“… é na linguagem e pela
linguagem que o homem
Se constitui como sujeito”.
Benveniste
Introdução
A coerência resulta da configuração que assumem os conceitos e relações subjacentes à sua superfície textual. É considerada o fator fundamental da textualidade, porque é responsável pelo sentido do texto. Envolve não só aspectos lógicos e semânticos, mas também cognitivos, na medida em que depende do partilhar de conhecimentos entre os interlocutores.
Um discurso é aceito como coerente quando apresenta uma configuração conceitual compatível com o conhecimento de mundo do recebedor. O texto não significa exclusivamente por si mesmo. Seu sentido é construído não só pelo produtor como também pelo recebedor, que precisa deter os conhecimentos necessários à sua interpretação. O produtor do discurso não ignora essa participação do interlocutor e conta com ela. É fácil verificar que grande parte dos conhecimentos necessários à compreensão dos textos não vem explícita, mas fica dependente da capacidade de pressuposição e inferência do recebedor.
Através dessa visão, Ingedore Villaça e Luiz Carlos Travaglia, em seu livro A coerência textual, pretendem apenas introduzir os leitores ao estudo da coerência textual. É a coerência que faz com que uma sequência linguística qualquer seja vista como um texto, porque é a coerência, através de vários fatores, que permite estabelecer relações (sintático-gramaticais, semânticas e pragmáticas) entre os elementos da sequência (morfemas, palavras, expressões, frases, parágrafos, capítulos, etc.), permitindo construí-la e percebê-la, na recepção, como constituindo uma unidade significativa global. Portanto, é a coerência que dá textura e textualidade à sequência linguística, entendendo-se por textura ou textualidade aquilo que converte uma sequência lingüística em texto. Assim sendo, podemos dizer que a coerência dá início à textualidade.
Mesmo sendo uma obra que aponta vários fatores responsáveis pela coerência textual de um discurso qualquer: a intencionalidade e aceitabilidade, fatores de contextualização, a situacionabilidade, a informatividade e a intertextualidade, que têm a ver com os fatores pragmáticos envolvidos no processo sociocomunicativo, acrescentamos outros fatores relevantes de outros autores com a intenção de ampliar ainda mais nosso estudo sobre coerência textual.
Travando conhecimento com a coerência
A ideia de incoerência depende de conhecimentos prévios sobre o mundo e do tipo de mundo em que o texto se insere, bem como do tipo de texto.
Todos os recursos estabelecidos pela lingüística chamam de coesão textual.
A coesão textual revela a importância do conhecimento lingüístico (dos elementos da língua, seus usos) para a produção do texto e sua compreensão e, portanto, para o estabelecimento da coerência. O texto só é perfeitamente inteligível se houver conhecimento do uso dos elementos lingüísticos em relação com a situação de comunicação.
O conhecimento de mundo é importante, não menos importante é que esse conhecimento seja partilhado pelo produtor e receptor do texto. O produtor e receptor do texto devem ter conhecimento comum.
Finalmente, é preciso lembrar que o sentido que damos a um texto pode depender (e com frequência depende) do conhecimento de outros textos, com os quais ele se relaciona. Para saber mais sobre a importância da diversidade de gêneros literários na alfabetização, você pode conferir este artigo.
Neste capítulo, você deve ter intuído uma concepção básica do que seja o fenômeno da coerência e do que depende. Busquemos a seguir uma visão mais detalhada e sistemática da coerência textual.
Conceito de Coerência
O que é coerência
Dificilmente se poderá dizer o que é coerência apenas através de um conceito, por isso vamos defini-la através da apresentação de vários aspectos e/ou traços que, em seu conjunto, permitem perceber o que esse termo significa.
A coerência está diretamente ligada à possibilidade de estabelecer um sentido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido para os usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto numa situação de comunicação e à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido desse texto. Este sentido, evidentemente, deve ser do todo, pois a coerência é global. Para haver coerência, é preciso que haja possibilidade de estabelecer no texto alguma forma de unidade ou relação entre seus elementos.
A relação que tem de ser estabelecida pode ser não só semântica (entre conteúdos), mas também pragmática, entre atos de fala, ou seja, entre as ações que realizamos ao falar (por exemplo: jurar, ordenar, asseverar, ameaçar, prometer, avisar). Este fato é que levou Widdowson (1978) a dizer que a coerência seria a relação entre os atos de fala que as proposições realizam (uma proposição é definida como representação lingüística de um estado de coisas por meio de um ato de referência e um ato de predicação, daí a expressão conteúdo proposicional).
