O artigo aborda as relações entre a Psicologia e a Educação, tomando especialmente a perspectiva psicogenética, cujas teorias enriquecem tanto a Psicologia quanto a Educação. Apresenta, inicialmente, breve histórico dos estudos psicológicos do desenvolvimento humano, salientando as várias fases pelas quais se constituiu a Psicologia do Desenvolvimento. Trata, em seguida, das idéias centrais da teoria psicogenética piagetiana e de suas vertentes funcionalista e sócio-interacionista e comenta, por fim, a tendência das pesquisas sobre os conhecimentos sociais e conteúdos escolares, levantando suas contribuições para a educação escolar.
Palavras-chave: relações Psicologia-Educação; perspectiva psicogenética; pesquisa psicogenética; educação escolar.
ABSTRACT
The paper approaches the relationships between Psychology and Education, especially taking the psychogenetic perspectives theories, which enriched the Psychology as much as the Education field. After brief record of the psychological studies of the human development and pointing out the several phases which constituted the Psychology of the Development, the paper deals with the central ideas of Piagets psychogenetic theory and its functionalist and social-interactionist views. Finally, it comments the tendency of the researches on the social knowledge and school contents, pointing out their contributions for the school education.
Key words: Psychology-Education relationships; psychogenetic perspective; psychogenetic research; school education.
Muito se fala sobre as contribuições que a Psicologia tem a oferecer à educação e as cobranças a esse respeito parecem ter nascido juntamente com a constituição da Psicologia como ciência. De fato, desde então, têm sido enormes as esperanças depositadas sobre a Psicologia, como uma disciplina que, tratando cientificamente de questões da psique humana – seja de processos conscientes ou inconscientes –, pode tornar também “científicas” as intervenções educacionais (Coll, 1987). Essa expectativa foi alimentada no início do século XX, com as primeiras publicações e a fundação de institutos de pesquisa, que invocavam uma área específica de conhecimento psicológico para o tratamento e solução de problemas educacionais.
Assim surgiu a Psicologia da Educação (Coll, 1987), assentada em três eixos: teorias da aprendizagem – na época, as propostas por Thorndike, Hull, Tolman e Lewin, por exemplo; Psicologia da Criança – com as contribuições de Gesell, Baldwin e Claparéde, por exemplo; e medidas das diferenças individuais – introduzidas por Binet, Simon e Terman.
No entanto, as relações entre a Psicologia e a educação escolar não deixaram de ser tumultuadas, pois logo se percebeu que não se pode deixar nas mãos de uma só disciplina o destino a ser dado a uma prática tão complexa, responsável pela formação de gerações, como a educação. Não é à toa que a Psicologia e, em particular, a Psicologia da Educação, desceu de um pedestal em que era considerada, no dizer de Coll (1987), “a rainha das ciências da educação” para o nível de uma disciplina que apenas pretende homogeneizar as questões educacionais e, portanto, “psicologizar a educação” como pensam alguns (Carvalho, 2001; Silva, 1993).
Mas acreditamos que a Psicologia tem muito a dizer à educação escolar. Afinal, seu “objeto” (que varia de foco dependendo da corrente teórica) é compartilhado com a educação.
Nessa relação, que consideramos extremamente relevante, entre a Psicologia e a educação, podemos perceber que a pesquisa psicológica nem sempre foi bem recebida pelos professores nas escolas, principalmente se lembrarmos que os pesquisadores raramente dão retorno dos achados de suas pesquisas aos professores ou à escola em que desenvolveram suas investigações. A desconfiança é especialmente observada com relação às investigações psicogenéticas, que não apresentam, em princípio, relação estreita com as questões de ensino-aprendizagem escolar. Mas, a nosso ver, são muitas as contribuições daí advindas e este trabalho pretende apontar algumas delas, priorizando, no entanto, alguns pontos que consideramos importantes para o estabelecimento de certas relações entre a pesquisa psicogenética – em especial, a piagetiana – e a educação escolar.
