através de seus poderosos lobbies que a educação pública não pode ser resumida à educação estatal, mas englobaria ainda outras modalidades de ensino. Um exemplo típico seria a parcela das escolas confessionais que defendem para si próprias o epíteto de escolas comunitárias, por pautarem-se em reais interesses sociais – calcados na chamada “opção preferencial pelos pobres” da Igreja Latino-americana – e não em meros interesses financeiros e empresariais, como as escolas privadas propriamente ditas.

 

À parte dos verdadeiros e honestos interesses sociais destas escolas, que em alguns dos casos realmente existem, não podemos deixar de explicitar que por trás desta simpática auto-denominação passa, sorrateiramente, o interesse de conseguir acesso às verbas que o poder público destina à educação que, se não são no montante que seria minimamente desejável para suprir nossas necessidades, também estão muito longe de serem desprezíveis. Assim, as ditas escolas comunitárias também receberiam verbas estatais que, a princípio, deveriam ser encaminhadas apenas e tão somente àquelas escolas cuja manutenção e gerência é função direta do Estado.

 

Na 6ª Conferência Brasileira de Educação, realizada em São Paulo em 1991, Carlos Roberto Jamil Cury fez a crítica dos interesses destas escolas “públicas não-estatais”:

          “Na segunda vertente, caso do comunitário defendido como ‘público não-estatal’, a fundamentação é levemente diferenciada. A escola privada-confessional, sobretudo aquela voltada para a ‘opção preferencial pelos pobres’, incluiria aquelas parcelas do povo marginalizado pelo Estado (isto é: os ‘pobres’ no sentido bíblico), nas quais confluem do direito à diferença (já que a escola oficial não oportunizaria esta diferença), mas pela qual teriam que pagar, e a impossibilidade de pagar e com isto de ter acesso àquela diferença.

          “Aqui, o discurso da parte é daquele que se autodelega poderes para se afirmar como voz de um todo sem vez e voz, mas um todo fora do âmbito estatal. O discurso se tem na conta de um representante de uma outra totalidade, em que o lucro não seria a base da sociedade.

          “Por vezes, diria eu, há uma espécie de discurso quase-que-anarquista, pelo qual o Estado banca recursos, a comunidade gerencia a escola e, porque esta é comunitária, a gestão da mesma implicaria a prestação aberta de contas. É neste sentido que ela se autodenomina ‘pública não-estatal’: pela abstenção do lucro e pela transparência nas contas e participação dos interessados.”

 

Para a questão que é de nosso interesse e deixando de lado o juízo ético-político sobre essas escolas comunitárias, essa sua ação (ou seu discurso, pelo menos) é importante e profícua, pois coloca em xeque a exclusividade do Estado em oferecer uma educação que seja pública, isto é, voltada para todos e para os interesses comuns. Se outros grupos sociais e/ou instituições também podem desenvolver um processo educacional público, será mesmo necessária essa onipresente e onipotente mediação do Estado?

 

Hoje vemos a educação, antes de tudo, como uma função do Estado, assim como a saúde; a iniciativa particular, no caso da educação, deve funcionar apenas no nível complementar ou de escolha ideológica dos pais. Esta escolha é, porém, bastante limitada, pois os currículos, atividades etc. são todos definidos, regulamentados e fiscalizados pelo Estado. Mas por que é precisamente esta a visão socialmente dominante entre nós?

 

Se estudamos a questão conceitual do Estado moderno e a gênese da instrução pública, fica claro que a educação como função do Estado é um fenômeno histórico, bem definido e bem caracterizado; podemos precisar como, quando e por que surgiu, como se desenvolveu, como se dá o funcionamento dos vínculos com o Estado, a que interesses ela esteve e está vinculada, quais foram seus sucessos e seus fracassos e por que eles se deram.

 

Uma das funções determinantes na gênese histórica da instrução pública, talvez mesmo a mais importante, foi a da promoção da nacionalidade. Em um contexto bem específico da Europa da época, tratava-se de incutir na população um sentimento cívico de nacionalidade que fortalecesse os laços eminentemente políticos que possibilitavam a constituição dos Estados nacionais. Uma população largamente ignorante que pouco ou nada conseguia enxergar além de sua estreitíssima esfera social precisava ver crescer em si mesma um senso de abrangência quase que impensável: camponeses que nada conheciam além das terras em que trabalhavam e das poucas pessoas com quem tinham contato, aldeões que muito raramente conseguiam ultrapassar os limites da vila precisavam, de repente, conseguir intuir limites geográfico-territoriais e populacionais muito além de suas capacidades, para poder abarcar em si o conceito de nação e o de nacionalidade. A conceituação, porém, não era o bastante: era preciso criar laços afetivos; o indivíduo precisaria sentir-se parte integrante da nação para defendê-la, se preciso até com a própria vida. Sem dúvida alguma, a criação de laços sociais, profundamente entranhados nos indivíduos, criaria uma “amarração” muito mais forte. Podemos aquitraçar uma analogia com a teoria do poder de La Boétie: quanto mais disseminado entre os indivíduos o sentido da nacionalidade, mais forte torna-se a Nação mesma.