Beaugrande & Dressler (1981) e Marcushi (1983) afirmam que, se há uma unidade de sentido no todo do texto quando este é coerente, então a base da coerência é a continuidade de sentidos entre os conhecimentos ativados pelas expressões do texto. Essa continuidade diz respeito ao modo como os componentes do mundo textual, ou seja, o conjunto de conceitos e relações subjacentes à superfície lingüística do texto, são mutuamente acessíveis e relevantes. Evidentemente, o relacionamento entre esses elementos não é linear e a coerência aparece, assim, como uma organização reticulada, tentacular e hierarquizada do texto. A continuidade estabelece uma coesão conceitual cognitiva entre os elementos do texto através de processos cognitivos que operam entre os usuários (produtor e receptor) do texto e são não só de tipo lógico, mas também dependem de fatores socioculturais diversos e de fatores interpessoais, entre os quais podemos citar:
- as intenções comunicativas dos participantes da ocorrência comunicativa de que o texto é o instrumento
- as formas de influência do falante na situação de fala;
- as regras sociais que regem o relacionamento entre pessoas ocupando determinados “lugares sociais”
O simples cortejo das ideias, das expressões lingüísticas que as ativam e das suas posições no texto deixam evidente o caráter não linear, reticulado, tentacular da coerência.
A coerência se estabelece na interlocução entre os usuários do texto (seu produtor e receptor). Textos sem continuidade são considerados incoerentes, embora a continuidade relativa a um dado tópico discursivo seja uma condição para o estabelecimento da coerência, nem sempre a continuidade representará incoerência. Os processos cognitivos operantes entre os usuários do texto caracterizam a coerência na medida em que dão aos usuários a possibilidade de criar um mundo textual que pode ou não concordar com a versão estabelecida do “mundo real”.
A coerência é algo que se estabelece na interlocução, na interação entre dois usuários numa dada situação comunicativa. Carolles (1979) afirmou que a coerência seria a qualidade que têm os textos que permitem aos falantes reconhecê-los como bem formados, dentro de um mundo possível (ordinário ou não). A boa formação seria vista em função da possibilidade de os falantes recuperarem o sentido de um texto, calculando sua coerência. Considera-se, pois, a coerência como princípio de interpretabilidade, dependente da capacidade dos usuários de recuperar o sentido do texto pelo qual interagem, capacidade essa que pode ter limites variáveis para o mesmo usuário dependendo da situação e para usuários diversos, dependendo de fatores vários (como grau de conhecimento sobre o assunto, grau de cursos lingüísticos utilizados, grau de integração dos usuários). A coerência tem a ver com a boa formação em termos da interlocução comunicativa, que determina não só a possibilidade de estabelecer o sentido do texto, mas também, com frequência, qual sentido se estabelece.
Não se deve pensar que a questão de estabelecimento de sentido esteja apenas do lado receptor. A questão é mesmo de interação.
Van Dijk e Kintsch falam de coerência local, referente a parte do texto ou a frases ou a sequência de frases dentro do texto; e em coerência global, que diz respeito ao texto em sua totalidade. Já mostramos que a coerência do texto é global. A coerência local advém do bom uso dos elementos da língua em sequências menores, para expressar sentidos que possibilitem realizar uma intenção comunicativa. Incoerências locais advêm do mau uso desses mesmos elementos lingüísticos para o mesmo fim. Ao se construir um texto, é preciso cuidado, pois o acúmulo de incoerências locais pode tornar o todo do texto incoerente.
Van Dijk e Kinstich (1983) mencionam diversos tipos de coerência:
- Coerência semântica, que se refere à relação entre significados dos elementos das frases em sequência em um texto ou entre os elementos do texto como um todo.
- Coerência sintática, que se refere aos meios sintáticos para expressar a coerência semântica como, por exemplo, os conectivos, o uso de pronomes, de sintagmas nominais definidos e indefinidos.
A coerência sintática nada mais é do que um aspecto da coesão que pode auxiliar no estabelecimento da coerência.
- Coerência estilística, pela qual um usuário deveria usar em seu texto elementos lingüísticos (léxico, tipos de estruturas, frases, etc.) pertencentes ou constitutivos do mesmo estilo ou registro lingüístico.
- Coerência pragmática, que tem a ver com o texto visto como uma sequência de atos de fala. Estes são relacionados de modo que, para a sequência de atos ser percebida como apropriada, os atos de fala que a constituem devem satisfazer as mesmas condições presentes em uma dada situação comunicativa. Caso contrário, temos incoerência.