Cabe esclarecer, inicialmente, o próprio termo que é central no título deste trabalho: o que quer dizer, afinal, a qualidade psicogenética que vem acoplada à pesquisa?
O termo pode fazer crer que vamos tratar de investigações sobre o componente genético, hereditário, da psique humana. Mas o caso é bem outro. A história da Psicologia nos mostra que há uma longa tradição de pesquisas que focalizam a gênese de nossas condutas, das noções que adquirimos e das funções psicológicas de que dispomos. O interesse de uma pesquisa psicogenética, especialmente a piagetiana, é, pois, o de traçar a formação de certas condutas e noções desde a sua origem, por ocasião do nascimento, até sua constituição madura no adulto, chegando, inclusive, ao conhecimento científico. O objetivo primordial de uma pesquisa dessa natureza é, portanto, o de descrever/explicar o desenvolvimento e, no caso da perspectiva piagetiana, o desenvolvimento na esfera intelectual.
Assim esclarecido, abordaremos o tema partindo, inicialmente, de um breve histórico sobre os estudos psicológicos do desenvolvimento humano, para introduzir, em seguida, algumas idéias básicas da teoria psicogenética. Por último, tentaremos oferecer um panorama geral das perspectivas atuais da pesquisa psicogenética – em particular, o estudo funcional da inteligência, as pesquisas sobre os conhecimentos sociais e a abordagem sócio-interacionista do desenvolvimento intelectual –, discorrendo um pouco sobre sua relevância para a educação.
O desenvolvimento humano como objeto de estudo psicológico
A área que hoje é denominada Psicologia do Desenvolvimento parece ter surgido de estudos realizados inicialmente sobre a criança, e que foram estendidos ao caso do adulto. Vale lembrar que a noção de desenvolvimento como um conjunto de etapas ligadas à idade só apareceu por volta do século XVII, daí resultando a separação entre atividades infantis e adultas e a criação de instituições especiais para a educação com classes baseadas na idade. Antes dessa época, o desenvolvimento era concebido como “idades da vida” com função social, ao invés de etapas biológicas, e comportava divisões segundo o número de planetas ou de estações do ano, por exemplo.
Parece ter sido igualmente a partir do século XVII que se iniciam as preocupações específicas sobre o desenvolvimento infantil, muitas vezes de escasso interesse psicológico. Os estudos do desenvolvimento humano em suas origens têm, na verdade, certas peculiaridades: além de serem voltados, geralmente, para a educação, eram estudos de filósofos, médicos e pedagogos e não podiam contar com métodos introspeccionistas utilizados na época, pois tratava-se de investigações sobre a criança.
Alguns autores (como os pesquisadores espanhóis Delval, 1994a, e Pérez Pereira, 1995) descrevem certas etapas na evolução desses estudos, oferecendo uma visão de como se constituiu a Psicologia do Desenvolvimento. Essas etapas são as seguintes:
a) Período de observações esporádicas – etapa que vai desde a Antigüidade até finais do século XVIII (mais precisamente, até o ano de 1787, segundo Delval, 1994a). Os primeiros estudos do desenvolvimento, predominantemente descritivos, utilizaram a observação de condutas infantis e tinham caráter assistemático e esporádico. Suas considerações se relacionavam, geralmente, à preocupação de tornar a educação adaptada às características da criança, como nas obras de Comenius e Locke, no século XVII, e de Rousseau, no século XVIII. A exceção a essa ausência de sistematização é o diário elaborado por Jean Héroard, médico do Delfim da França e futuro rei Luis XIII, que continha observações desde o nascimento do Delfim, em 1601, até a morte de Héroard, em 1628. Mas eram observações dispersas do ponto de vista psicológico.
b) Período de observações sistemáticas e constituição da Psicologia da Criança – a partir de 1787 até 1895. Este é um período que tem como marco o diário do filósofo alemão Dietrich Tiedemann, publicado em 1787, descrevendo observações que fizera do seu filho, do nascimento aos 2 anos. Tiedemann observou o desenvolvimento dos reflexos, percepção, relações sociais, início da linguagem etc, e foi o primeiro a considerar explicitamente de interesse científico um trabalho desse tipo, sobre desenvolvimento infantil.