 

Neste contexto, urgia que aqueles indivíduos, em sua maioria iletrados e ignorantes, desenvolvessem uma maior capacidade de abstração e conceituação, o que só seria possível através da instrução, à qual eles só poderiam ter acesso caso as condições fossem enormemente facilitadas. A educação pública tinha, pois, no momento de sua origem, uma função política específica e importante a cumprir – significava a manutenção e o crescimento do próprio Estado – além de, é claro, acalmar os ânimos das massas que reivindicavam melhores condições sociais de vida.

 

O processo que acontece tardiamente no Brasil é análogo a este, embora mudem bastante as especificidades; a importação das ideias, porém, tanto do lado dos trabalhadores, cada vez mais influenciados pelo crescente fluxo de imigração europeia que trazia para cá as “visões da modernidade”, quanto do lado dos republicanos que, profundamente embebidos pelo positivismo europeu, vislumbravam um destino de “ordem e progresso” onde a educação é peça-chave, garante a implantação de nosso sistema de instrução pública, muito embora os interesses do Estado sejam outros.

 

Voltando ao momento presente, não são poucos os que afirmam que o país vive hoje uma crise de nacionalidade, e que urge que despertemos o sentimento cívico na população. A campanha ganha a mídia de forma nada subliminar, mas intensamente: a grande imprensa, o rádio e a televisão pululam de discursos cívicos e nacionalistas; não bastando isso, novelas começaram, nos últimos anos, a tratar o tema e até mesmo o marketing assume uma feição cívica, com o nacionalismo sendo usado para vender de sabonetes a serviços bancários. Numa outra face da moeda, empresários abandonam seus interesses privados para assumir, na feição pública, uma imagem de “defensores da pátria”, de preocupados e comprometidos com a situação político-social do país.

 

Correndo o risco de sermos crucificados pelos defensores do “pensamento politicamente correto” – essa outra pérola da modernidade! – cabe aqui que enfrentemos o problema com a profundidade conceitual que ele merece. Devemos, pois, colocar a questão: precisamos realmente desse sentimento de nacionalidade? Ou, aprofundando ainda mais: tem algum sentido para nós o nacionalismo?

 

Para assegurar a pretendida profundidade da resposta, faz-se imprescindível que busquemos o apoio da filosofia da cultura numa obra fundamental de Gilberto de Mello Kujawski, A Crise do Século XX. Nessa obra, ele analisa a crise contemporânea como, antes de tudo, a crise da modernidade, apoiado um pouco mais em Ortega y Gasset e um pouco menos em Julian Marías. Nessa análise, ele nos mostra que um dos conceitos cânones da modernidade é exatamente o conceito de Nação, e orteguianamente demonstra que as nações não nascem nem da unidade lingüística nem das fronteiras territoriais comuns, mas, ao contrário, que essas duas características são decorrentes do próprio ato originário de uma nação: o pacto político. Esse pacto é um ato cotidiano, refeito e recriado a cada instante, lançando-se, como utopia, ao futuro. Após demonstrar que a ideia de nação representa um avanço astronômico em abstração, se comparada com a polis grega ou a urbs romana, nas quais, dada a limitação no tamanho populacional havia um relacionamento face-a-face entre os indivíduos e, portanto, uma instituição política mais direta, ele afirma que a nação, ao contrário, é a constituidora dos indivíduos.

 

          “O nome ‘nação’, assinala Ortega, é sobremaneira feliz por insinuar desde logo que ela é algo prévio a toda vontade constituinte dos seus membros. Está aí antes e independente de nós, seus indivíduos. É algo em que nascemos, não algo que fundamos. A história de toda polis começa por uma real ou legendária fundação (ktisis). Mas a nação nós a temos às costas, é uma vis a tergo, e não só uma figura à vista, diante de nós, como era a polis para o cidadão. Nós não fazemos a nação, ela é que nos faz, nos constitui, nos dá substância.”

 

Para manter essa abstração constituinte dos indivíduos é preciso, porém, que eles a recriem permanentemente através do pacto; a estabilidade temporal de uma nação reside na re-criação contínua, ad infinitum, de sua instabilidade. Daí o fato de a educação ser de suma importância na construção e manutenção de um projeto nacional. Não se constrói uma nação, assim como ela não pode viver, sem o concurso direto de toda a população, e a educação vai justamente criar e animar os laços de civismo que constituirão o orgulho da nacionalidade – algo puramente artificial e abstrato, portanto.

 

Assim, se realmente pretendemos fazer deste país uma nação, a educação e a mídia terão importância capital. Mas é aqui que a filosofia da cultura de Kujawski vem em nosso apoio: faz sentido a defesa da construção de um projeto nacional para o Brasil hoje?

 

          O que o filósofo orteguiano vai demonstrar é que a América Latina em geral e o Brasil em particular “perderam o bonde da modernidade”; essencialmente, nós nunca fomos modernos, pois as condições histórico-culturais de nossa região estiveram sempre muito distantes das condições européias, o palco por excelência da modernidade. Deixando de lado a pluralidade de conceitos que sustentam a modernidade e atendo-nos apenas a um deles, o de nação, podemos afirmar, com toda certeza, que os países latino-americanos jamais constituíram-se em nações como as européias, assim como os Estados Unidos da América nada mais são do que uma federação de cinquenta Estados. Mas, hoje, com a crise da contemporaneidade, a própria nação está em crise:

 

          “O que está superado não é propriamente a nação, como realidade social e histórica, mas sua personificação política, o Estado-nação, com seu ideal renitente de autarquia. As nações, enquanto formas históricas de convivência, como estilos diferenciados e originais de vida, devem subsistir integradas em tipos mais amplos de organização política, sem que para tanto devam perder suas características. As regiões se conservam intactas no seio de nações unificadas há séculos.”