A divisão da coerência em tipos tem o mérito de chamar a atenção para diferentes aspectos daquilo que chamamos de coerência: o semântico, o pragmático, o estilístico e o sintático. Mas é preciso ter sempre em mente que a coerência é um fenômeno que resulta da ação conjunta de todos esses níveis e de sua influência no estabelecimento do sentido do texto, uma vez que a coerência é, basicamente, um princípio de interpretabilidade do texto, caracterizado por tudo do que o processo aí implicado possa depender, inclusive a própria produção do texto, na medida em que o produtor do texto quer que seja entendido e o constitui para isso, excetuadas situações muito especiais.
Relação entre coerência e coesão
A coerência é subjacente, tentacular, reticulada, não-linear, mas, como bem observa Charolles, se relaciona com a linearidade do texto. Isto quer dizer que a coerência se relaciona com a coesão do texto, pois por coesão se entende a ligação, a relação, os nexos que se estabelecem entre os elementos que constituem a superfície textual. A coerência, que é subjacente, a coesão é explicitamente revelada através de marcas lingüísticas, índices formais na estrutura da sequência lingüística e superficial do texto, o que lhe dá um caráter linear, uma vez que se manifesta na organização seqüencial do texto, tendo em vista a ordem em que aparecem. A coesão é sintática e gramatical, mas também semântica, pois, em muitos casos, os mecanismos coesivos se baseiam numa relação entre os significados de elementos da superfície do texto, como na chamada coesão referencial.
Há duas grandes modalidades de coesão: a coesão remissiva ou referencial e a coesão sequencial. A coesão referencial é a que se estabelece entre dois ou mais componentes da superfície textual que remetem a (ou permitem recuperar) um mesmo referente (que pode, evidentemente, se acrescido de outros traços que se lhe vão agregando textualmente). Ela é obtida por meio de dois mecanismos básicos.
- substituição: anáfora, catáfora.
- reiteração: se faz através de sinônimos, de hiperônimos, de nomes genéricos, de expressões nominais definidas, de repetição do mesmo item lexical, de nominalizações.
A coesão sequencial também se faz através de dois procedimentos: a recorrência e a progressão.
A sequenciação por recorrência (ou parafrástica) é obtida pelos seguintes mecanismos: recorrência de termos, de estruturas (o chamado paralelismo), de conteúdos semânticos (paráfrase), de recursos fonológicos segmentais e suprassegmentais (ritmos, rima, aliteração, eco, etc.), de aspectos e tempos verbais.
A coesão sequencial por progressão (ou frástica) é feita por mecanismos que possibilitam:
- a manutenção temática;
- os encadeamentos, que podem se dar por justaposição ou conexidade.
A relação da coesão com a coerência existe porque a coerência é estabelecida a partir da sequência lingüística que constitui o texto, isto é, os elementos da superfície lingüística é que servem de pistas, de ponto de partida para o estabelecimento da coerência. A coesão ajuda a estabelecer a coerência na interpretação do texto, porque surge como uma manifestação superficial da coerência no processo de produção desses mesmos textos.
Embora a coesão auxilie no estabelecimento da coerência, ela não é garantia de se obter um texto coerente. Observa Charolles, os elementos lingüísticos da coesão não são nem necessários, nem suficientes para que a coerência seja estabelecida.
Como a coesão não é necessária, há muitas conseqüências lingüísticas com poucos ou nenhum elemento coesivo, mas que constituem um texto porque são coerentes e por isso têm o que se chama de textualidade.
Como a coesão não é suficiente, há sequências lingüísticas coesas, para as quais o receptor não pode ou dificilmente consegue estabelecer um sentido global que as faça coerentes.
O mau uso dos elementos lingüísticos de coesão pode provocar incoerências locais pela violação de sua especificidade de uso e função. Às vezes também ocorre um tipo de incoerência porque o não uso de elementos necessários calcula-la de forma mais direta causa um estranhamento da sequência pelo receptor. A separação entre coesão e coerência não é tão nítida, a coesão tem relação com a coerência na medida em que é um dos fatores que permite calculá-la e, embora do ponto de vista analítico seja interessante separá-las, distingui-las, cumpre não esquecer que são duas faces do mesmo fenômeno.
Coerência, texto e lingüística do texto
Coerência e texto
É a coerência que faz com que uma sequência lingüística qualquer seja vista como um texto, porque é a coerência, através de vários fatores, que permite estabelecer relações (sintático-gramaticais, semânticas e pragmáticas) entre os elementos da sequência (morfemas, palavras, expressões, frases, parágrafos, capítulos, etc.), permitindo construí-la e percebê-la, na recepção, como constituindo uma unidade significativa global. Portanto, é a coerência que dá textura ou textualidade à sequência lingüística, entendendo-se por textura ou textualidade.