Antes dessa data, foram publicados alguns estudos sobre crianças excepcionais, como a descrição do nobre inglês Daines Barrington das observações que fizera sobre Amadeus Mozart, com 8 anos de idade, além de trabalhos na área médica. Alguns autores também fizeram observações sobre os próprios filhos – o pedagogo suíço Pestalozzi, o pedagogo alemão Richte e Charles Darwin, o teórico da evolução das espécies –, mas os diários não foram publicados, ou o foram bem mais tarde, como no caso de Darwin, que resolveu publicar suas observações 40 anos após tê-las feito.
Essa foi também uma época de introdução de novos procedimentos no estudo do desenvolvimento infantil, como o uso da estatística (Feldman, Quetelet), a experimentação (Kussmaul) e o emprego de questionários (Sociedade Pedagógica de Berlim).
Mas o primeiro trabalho publicado sobre desenvolvimento infantil considerado científico é a obra do fisiologista alemão William Preyer, A alma da criança, em 1882, inaugurando-se, assim, a Psicologia da Criança. Preyer observava seu filho ao menos três vezes ao dia, durante três anos consecutivos, anotando os progressos em um diário (Delval, 1994a).
Um ano mais tarde, o psicólogo norte-americano Stanley Hall publica Os conteúdos das mentes infantis, obra que atesta a constituição da Psicologia da Criança como disciplina independente. O autor estudou uma amostra de 200 crianças de Boston, utilizando pesquisa de tipo estatístico, constatando um grande número de crenças errôneas entre as crianças e salientando a conveniência de se distinguir entre “conhecimento verbal” e “conhecimento prático”.
c) Consolidação da Psicologia da Criança e início da Psicologia do Desenvolvimento – de 1895 ao período pós-Primeira Guerra Mundial. A Psicologia da Criança já se encontra bem desenvolvida nesta etapa e se iniciam pesquisas mais abrangentes, dentro do que se convencionou chamar de Psicologia do Desenvolvimento.
Um marco na constituição da Psicologia do Desenvolvimento como disciplina científica é o trabalho do psicólogo norte-americano James Mark Baldwin, intitulado O desenvolvimento mental na criança e na raça, publicado em 1895. Nesta obra, Baldwin trata do estudo do desenvolvimento das funções psicológicas desde a infância até a fase adulta, com o intuito de descobrir as leis desse desenvolvimento. Diferentemente dos estudos do período anterior, de natureza predominantemente descritiva, Baldwin preocupava-se com a interpretação teórica dos dados colhidos empiricamente.
No início do século XX, a Psicologia passou por profundas mudanças teóricas, com a influência do movimento psicanalítico, a crise da corrente introspeccionista e atomista e o início do prestígio do Behaviorismo, do Funcionalismo e da teoria da Gestalt. São também introduzidos os testes mentais (Galton, Binet e Simon, Terman) com o propósito de conhecer o nível mental das crianças para o oferecimento de um ensino adequado. Mas, segundo Delval (1994a), até a época da Primeira Grande Guerra, a Psicologia do Desenvolvimento não inspirava muita confiança no meio acadêmico e apresentava certa indefinição quanto aos temas que deveria investigar.
d) Sistematização da Psicologia do Desenvolvimento e contraposição entre acúmulo de dados e teoria – período que se estende do final da Primeira Grande Guerra até os anos 50 do século XX. Particularmente entre os anos 20 e 40, a Psicologia do Desenvolvimento experimentou grandes progressos, com as contribuições de Gesell e Baldwin, por exemplo, nos EUA, e de Piaget, Wallon, Werner e Vigotski, na Europa. É também nessa época que os testes de inteligência, desenvolvidos na etapa anterior, passam a ser utilizados na escola. A Psicologia do Desenvolvimento se vê incorporada à Psicologia da Educação como subárea privilegiada.