 

O possível desenvolvimento político das atuais nações deve dar-se no sentido de uma supranacionalidade, com a diluição do poder dos Estados-nação:

          “Tudo inclina as nações contemporâneas à convergência num novo tipo de poder, o poder supranacional, baseado na soberania compartilhada. Enquanto a soberania permanecer ciumentamente monopolizada pelas nações, individualmente, o mundo não terá paz e a ONU será uma figura decorativa. O que falta à Organização das Nações Unidas é um direito internacional que seja uma realidade, e não piedosa ficção. Todo o direito sem poder de sanção severa e efetiva não passa de ficção. A ONU não tem meios de aplicar sanções eficazes aos Estados infratores devido à falta de um verdadeiro direito internacional. E este só se poderá constituir quando a carapaça da ‘soberania nacional’ for rompida, para possibilitar convivência mais estreita, mais produtiva e dinâmica entre as nações. Ademais, a soberania compartilhada não é novidade. Marías lembra que a Espanha se formou quando os reinos de Castela e Aragão passaram a ‘mandar juntos’.”

 

Deste modo, a crise da modernidade não é a nossa crise, assim como a busca de uma nova alternativa política, mais abrangente, para os Estado-nação não é, necessariamente a nossa busca. É neste contexto que levamos uma certa vantagem sobre a Europa: por não sermos modernos, é muito mais simples para nós superarmos a crise da modernidade, achar nosso caminho próprio e particular, como também afirmava, partindo de um outro referencial, o francês Félix Guattari, ao explicar que a criatividade européia está morta, e que a esperança da humanidade hoje reside na inventividade do assim chamado Terceiro Mundo.

 

Podemos, sem dúvida alguma, engajarmo-nos no projeto de encontrar a modernidade, a despeito do atraso histórico e da busca que se assemelharia a correr atrás de um crepúsculo que a cada instante mais e mais prenuncia o anoitecer, e aí a construção de um projeto nacional será de extrema importância e a educação pública terá seu papel cívico a desempenhar, de forma determinante. Mas qual seria o sentido de buscar uma fórmula histórica que se “desmancha no ar”, parafraseando Marx?

 

Mas, se mais sabiamente, optarmos por dedicarmo-nos socialmente a um projeto inovador e transformador em sua singularidade, teria então sentido o papel que tradicionalmente se atribui à educação pública? Não deveria ser ela profundamente reformulada, passando a ser construída comunitariamente, com o trabalho e o engajamento responsável dos indivíduos, em consonância com o caminho escolhido que, pensamos, deveria ser o do desenvolvimento de uma nova vivência comunitária, que resgatasse para a ação política a dimensão da ampla participação popular?

 

Fechada esta contextualização histórico-conceitual, podemos retomar, agora melhor amparados, o problema da educação pública como função exclusiva do Estado e perguntar: se não existem já as bases históricas que dariam sentido para um amplo sistema de educação pública estatal, o que leva parcelas tão significativamente esclarecidas e engajadas da população a reivindicá-la tão intensamente?

 

Em meio à multiplicidade de sentidos que permeia toda situação concreta, duas circunstâncias aparecem como as principais e determinantes a suscitar tal reivindicação. De um lado, é significativo o fato de a sociedade estar imersa na ideologia liberal, tão competentemente trabalhada e distribuída pela burguesia nos últimos séculos. Essa ideologia liberal está de tal modo entranhada no imaginário social e na consciência individual do homem contemporâneo que mesmo os críticos do liberalismo acabam por desenvolver, em última análise, um esquema de pensamento que é análogo ao do liberalismo; isto é, não existe um novo paradigma de pensamento, mas variações positivas e negativas de um mesmo paradigma. Sartre argutamente afirmou a mesma coisa em seu Questão de Método, ao definir o marxismo como a filosofia insuperável de nosso tempo; dizer que enquanto não forem superadas as condições histórico-sociais que deram origem ao marxismo não surgirá uma nova filosofia, é afirmar que o marxismo, apesar de expor e desmontar a lógica do capital, continua, em última instância, a desenvolver a mesma lógica.

 

A lógica implacável do liberalismo instalou em cada um de nós, como corpo social, a ideia de que o Estado é o provedor da sociedade; sem Ele nada somos, sem Ele, o grande Senhor Civilizador, somos feitos bárbaros em luta pelo fogo. Assim, acostumamo-nos à cômoda situação de termos um “indivíduo coletivo”, superior a nós, mas que, no final das contas, é constituído por nós mesmos, que amavelmente assume por nós as nossas responsabilidades, como a de educar às nossas crianças. Não nos debruçaremos aqui sobre os traços psicanalíticos do ser humano que o levam a fugir de suas responsabilidades, de resto já bem explorados por investigadores da psiquê humana como Erich Frömm ou Wilhelm Reich, por exemplo, ou mesmo por filósofos como o próprio Sartre anteriormente citado; basta-nos assinalar que, inconscientemente, preferimos deixar por conta do Estado a tarefa de educar do que tomá-la para nós, com todas as responsabilidades que isso significaria.