A coerência dá origem à textualidade, o que responde à primeira questão. A coesão é apenas um dos fatores de coerência, que contribui para a constituição do texto enquanto tal, representando fatos de face lingüística da coerência, mas não sendo nem necessária, nem suficiente para converter uma sequência lingüística da coerência, mas não sendo nem necessária, nem suficiente para converter uma sequência lingüística em texto. A coesão não dá textualidade, é a coerência que faz isso.
Para Beaugrande e Dressler, para quem a coerência é definida em função da continuidade de sentidos, há sequências lingüísticas incoerentes, que seriam aqueles em que o receptor não consegue descobrir qualquer continuidade de sentido. Marcuschi e mesmo Fávero e Koch falam na existência de textos incoerentes.
Já Charolles afirma que as sequências de frases não são coerentes ou incoerentes em si. Para Charolles não há texto incoerente em si. Charolles admite o tipo de incoerência que já referimos com o nome de incoerência local e que pode resultar do uso inadequado de elementos lingüísticos, violando seu valor e função.
Bernárdez, ao falar do processo de criação de um texto coerente, propõe que ele se dá em três fases e que, em cada uma delas, podem ocorrer falhas causadoras de incoerência em determinados casos:
- na primeira fase, o produtor do texto tem uma intenção comunicativa.
- Na segunda fase, o produtor do texto desenvolve um plano global que lhe possibilite conseguir que seu texto cumpra sua intenção comunicativa, ou seja, tenha êxito face a todos os fatores envolvidos.
- Na terceira fase, o produtor realiza as operações necessárias para expressar verbalmente o plano global, de maneira que, através das estruturas superficiais, o receptor seja capaz de reconstituir ou identificar a intenção comunicativa.
Não existe o texto incoerente em si, mas que o texto pode ser incoerente em/para determinada situação comunicativa. Assim, ao dizer que um texto é incoerente, temos que especificar as condições de incoerência.
O texto será incoerente se seu produtor não souber adequá-lo à situação, levando em conta intenção comunicativa, objetivos, destinatário, regras socioculturais, outros elementos da situação, uso dos recursos linguísticos, etc. Caso contrário, será coerente.
O mau uso de elementos lingüísticos e estruturais cria incoerências no nível local. O produtor do texto, em função de sua intenção comunicativa, levando em conta todos os fatores da situação e usando seu conhecimento lingüístico, de mundo, etc., constrói o texto, cuja superfície lingüística é constituída de pistas que permitem ao receptor calcular o (um) sentido do texto, estabelecendo sua coerência, através da consideração dos mesmos fatores que o produtor e usando os mesmos recursos. A coerência não é nem característica do texto, nem dos usuários do mesmo, mas está no processo que coloca texto e usuários em relação numa situação comunicativa. Tendo em vista:
- a coesão é uma manifestação da coerência na superfície textual;
- os elementos lingüísticos da superfície do texto funcionam como pistas que o produtor do texto escolheu em função de sua intenção comunicativa e do(s) sentido(s) que desejava que o receptor do texto fosse capaz de recuperar – pode-se esperar que diferentes tipos de textos apresentem diferentes modos, meios e processos de manifestação da coerência na superfície lingüística.
Diferentes tipos de textos têm diferentes esquemas estruturais que, na Lingüística Textual, recebem o nome de superestruturas. Narrativos, descritivos, dissertativos, líricos, ficcionais, dramáticos, poéticos e prosas. O conhecimento ou não, a utilização ou não das características de superestrutura de cada tipo pode auxiliar ou dificultar o estabelecimento de coerência.
Os estudos da coerência e coesão nos textos orais, em comparação com os textos escritos, os usuários utilizam recursos diferenciados na superfície lingüística, de modo que sua coerência tem de se estabelecer e ser julgada por mecanismos e critérios diversos dos utilizados para o texto escrito, sob pena de incorrermos em falhas de julgamento.
Coerência e linguística do texto
Quando a lingüística começou a tomar o texto como unidade de estudo, os estudiosos, acreditando na existência de textos e não-textos, propuseram a formulação de uma gramática do texto. Com a evolução dos estudos, que não existe a sequência lingüística incoerente em si e, portanto, não existe o não texto. Passou-se à construção de uma Teoria do texto ou Lingüística do Texto, que é dizer a boa ou má formação dos textos, mas permitir representar os processos e mecanismos de tratamentos dos dados textuais que os usuários põem em ação quando buscam interpretar uma sequência lingüística, estabelecendo o seu sentido e, portanto, calculando sua coerência.
Tais processos e mecanismos, em sua atuação, sofrem restrições que obedecem a determinações psicológicas e cognitivas, socioculturais, pragmáticas e lingüísticas. Por isso, o estudo da produção, compreensão e coerência textuais tornou-se um campo inter e pluridisciplinar. Charolles cabe aos lingüistas “delimitar, na constituição e composição textuais, qual é a parte e a natureza das determinações (que referimos no parágrafo anterior) que resultam dos diferentes meios que existem nas diferentes línguas, para exprimir a continuidade ou a sequência do discurso”.