Duas tendências se manifestam no período: por um lado, há aqueles estudiosos que se empenham no estudo cuidadoso, detalhado e descritivo de diferentes aspectos do desenvolvimento, visando essencialmente o estabelecimento de normas de idade, mas sem preocupação teórica (Gesell, por exemplo); e por outro, certos autores se debruçam na elaboração de teorias explicativas do desenvolvimento psicológico, combinando levantamento de dados e teoria (como em Piaget, Wallon, Vigotski e Werner).
e) Expansão da Psicologia do Desenvolvimento – etapa que vai dos anos 50 do século XX até o presente, quando se multiplicam os institutos de pesquisa, as revistas especializadas, as publicações e congressos na área da Psicologia do Desenvolvimento.
Algumas mudanças devem ser salientadas. A própria Psicologia Experimental sofre alterações com a diminuição da influência do Behaviorismo e o crescimento de prestígio da Psicologia Cognitiva, que pretendia contrapor-se ao primeiro, ao valorizar os processos mentais inobserváveis. Além disso, a sistematização de teorias lógicas e matemáticas, que davam suporte ao emprego generalizado do computador, começa a influenciar as interpretações da mente humana. O interesse volta-se para a construção de modelos da mente (memória e aprendizagem, por exemplo).
É justamente a partir da década de 50 do século passado que toma impulso a teoria de Piaget, cujo objetivo básico era o estudo da inteligência infantil para a melhor compreensão do pensamento científico do adulto. Seu interesse era, portanto, de natureza fundamentalmente epistemológica, antes que psicológica ou educacional.
Veremos, em seguida, algumas idéias básicas que conformam a teoria psicogenética de Piaget.
A teoria psicogenética do desenvolvimento e suas contribuições à educação
A noção de desenvolvimento não é a mesma nas várias teorias psicológicas que tratam desta questão. Em certas teorias, denominadas aprioristas, maturacionistas, ou inatistas, considera-se o desenvolvimento como manifestação progressiva de potencialidades, um desdobramento do processo de crescimento orgânico, que depende da maturação do sistema nervoso. A essas teorias se opõem as empiristas ou ambientalistas, que vêem o desenvolvimento como acúmulo quantitativo de comportamentos aprendidos em função da experiência.
A teoria psicogenética de Piaget apresenta uma concepção bastante peculiar de desenvolvimento, ao considerá-lo um processo de organização e reorganização estrutural, de natureza seqüencial e ocorrendo em estádios independentes de idades cronológicas fixas.
Além dos fatores clássicos explicativos do desenvolvimento (biológico e ambiental), Piaget (1967/1973, 1975) propõe a equilibração (ou auto-regulação) como o principal mecanismo responsável pelo desenvolvimento cognitivo, definindo-a como um processo em que o sujeito reage ativamente às perturbações que o ambiente oferece, compensando-as de modo a anulá-las ou a neutralizá-las de alguma forma.
Segundo a teoria, todo ser vivo tende a organizar os próprios esquemas/estruturas de conhecimento para lidar com o ambiente; e todo ser vivo tende a adaptar-se ao ambiente, mediante os processos de assimilação – incorporação aos esquemas/estruturas das propriedades presentes no ambiente – e acomodação – modificação de esquemas/estruturas para ajustá-los às exigências ambientais.
Assim, todo ato inteligente pressupõe um esquema de assimilação ou uma estrutura que permite ao sujeito organizar o mundo e compreendê-lo. Enquanto as formas de organização modificam-se continuamente na interação entre o indivíduo e seu ambiente, os mecanismos responsáveis pelo funcionamento intelectual (assimilação e acomodação) permanecem invariáveis. São essas formas de organização que distinguem os vários períodos de desenvolvimento intelectual propostos por Piaget (Sensoriomotor, Operacional Concreto e Operacional Formal, com suas subdivisões).