 

De outro lado, a segunda circunstância que anunciávamos diz respeito ao fato de o Estado ter tomado gosto pela atividade da educação. Sem sombra de dúvida, o “indivíduo coletivo” que exprime-se na abstração do Estado tomou consciência do poderoso instrumento que tão inocentemente foi colocado em suas mãos e, não maquiavelicamente – o que significaria uma ação consciente na perspectiva valorativa – mas como resultado de sua própria lógica interna, de seu modo de ser, arvora-se em Senhor Civilizador, Pedagogo-Mor das Massas Incultas que, sozinhas, estariam destinadas a perecer.

 

Em outras palavras, experimentamos dois fatos complementares que se reforçam reciprocamente: os indivíduos fogem à sua responsabilidade deixando a educação a cargo do Estado e passando a exigi-la deste; este, por sua vez, toma gosto pela ideia e não quer mais abandoná-la, fiscalizando mesmo as atividades educacionais que colocam-se fora de seu raio de ação ou, pelo menos, tentam construir-se à sua sombra.

 

O fato é que o fenômeno ideológico é muito mais amplo e, portanto, tem uma importância maior do que aquela que deixa antever certo reducionismo marxista. Para além da falsificação do real e da “câmara escura” que inverte a realidade, a ideologia pode e deve ser compreendida, em horizontes menos estreitos, como fenômeno encarnado no cotidiano da existência concreta. Não estamos negando a importância da Ideologia Alemã, que é magistral na análise do fato estrito que ela própria se coloca como objetivo, mas apenas afirmando que outras análises, como as de Max Weber ou as de Wilhelm Reich na Psicologia de Massas do Fascismo, por exemplo, podem nos trazer uma visão muito mais abrangente do fenômeno. Se escaparmos de nossa cegueira habitual, conseguindo ao menos vislumbrar a multiplicidade do real, poderemos entender a importância que a educação assume para o Estado, como os anarquistas, dentro de sua relativa ingenuidade, perceberam e denunciaram já há tanto tempo.

 

Se tomamos a ideologia como parte do aparelho reprodutor do Estado e da estrutura social que ele gerencia, percebemos que a escola é, ainda hoje, um poderoso veículo ideológico nas mãos do Estado, embora esteja cada vez mais perdendo terreno para os meios de comunicação de massa. Como a educação não acontece apenas no contexto da instituição escolar, não é nenhum absurdo prever que o Estado cada vez mais utilize-se da mídia, não só como veículo de informação ideológica, mas também como veículo de educação ideológica, o que já está implícito em alguns projetos de ensino à distância desenvolvidos pelo tecnicismo da década de setenta, cujo exemplo mais próximo hoje provavelmente esteja representado nos Telecursos e mesmo nas Telesalas. Deixando de lado os futurismos, hoje a escola ainda é um veículo importante para levar a amplas camadas da população, em idades em que são mais facilmente influenciáveis, a ideologia que o Estado quer ver disseminada entre a população.

 

Alguém poderia objetar que, no caso brasileiro, o descaso que o Estado vem, há décadas, apresentando com relação à educação, refutaria essa tese. Entretanto, esse suposto descaso do Estado é também uma ação política e ideológica muito clara: oferecer uma educação de baixa qualidade ou mesmo não oferecer vagas em quantidade suficiente para atender às necessidades da população mais carente é deixá-las, cada vez mais, à mercê de um veículo mais dinâmico na difusão ideológica e menos crítico, por ser apenas receptivo que, a cada dia, chega a um maior número de lares, a televisão. Não caiamos aqui, porém, no discurso demodé de ver na televisão a “monstra condenada, a fenestra sinistra”, pois é óbvio também seu conteúdo positivamente educativo, desde que bem utilizado. O fato é que o aparente descaso do Estado com a educação pública pode mascarar um interesse muito grande em dar ao povo uma ilusão de educação; ainda em meados do século passado, Proudhon afirmava que a educação das massas não passava de rudimentos:

 

          “O que querem para o povo não é a instrução; é simplesmente uma primeira iniciação aos rudimentos dos conhecimentos humanos, a inteligência dos signos, uma espécie de sacramento de batismo intelectual, consistente na comunicação da palavra, da escrita, dos números e das figuras, mais algumas fórmulas de religião e de moral. O que lhes importa é que, ao ver estes seres que o trabalho e a mediocridade do salário mantêm em uma barbárie forçada, desfigurados pela fadiga cotidiana, curvados sobre a terra, as naturezas delicadas que constituem a honra e a glória da civilização possam constatar, ao menos, nestes trabalhadores condenados ao penar, o reflexo da alma, a dignidade da consciência e que, por respeito a eles mesmos, não precisem envergonhar-se demais pela humanidade.”

 

Além do caráter de disseminação da ideologia, constituindo-se no aparelho de Estado que garante a reprodução da produção, poderíamos agregar também à importância ideológica da escola para o Estado a noção weberiana de que a escola não é um instrumento de dominação propriamente dito, mas sim um instrumento de legitimação da dominação.