Fatores de coerência
A construção da coerência decorre de uma multiplicidade de fatores das mais diversas ordens: lingüísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais.
Elementos lingüísticos
É indiscutível a importância dos elementos lingüísticos do texto para o estabelecimento da coerência. Esses elementos servem como pistas para ativação dos conhecimentos armazenados na memória, constituem o ponto de partida para a elaboração de inferências, ajudam a captar a orientação argumentativa dos enunciados que compõem o texto. Todo o contexto lingüístico – ou co-texto – vai contribuir de maneira ativa na construção da coerência.
Conhecimento de Mundo
O nosso conhecimento de mundo desempenha um papel decisivo no estabelecimento da coerência: se o texto falar de coisas que absolutamente não conhecemos, será difícil calcularmos o seu sentido e ele nos parecerá destituído de coerência.
Armazenando os conhecimentos, modelos cognitivos:
- os frames armazenados sob um certo “rótulo”.
- Os esquemas em sequência temporal ou causal.
- Os planos como agir para atingir determinado objetivo.
- Os scripts modos de agir altamente estereotipados em dada cultura, inclusive em termos de linguagem;
- As superestruturas ou esquemas textuais – conjunto de conhecimentos sobre os diversos tipos de textos, que vão sendo adquiridos à proporção que temos contado com esses tipos e fazemos comparações entre eles.
É o nosso conhecimento de mundo que nos faz considerar estranho o texto. É a partir dos conhecimentos que temos que vamos construir um modelo do mundo representado em cada texto – é o universo (ou modelo) textual. Para que possamos estabelecer a coerência de um texto, é preciso que haja correspondência ao menos parcial entre os conhecimentos nele ativados e o nosso conhecimento de mundo, pois, caso contrário, não teremos condições de construir o universo textual dentro do qual as palavras e expressões do texto ganham sentido.
Conhecimento compartilhado
É preciso que o produtor e receptor de um texto possuam, ao menos, uma boa parcela de conhecimentos comuns.
Os elementos textuais que remetem ao conhecimento partilhado entre os interlocutores constituem a informação “velha” ou dada, ao passo que tudo aquilo que for introduzido a partir dela constituirá a informação nova trazida pelo texto. Para que um texto seja coerente, é preciso haver um equilíbrio entre informação dada e informação nova.
- Constituem o co-texto;
- Aquele que faz parte do contexto situacional;
- Aqueles que são do conhecimento geral em dada cultura;
- As que remetem ao conhecimento comum do produtor e do receptor.
O contexto (lingüístico e situacional) permite desfazer a ambiguidade de termos e expressões da língua.
Inferências
Inferência é a operação pela qual, utilizando seu conhecimento de mundo, o receptor de um texto estabelece uma relação não explícita entre dois elementos (normalmente frases ou trechos) deste texto que ele busca compreender e interpretar; ou, então, entre segmentos de textos e os conhecimentos necessários para a sua compreensão.
Fatores de contextualização
Os fatores de contextualização são aqueles que “ancoram” o texto em uma situação comunicativa determinada. Segundo Marcushi, podem ser de dois tipos: os contextualizadores propriamente ditos e os perspectivos ou prospectivos. Entre os primeiros estão a data, o local, a assinatura, elementos gráficos, timbre, etc., que ajudam a situar o texto e, portanto, a estabelecer-lhe a coerência.
Sem os elementos contextualizadores, fica difícil decodificar a mensagem. Também em documentos, correspondência oficial e outros textos do gênero, o timbre, o carimbo, a data, a assinatura serão de extrema importância, servindo, inclusive, para fé ao texto.
Entre os fatores gráficos, temos: disposição na página, ilustrações, fotos, localizações no jornal (caderno, página), que contribuem para a interpretação do texto.
Os fatores perspectivos ou prospectivos são aqueles que avançam expectativas sobre o conteúdo – e também a forma – do texto: título, autor, início do texto.
A leitura (compreensão) de um texto é uma atividade de solução de problemas. Ao descobrirmos a solução final, teremos estabelecido a coerência do texto.
Situacionalidade
A situacionalidade, outro fator responsável pela coerência, pode ser vista atuando em duas direções:
- da situação para o texto;
- do texto para a situação.