 

Posto que concordemos, pelo menos em parte, com a importância ideológica da escola para a manutenção da instituição política do Estado e do sistema social que ela suscita, seja no aspecto da disseminação dos conteúdos e formas ideológicas, seja no aspecto da legitimação mesma da dominação, consideramos como absolutamente inócuas – para não taxá-las de absurdas – as discussões que desenvolvem-se no sentido de exigir socialmente a melhoria da qualidade, a maior democratização do sistema público de ensino e a sua atuação para o resgate da cidadania do povo brasileiro. Passaremos a discuti-las, começando pela última, dado seu caráter mais globalizante.

 

A questão da educação como promotora da cidadania está, também, intimamente ligada à gênese histórica dos sistemas de instrução pública. Durante a Revolução Francesa, tratava-se de transformar o súdito, que apenas obedecia, em cidadão, que teria participação efetiva nos destinos da nação; para nós, após décadas vivendo sob regimes políticos que pouco ou nada respeitavam os direitos individuais e sociais, trata-se, argumentam seus defensores, de resgatar na população a consciência de seus direitos e deveres político-sociais. Mas, como belos discursos podem perfeitamente mascarar práticas sociais inócuas ou até mesmo impossíveis, cabe-nos perguntar: a cidadania, essa “noção ligada aos tempos heróicos”, pode, realmente, ser construída ou mesmo resgatada através da educação?

 

Primeiramente, precisamos colocar com muita clareza o caráter de historicidade do próprio conceito de cidadania; uma coisa era ser cidadão numa polis grega, outra muito diferente era o ser no calor revolucionário da França de fins do século dezoito, assim como outra coisa ainda é ser cidadão na sociedade contemporânea que pretendemos democrática. Procurando na filosofia política contemporânea o sentido da sociedade democrática, Patrice Canivez conclui que ser cidadão nessa sociedade é ser um “governante em potencial”.

 

Uma educação para a cidadania na sociedade democrática consistiria, pois, em preparar cada indivíduo para que seja um possível governante dessa sociedade; em outras palavras, formar não indivíduos passivos, mas indivíduos potencialmente ativos, que podem entrar em ação a qualquer momento, de acordo com os desenvolvimentos políticos da sociedade. Esta noção poderia dar sustentação para uma certa visão “militantista”, que procura fazer da escola um local de proselitismo político; nada mais errado, na concepção de Canivez: a escola é o espaço da cultura, e nela a construção da cidadania deve dar-se neste âmbito. Baseada em Eric Weil, mostra que a escola não é o lugar da política, isto é, um espaço de militância, mas é um lugar essencialmente político, pois é nela que se assimila toda a base conceitual necessária para a ação política eficaz.

 

A educação do cidadão deve, pois, circunscrever-se muito mais ao campo da cultura do que ao da política propriamente dita, o que em nada diminui o seu caráter essencialmente político. Para a constituição de uma sociedade democrática, a educação do cidadão deve privilegiar o aprendizado e o exercício do diálogo, base da própria democracia.

 

A relação da educação com a cidadania só tem sentido, então, se tomada num aspecto bastante restrito, delimitado pela historicidade da cidadania que ela vai promover; assim, não é o mesmo sistema público de ensino idealizado para produzir a transformação do súdito em cidadão durante a Revolução Francesa que vai produzir o cidadão ativo de uma sociedade democrática contemporânea. Dadas as características desse novo cidadão, seria interesse do Estado financiar um sistema de ensino que o produzisse? Discutiremos essa questão quando abordarmos o aspecto da democratização do ensino público, pois ambas estão muito intimamente relacionadas.

 

Passemos à discussão do primeiro aspecto dos três que havíamos levantado anteriormente, o que diz respeito à reivindicação da melhoria da qualidade do ensino oferecido pelo sistema estatal de educação. Já ficou mais do que claro que o Estado percebe a necessidade de oferecer às massas uma certa educação; sem dúvida, não a escola que queremos, mas a escola que Ele quer, embora na maioria das vezes os mecanismos de convencimento ideológico dos quais falamos funcionem perfeitamente, e sejam mais do que suficientes para garantir que aquilo que nós queremos – ou pensamos querer – seja exatamente aquilo que Ele quer.

 

Assim, a escola pública que temos é a escola pública que o Estado nos quer financiar, seja ela legitimadora da dominação, seja ela o mecanismo distribuidor de um arremedo de educação que mantenha o povo em um estado de semi-ignorância e apatia político-social, pareça isso um descaso do Estado com a educação pública ou não.

 

A reivindicação de uma educação pública de qualidade, deste modo, parece encontrar limites muito estreitos; enquanto ela significar o atendimento de uma necessidade do Estado liberal de prover o sistema de produção com profissionais tecnicamente melhor preparados, pode até encontrar eco nos administradores da educação estatal e ser atendida, virando mesmo ponto de pauta dos discursos oficiais. Ir muito além disso, porém, parece-nos improvável. Uma educação de qualidade, o que significaria proporcionar aos educandos condições para que assimilem não só o conjunto do legado cultural historicamente produzido pela humanidade, mas também condições para que tornem-se metodologicamente aptos a produzir eles mesmos o saber científico, afasta-se demasiado de uma mera capacitação tecnológica para um sistema de produção um pouco mais desenvolvido. Ora, não sejamos ingênuos: uma educação deste tipo choca-se frontalmente com os interesses estatais, seja de disseminação ideológica, seja de legitimação da dominação; tal educação impossibilitaria o objetivo da dominação ideológica e da manutenção da ordem social e, mais ainda, seria ela própria uma subversão dessa ordem, pois colocaria em xeque o sistema de exploração e distribuição desigual da produção social. Deste modo, seria paradoxal esperar do Estado uma educação pública de qualidade, obviamente tomando por princípio que a distribuição dessa educação fosse justa, alcançando amplas camadas da sociedade e não apenas uma elite de privilegiados, preparada para assumir os cargos da tecnocracia.

 

Alguns eminentes educadores e filósofos brasileiros da educação, trabalhando na produção de análises e concepções dialéticas da educação, têm colocado a questão da qualidade do ensino; um bom exemplo estaria no da Pedagogia Histórico-Crítica, que vem sendo desenvolvida já há duas décadas por Dermeval Saviani, acompanhado depois por um grupo de conceituados teóricos da educação, que defende que a escola pública deve dar instrumentos às classes desprivilegiadas para que possam enfrentar a burguesia em pé de igualdade no processo da luta de classes. E este instrumental de luta estaria representado justamente no acesso a um ensino de qualidade, como o que vimos discutindo. Como concepção pedagógica que se propõe pensar dialeticamente a educação e a ação transformadora em seu contexto, a Pedagogia Histórico-Crítica é bastante coerente com seus princípios; mas tentando enxergar através dos monstruosos e abstratos olhos do “Leviatã” – um imenso olho formado por milhões de olhos, provavelmente diria Hobbes – , teria praticidade tal concepção pedagógica?, isto é, permitiria – e ainda mais, financiaria – o Estado tal educação?

 

Não, não estamos propondo a volta às teorias crítico-reprodutivistas da década de setenta, que cairiam no impasse da impossibilidade da ação educacional transformadora, mesmo porque tais teorias já foram desmanteladas por autores do calibre de Georges Snyders e pelo próprio Saviani; entretanto, se aceitamos as concepções filosófico-políticas do Estado aqui discutidas e estamos falando da escola essencialmente como unidade de um sistema público-estatal de ensino, não que a luta de classes seja inexistente ou impossível no espaço social da escola, mas existem limites estreitos para a ação daqueles que procuram fazer da escola sua trincheira de lutas, seja em que aspecto for.

 

Poder-se-ia objetar que o Estado somos nós, que ele é nada mais do que o representante e promotor da rousseauniana “vontade geral” e que cabe ao conjunto da sociedade fazer com que o Estado promova e implemente a educação pública que queremos. Retrucaríamos, então, com a própria pergunta que intitula este capítulo: seria necessária essa intermediação do Estado para a realização de nossos interesses sociais?

 

Devemos reiterar que não discordamos do fato de que existem no sistema educacional público-estatal brechas que podemos usar para o desenvolvimento de um processo de auxílio à transformação da realidade social – já que a escola sozinha é incapaz de mudar toda uma estrutura social. O Estado, porém, continua o gerenciador da educação pública, e absolutamente nada nos garante que, a qualquer momento, ele não venha a retomar o absoluto controle do processo, destruindo os esforços coletivos que buscavam uma melhoria no ensino das classes populares, afrontando o próprio poder do Estado. Entretanto, se há o caminho da ação nas brechas deixadas pelo Estado, há também uma multiplicidade de caminhos novos a serem criados, à margem da ação estatal… Mais interessante seria que buscássemos novas formas de fazer social, afrontando diretamente a instituição Estado, e não servindo-nos dela, habitando suas brechas como nossos milhões de miseráveis habitam as brechas no concreto dos grandes viadutos de nossas ricas metrópoles.

 

Deixando um pouco de lado a questão da qualidade de ensino, à qual voltaremos adiante ao discutir o conjunto dos três aspectos problemáticos das reivindicações progressistas em relação ao sistema público de educação, passaremos agora ao aspecto mais diretamente político dos três, o da democratização do ensino público.

 

Esse aspecto divide-se em duas questões principais: de um lado, democratizar o acesso à escola, que significa estendê-la o máximo possível, até abarcar toda a população; de outro lado, democratizar a vivência política na escola, que se traduziria no desenvolvimento de um processo de educação cívica, de formação de um “cidadão consciente”.

 

Quanto à primeira questão, muito pouco resta a ser dito, pois democratizar o acesso à escola pública consiste, do ponto de vista lógico, na própria essência do sistema: se é público, deveria ser necessariamente dirigido a todos, a toda a população. Neste aspecto, é bastante questionável chamar de público um sistema de ensino que não consiga abarcar, na prática, a totalidade da população em idade escolar, como é o caso do sistema de educação brasileiro contemporâneo em que, antes mesmo de faltar qualidade, falta vaga para atender completamente à demanda.