Da situação para o texto – trata-se de determinar em que medida a situação comunicativa interfere na produção e recepção do texto e, portanto, no estabelecimento da coerência, o contexto imediato da interação, o contexto sociopolítico-cultural em que a interação está inserida. Ao construir um texto, verificar o que é adequado àquela situação específica: grau de formalidade, variedade dialetal, tratamento a ser dado ao tema, etc. O lugar e o momento da comunicação, as imagens recíprocas que os interlocutores fazem uns dos outros, os papéis que desempenham, seus pontos de vista, o objetivo da comunicação.
Do texto para a situação – também o texto tem reflexos importantes sobre a situação comunicativa: o mundo textual não é jamais idêntico ao mundo real. O produtor recria o mundo de acordo com seus objetivos, propósitos, interesses, convicções, crenças, etc. Os referentes textuais não são idênticos ao do mundo real, mas são construídos no interior do texto. O receptor, por sua vez, interpreta o texto de acordo com a sua ótica, os seus propósitos, as suas convicções – há sempre uma mediação entre o mundo real e o mundo textual.
Na construção da coerência, a situacionalidade exerce um papel de relevância. Um texto que é coerente em dada situação pode não sê-lo em outra: daí a importância da adequação do texto à situação comunicativa.
Informatividade
Diz respeito ao grau de previsibilidade (ou expectabilidade) da informação contida no texto. Um texto será tanto menos informativo se contiver apenas informação previsível ou redundante, seu grau de informatividade será baixo; se contiver, além da informação de um texto for inesperada ou imprevisível, ele terá um grau máximo de informatividade, podendo, à primeira vista, parecer incoerente por exigir do receptor um grande esforço de decodificação.
O grau máximo de informatividade é comum na literatura e na linguagem metafórica em geral.
Mas também são frequentes, tanto em textos poéticos como em textos publicitários ou manchetes jornalísticas.
É a informatividade que vai determinar a seleção e o arranjo das alternativas de distribuição da informação no texto, de modo que o receptor possa calcular-lhe o sentido com maior ou menor facilidade, dependendo da intenção do produtor de construir um texto mais ou menos hermético, mais ou menos polissêmico, ou que está, evidentemente, na dependência da situação comunicativa e do tipo de texto a ser produzido.
Focalização
A focalização tem a ver com a concentração dos usuários (produtor e receptor) em apenas uma parte do seu conhecimento, bem como com a perspectiva da qual são vistos os componentes do mundo textual. O produtor fornece ao receptor pistas sobre o que está focalizando. Diferenças de focalização podem causar problemas sérios de compreensão, impedindo, por vezes, o estabelecimento da coerência.
A mesma palavra poderá ter sentido diferente, dependendo da focalização. No caso de palavras homônimas, a focalização comum dos interlocutores permitirá depreender o sentido do termo naquela situação específica. A focalização determina também, em dados casos, o uso adequado de certos elementos lingüísticos. Um dos mais importantes meios de evidenciar a focalização é o uso do que chamamos de descrições ou expressões definidas, isso é, grupos nominais introduzidos por artigo definido (ou por demonstrativos). Tais expressões selecionam, dentre as propriedades e características do referente, aquelas sobre as quais se deseja chamar a atenção.
O título do texto é, em grande parte dos casos, responsável pela focalização. Como já vimos anteriormente, ativa e/ou seleciona conhecimentos de mundo que temos arquivados na memória, avançando expectativas sobre o conteúdo do texto.
Intertextualidade
Outro importante fator de coerência é a intertextualidade, na medida em que, para o processamento cognitivo (produção/recepção) de um texto, recorre-se ao conhecimento prévio de outros textos. A intertextualidade pode ser de forma ou de conteúdo. A intertextualidade de forma ocorre quando o produtor de um texto repete expressões, enunciados ou trechos de outros textos, ou então o estilo de determinado autor ou de determinados gêneros de discurso. Um subtipo de intertextualidade formal é a intertextualidade tipológica, que também é importante para o processamento adequado do texto. Os conhecimentos de mundo são armazenados em nossa memória sob forma de blocos – os modelos cognitivos globais, entre os quais estão as superestruturas ou esquemas textuais, que são conjuntos de conhecimentos que se vão acumulando quanto aos diversos tipos de textos utilizados em dada cultura. Quanto ao conteúdo, pode-se dizer que a intertextualidade é uma constante: os textos de uma mesma época, de uma mesma área de conhecimento, de uma mesma cultura, etc., dialogam, necessariamente, uns com os outros. Essa intertextualidade pode ocorrer de maneira explícita ou implícita.
A intertextualidade implícita não se tem indicação de fonte, de modo que o receptor deverá ter os conhecimentos necessários para recuperá-la; do contrário, não será capaz de captar a significação implícita que o produtor pretende passar. Não havendo indicação da fonte do texto original, caberá ao receptor, através de seu conhecimento de mundo, não só descobri-la como detectar a intenção do produtor do texto ao retomar o que foi dito por outrem.