 

Já a segunda questão ligada a este último aspecto é mais profunda e mais complexa, oferecendo uma maior margem para discussão. Devemos, de antemão, enunciar a tese que será trabalhada, e que pode ser resumida na seguinte fórmula: “a extremização da vivência e da gestão democrática na escola pública leva, necessariamente, ao rompimento desta com o Estado, assim como a extremização da gestão democrática do Estado leva à sua própria destruição.”

 

A tese acima enunciada está diretamente ligada à questão da relação entre o poder e a democracia, que, tomada em seus princípios políticos e levada às últimas consequências, significa que a democracia só tem sentido no contexto da existência do poder que, por sua vez, pressupõe a existência da dominação; se não há domínio de uns sobre outros, não há poder e não é necessária a organização deste poder. Sendo a democracia uma das formas de organização do poder – aquela que, por princípio, tenta minimizar o seu exercício, dividindo-o entre o maior número possível de indivíduos – , se não há poder, temos a completa autonomia individual e aí já não há mais lugar para a própria democracia. Em outras palavras, levar a democracia às últimas consequências significa a destruição da própria democracia ou, se preferirem, também poderíamos dizer que a verdadeira democracia seria a extinção do poder personificado e, assim, só existiria democracia de fato no contexto da absoluta autonomia.

 

Superando a discussão conceitual, dela podemos auferir que existe um limite muito definido para o discurso democrático e que torna-se ainda mais nítido para a ação democrática, sendo que este limite é a própria razão de sua existência: levada até seus limites, a ação democrática implica na dissolução do poder e na destruição da própria democracia, ou na instituição da verdadeira democracia, mas aí a ação que leva até sua instituição não passaria de uma ação pró-democrática, ou mesmo pré-democrática… Poderíamos citar um interessante cartum do saudoso Henfil que ficou muito conhecido ao ser utilizado em camisetas pelo Partido dos Trabalhadores, pouco tempo depois de sua fundação, muito usadas por sua militância: abaixo da frase “Queremos o poder!” escrita em letras garrafais, uma série de Graúnas – um de seus personagens mais conhecidos – absolutamente iguais, dando a ideia dos indivíduos que compõem um grupo social, conjugava o verbo em todas as pessoas, “eu posso, tu podes, ele pode…”; o cartum transmite a ideia do “queremos o poder para dividi-lo”. No entanto, se dividimos o poder, não apenas com alguns, mas igualitariamente com toda a população, ele acaba por perder o sentido, deixando mesmo de existir. Parece-nos que não era exatamente a ideia que o Partido dos Trabalhadores queria transmitir – significaria, logicamente, a sua própria extinção enquanto agremiação política – mas é exatamente o que significa se procurarmos o seu sentido último.

 

Sintetizando, a democracia – por mais absurdo e reacionário que possa parecer para a mentalidade liberal que, como afirmamos, encontra-se disseminada ideologicamente entre nós – só tem sentido enquanto expressão de um sistema de poder, de dominação, por mais que represente um abrandamento da própria dominação.

 

Voltando ao contexto da educação, os discursos que se arvoram em “progressistas” lutam por uma maior democratização da escola pública. Depois de muita luta política e social, sem dúvida alguma presenciamos uma série de conquistas que, entretanto, colocam-se dentro de um limite muito específico, limite este que o Estado faz toda a questão de mascarar. A educação pública é democrática, ou pode sê-lo, até onde interessa ao Estado; não podemos, porém, nos enganar: assim que essa democratização colocar em risco suas instituições políticas – se é que ela pode chegar a tanto – ela será imediatamente desviada, abrandada ou mesmo extinta.

 

Para compreender melhor este tríplice aspecto da educação pública – a melhoria da qualidade, a promoção da cidadania e a democratização – gostaria de buscar no folclore infantil e na fábula, esse imenso depositário do imaginário coletivo que tem o poder de, através da simplicidade da palavra, desvendar a alma humana, a metáfora perfeita: passeamos no bosque, enquanto “Seo Lobo” não vem…  Brincamos de democracia na escola – se me permitem brincar com essa coisa tão séria… – enquanto o “Lobo Estado” não aparece; mas, se tomarmos o “caminho do rio”, aquele que os poderes instituídos – os pais – nos alertaram para não seguir, se afrontarmos o território de domínio do “Lobo Estado”, claramente demarcado, aí ele aparece, implacável…

 

No confronto, experimentamos duas situações-limite: ou somos devorados pelo “Lobo Estado” ou o matamos. A convivência só é possível quando habitamos territórios diferentes (“esta cidade é pequena demais para nós dois!”), não sendo, portanto, con-vivência.

 

O que tentamos exprimir através desta pequena brincadeira metafórica é que, na vivência política no território do Estado, as ações progressistas encontram limites muito próximos. Não que elas não sejam possíveis, são até mesmo louváveis, embora sua eficácia política, se as tomarmos em suas últimas consequências, seja dubitável.

 

Já deixamos claro que, do ponto de vista da qualidade, a escola que queremos – falando na perspectiva das camadas progressistas da sociedade, que buscam a igualdade e a justiça sociais – não é aquela que o Estado capitalista quer; o assumir do discurso da qualidade de ensino pelas esferas oficiais significa, no limite máximo, a busca de melhor qualificação de trabalhadores, exigida pela complexificação tecnológica da indústria. Forçar socialmente o Estado a oferecer a escola que queremos, que seria um instrumento a mais no processo de luta pela transformação desta sociedade, seria levar a uma situação-limite em que o conflito só poderia ser resolvido através do confronto, estando o Estado numa posição tática privilegiada para resolvê-lo a seu favor.

 

Na perspectiva da promoção da cidadania e da democratização do ensino que, em última análise podem ser reunidas numa única, dado que a promoção da cidadania não se daria jamais através de discurso mas, como vimos anteriormente, através da assimilação dos conceitos básicos para a compreensão da vivência política, além do aprendizado de uma ação que, se não é estritamente política no contexto mais geral, o é ao nível específico da convivência em uma comunidade, a própria escola, estando aí de certo modo representada a sua democratização, a questão não é menos complexa. Assim como a extremização da gestão democrática da escola leva ao rompimento com a estrutura de poder sustentada pelo Estado capitalista e, consequentemente a um necessário rompimento com esse próprio Estado, a realização de um processo educacional que seja responsável pela formação de um cidadão no real sentido contemporâneo que a palavra alcança, e de um cidadão de fato e não apenas de direito, representa, também, o acirramento de um confronto com o Estado que, enquanto provedor e gerenciador dessa educação, não teria o mínimo interesse em mantê-la nessas condições.

 

Ao levantar essas críticas, que buscam o sentido último de uma educação pública e de suas necessárias relações com o Estado, não pretendo, de modo algum, defender a impossibilidade de uma ação político-pedagógica progressista no contexto do sistema público de ensino. Também não pretendo, como já foi frisado anteriormente, retomar as críticas produzidas no contexto das teorias crítico-reprodutivistas, que de resto já foram superadas por teorias mais lúcidas e abrangentes. Meu objetivo foi trazer para a discussão uma perspectiva que, se não é nova, estava há muito esquecida, ou feita esquecer pela intensa repressão social e política. Os anarquistas procuraram sempre construir alternativas pedagógicas aos sistemas públicos de ensino, como forma de escapar das óbvias limitações de uma educação comprometida com o Estado, o máximo representante e depositário do poder social.

 

Não, a mediação do Estado não é absolutamente necessária; os grupos sociais poderiam perfeitamente organizar e gerir os seus próprios sistemas de ensino, escapando das perniciosas influências desta instituição que, ao fazer-se o Mediador, constitui-se, na verdade, em Interventor, gerenciando a educação que ele julga necessária e desejável e não exatamente aquela que o grupo social deseja.

 

Na perspectiva do modelo hegelo-marxiano da oposição Estado versus sociedade, podemos perceber que, embora aquele deva constituir-se na instância político-administrativa desta, sua ação dá-se no sentido de manter e perpetuar essa estrutura social; para aqueles que se propõe às atividades de transformação da estrutura social, abrem-se, portanto, duas perspectivas de ação: trabalhar com as armas políticas do próprio Estado, sustentados por uma concepção filosófica que, se afasta-se radicalmente daquela que exprime essa estrutura social, em última instância não abandona a lógica que estrutura essa concepção; tal parece ser a situação dos socialismos marxiano e marxista, que defendem o “assalto ao Estado” como arma para a transformação. A outra perspectiva seria buscar a transformação já nos próprios meios, assumindo armas de luta que não são as mesmas usadas pela estrutura social vigente; no caso específico, negando o próprio Estado de antemão, e não apenas após a tomada do poder social, o que, em linhas gerais, caracteriza a situação do socialismo libertário, ou anarquismo.

 

No contexto educacional em geral, e no da educação pública também, os conceitos anarquistas representam um novo paradigma de pensamento, pois afastam-se tanto do liberalismo ou neo-liberalismo quanto das visões socialistas de inspiração marxista. Assumir a perspectiva anarquista não significa negar a eficiência de nenhuma das outras, mas sim a tentativa de um caminho diferente que, se traz determinadas inovações, não deixa de apresentar também suas dificuldades, como o assumir abertamente a luta contra o Estado, com toda as consequências que ela deva trazer.

 

No paradigma anarquista, a educação pública não é e nem deve ser uma função do Estado, mas sempre uma responsabilidade da comunidade, da sociedade. Assim, cada grupo social deve se auto-organizar para constituir seu sistema de ensino, definindo-lhe os conteúdos, a carga-horária, a metodologia, os processos de avaliação etc., sempre num regime de autogestão.

 

A ação político-pedagógica norteada por este outro paradigma implica, claro, numa responsabilidade imensamente maior de toda sociedade e em muito mais trabalho por parte de todos, estejam diretamente envolvidos com a escola ou não. Tal responsabilidade ganha contornos ainda mais abrangentes ao lembrarmos que estamos, todos, acostumados a esperar do Estado paternalista a resolução dos nossos problemas. O paradigma anarquista apresenta também os seus problemas, talvez mais complexos até, mas problemas que devem ser encarados de frente, do mesmo modo que deixar a adolescência assumindo cada vez mais as responsabilidades pela maturidade da “idade da razão” tampouco é um processo simples e sem traumas, mas do qual não podemos jamais fugir…

Fonte: cedap.assis.unesp.br

Materiais didáticos são essenciais para a educação.

Autor:Sílvio Gallo


Pedagogia ao Pé da Letra
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