O reconhecimento do texto fonte e dos motivos de sua reapresentação, no caso da intertextualidade implícita, é como se vê, de grande importância para a construção de sentido de um texto.
Intencionalidade e Aceitabilidade
O produtor de um texto tem, necessariamente, determinados objetivos ou propósitos, que vão desde a simples intenção de estabelecer ou manter o contato com o receptor até a de levá-lo a partilhar de suas opiniões ou a agir ou comportar-se de determinada maneira. A intencionalidade refere-se ao modo como os emissores usam textos para perseguir e realizar suas intenções, produzindo, para tanto, textos adequados à obtenção dos efeitos desejados.
A aceitabilidade constitui a contraparte da intencionalidade. Já se disse que, segundo o Princípio Cooperativo de Grice, o postulado básico que rege a comunicação humana é o da cooperação, isto é, quando duas pessoas interagem por meio de linguagem, elas se esforçam por fazer-se compreender e procuram calcular o sentido do texto do(s) interlocutor(s), partindo das pistas que ele contém e ativando seu conhecimento de mundo, da situação, etc.
A intencionalidade tem relação estreita com o que se tem chamado de argumentatividade. Se aceitamos como verdade que não existem textos neutros, que há sempre alguma intenção ou objetivo da parte de quem produz um texto, e que este não é jamais uma “cópia” do mundo real, pois o mundo é recriado no texto através da mediação de nossas crenças, convicções, perspectivas e propósitos, então somos obrigados a admitir que existe sempre uma argumentatividade subjacente ao uso da linguagem. A argumentatividade manifesta-se nos textos por meio de uma série de marcas ou pistas que vão orientar os seus enunciados no sentido de determinadas conclusões.
Entre estas marcas encontram-se os tempos verbais, os operadores e conectores argumentativos, os modalizadores, entre outros. A partir dessas marcas, como também das inferências e dos demais elementos construtores da textualidade, o receptor construirá a sua leitura, entre aquelas que o texto, pela maneira como se encontra lingüisticamente estruturado, permite. É por isso que todo texto abre a possibilidade de várias leituras.
Consistência e relevância
De acordo com Giora, dois requisitos básicos para que um texto possa ser tido como coerente são a consistência e a relevância.
A condição de consistência exige que cada enunciado de um texto seja consistente com os enunciados anteriores, isto é, que todos os enunciados do texto possam ser verdadeiros dentro de um mesmo mundo ou dentro dos mundos representados no texto. O requisito da relevância exige que o conjunto de enunciados que compõe o texto seja relevante para um mesmo tópico discursivo subjacente, isto é, que os enunciados sejam interpretáveis como falando sobre um mesmo tema.
A relevância tópica é outro fator importante da coerência. A coerência não é apenas um traço ou uma propriedade do texto em si, mas sim que ela se constrói na interação entre o texto e seus usuários, numa situação comunicativa concreta, em decorrência de todos os fatores aqui examinados.
Coerência e Ensino
O objetivo é registrar alguns pontos fundamentais quando se pergunta em que as análises da lingüística sobre coerência, coesão e texto podem auxiliar no trabalho do professor no ensino de língua materna. Lembraremos alguns aspectos que podem ser importantes para a adoção de uma postura metodológica pelo professor.
Conclusão
Assim, a coerência do texto deriva de sua lógica interna, resultante dos significados que sua rede de conceitos e relações põe em jogo, mas também da compatibilidade entre essa rede conceitual – o mundo textual – e o conhecimento de mundo de quem processa o discurso.
A coesão é a manifestação lingüística da coerência: advém da maneira como os conceitos e relações subjacentes são expressos na superfície textual. Responsável pela unidade formal do texto, constrói-se através de mecanismos gramaticais e lexicais.
Entre os primeiros estão os pronomes anafóricos, os artigos, a elipse, a concordância, a correlação entre os tempos verbais, as conjunções, por exemplo. Todos esses recursos expressam relações não só entre os elementos no interior de uma frase, mas também entre frases e sequências de frases dentro de um texto.
FATORES IMPORTANTES PARA OBTER COERÊNCIA EM UM TEXTO
- Intencionalidade – ela exige do produtor a construção de um discurso coerente e coeso, capaz de satisfazer os objetivos em uma determinada situação comunicativa (informar, convencer, pedir, etc.).
- Aceitabilidade – dá-se quanto à expectativa de que o recebedor tenha acesso a um texto coerente e coeso.
- Situacionalidade – refere-se a que diz respeito à adequação do texto à situação sócio-comunicativa, responsável pela pertinência e relevância do texto.
- Intertextualidade – para isso o texto deve interagir com outros textos que funcionam no seu contexto.
OS FATORES PRAGMÁTICOS DA TEXTUALIDADE
Entre os cinco fatores pragmáticos estudados por Beaugrande e Dressler (1983), os dois primeiros se referem aos protagonistas do ato de comunicação: a intencionalidade e a aceitabilidade.
A intencionalidade concerne ao empenho do produtor em construir um discurso coerente, coeso e capaz de satisfazer os objetivos que tem em mente numa determinada situação comunicativa. A meta pode ser informar, ou impressionar, ou alarmar, ou convencer, ou pedir, ou ofender, etc., e é ela que vai orientar a confecção do texto.
Em outras palavras, a intencionalidade diz respeito ao valor ilocutório do discurso, elementos da maior importância no jogo de atuação comunicativa.
O outro lado da moeda é a aceitabilidade, que concerne à expectativa do recebedor de que o conjunto de ocorrências com que se defronta seja um texto coerente, coeso, útil e relevante, capaz de levá-lo a adquirir conhecimentos ou a cooperar com os objetivos do produtor.
Grice (1975, 1978) estabelece máximas conversacionais, que seriam estratégias normalmente adotadas pelos produtores para alcançar a aceitabilidade do recebedor. Tais estratégias se referem à necessidade de cooperação (no sentido de o produtor responder aos interesses de seu interlocutor) e à qualidade (autenticidade), quantidade (informatividade), pertinência e relevância das informações, bem como à maneira como essas informações são apresentadas (precisão, clareza, ordenação, concisão, etc.).
INFORMATIVIDADE
O texto com bom índice de informatividade tem que apresentar todas as informações necessárias para que seja compreendido com o sentido que o produtor pretende. Não é possível nem desejável que o discurso explicite todas as informações necessárias ao seu processamento, mas é preciso que ele deixe inequívocos todos os dados necessários à sua compreensão aos quais o recebedor não conseguirá chegar sozinho.
FOCALIZAÇÃO
A focalização que tem a ver com a concentração dos usuários (produtor e receptor) em apenas uma parte do seu conhecimento e com a perspectiva da qual são vistos os componentes do mundo textual. Seria como uma câmera que acompanhasse tanto o produtor como o receptor no momento em que um texto é processado. O primeiro fornece ao segundo determinadas pistas sobre o que está focalizando, ao passo que o segundo terá de recorrer a crenças e conhecimentos compartilhados sobre o que está sendo focalizado, para poder entender o texto (e as palavras que o compõem), de modo adequado.
FATORES DA CONTEXTUALIZAÇÃO
Os fatores de contextualização que “ancoram” o texto em uma situação comunicativa determinada; a situacionalidade, como outro fator responsável pela coerência, e que pode ser vista atuando em duas direções: a) da situação para o texto; b) do texto para a situação; a informatividade que interfere na construção da coerência no que diz respeito ao grau de previsibilidade (ou expectabilidade) da informação contida no texto;
INTENCIONALIDADE E ACEITABILIDADE
A intencionalidade e a aceitabilidade: a primeira refere-se ao modo como os emissores usam textos para perseguir e realizar suas intenções, produzindo para tanto, textos adequados à obtenção dos efeitos desejados; a segunda constitui a contraparte da intencionalidade que, por sua vez, tem relação estreita com o que se tem chamado de argumentatividade.
CONCLUSÃO
A obra expõe a constituição dos sentidos nos textos e seus fatores, tais como os elementos lingüísticos, o conhecimento do mundo, as inferências e a situação. Um de seus capítulos é dedicado ao registro de como a análise da coerência textual pode auxiliar no trabalho do professor no ensino da língua e em sala de aula. Assim, a coerência do texto deriva de sua lógica interna, resultante dos significados que sua rede de conceitos e relações põe em jogo, mas também da compatibilidade entre essa rede conceitual – o mundo textual – e o conhecimento de mundo de quem processa o discurso.
Todos esses recursos expressam relações não só entre os elementos no interior de uma frase, mas também entre frases e sequências de frases dentro de um texto. Os autores apresentam ampla bibliografia comentada para os interessados em se aprofundar nesse campo. Obra fundamental!
BIBLIOGRAFIA
INGEDORE VILLAÇA KOC
TRAVAGLIA, LUIZ CARLOS A COERÊNCIA TEXTUAL
BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral. São Paulo: Nacional, 1976.
LYONS, John. Linguagem e lingüística. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1988.
MESERANI, Samir. O intertexto escolar. São Paulo, Cortez, 1995.
Autor: Silvia Maria Silva Duarte
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