O interesse básico de Piaget era o estudo do sujeito epistêmico, o sujeito universal do conhecimento. Nesse sentido, investigou o desenvolvimento das mais variadas noções (número, classes, relações, substância, peso, volume, proporções, combinatória, acaso etc.) e também a atuação de várias funções psicológicas como a percepção, a imagem mental, memória, linguagem, imitação etc.
Do extenso volume de pesquisas realizadas até o final de sua vida (Piaget faleceu em 1980, com 85 anos de idade), podemos citar algumas das muitas de suas descobertas e propostas teóricas, como, por exemplo:
– A existência de uma inteligência antes da linguagem;
– A descoberta de que as raízes da lógica estão na ação (caso em que julgamento e raciocínio prolongam os esquemas de ação iniciais);
– A concepção de continuidade entre a organização biológica e a psicológica e entre funções inferiores e superiores do psiquismo;
– A existência de processos de transição entre etapas distintas e a constatação do aparecimento de defasagens no desenvolvimento;
– A concepção de um processo geral de equilibração que ocorre em forma de estádios;
– A concepção de tomada de consciência como passagem do fazer ao compreender.
Embora Piaget não tivesse interesse específico pela educação, suas idéias tiveram bastante repercussão no campo educacional, principalmente por focalizarem noções básicas presentes também nos currículos escolares (Banks Leite, 1994). Mas Piaget chegou a pronunciar-se, algumas vezes, no campo pedagógico, defendendo, por exemplo, os métodos ativos propostos pelo movimento escolanovista dos anos 20 e 30 do século XX (Piaget, 1969/1976, 1948/1977). Sua influência se fez sentir, particularmente, a partir da década de 1950, quando se intensificaram as pesquisas e as tentativas de aplicação da teoria psicogenética ao campo educacional. Em artigo significativo a esse respeito, o pesquisador espanhol César Coll (1987) descreve essas tentativas, acrescentando algumas críticas pertinentes. As tentativas se fizeram, por exemplo, no estabelecimento de objetivos educacionais, na eleição de noções operatórias como conteúdos da educação escolar, na ordenação de conteúdos e na avaliação intelectual dos alunos, entre outras.
As experiências que pretenderam “aplicar Piaget” à educação escolar acabaram por mostrar que não é possível transpor mecanicamente uma teoria elaborada em um campo de conhecimento para outro campo eminentemente prático, como é o caso da educação. Certamente, as pesquisas de Piaget e colaboradores e a educação escolar têm um interesse comum: o desenvolvimento humano. Mas podemos dizer, com Macedo (1994), que divergem em tudo mais.
É interessante rever alguns pontos que afastam a teoria de Piaget e a educação escolar, que resumiremos como segue.
O interesse de Piaget era fundamentalmente de natureza epistemológica: investigar a gênese das noções e os processos de construção dos conhecimentos lógico-matemáticos, descrevendo os vários níveis dessa construção. Seu propósito era, portanto, teórico e voltado à descrição e explicação pertinentes ao sujeito epistêmico, o sujeito universal.
Por sua vez, o interesse da educação escolar é de natureza pedagógica, social e prática: promover o desenvolvimento da criança, prepará-la para exercer a cidadania e transmitir a cultura organizada. O propósito da educação é essencialmente prático e de caráter social, pois a transmissão cultural deve garantir a continuidade e a valorização dos bens transmitidos. E o sujeito de que trata a educação escolar materializa-se nos alunos particulares. É o sujeito psicológico ou individual que interessa à educação.
Se Piaget concebe o desenvolvimento dos conhecimentos como um processo espontâneo, valorizando as trocas entre sujeito e objeto, a concepção educacional de desenvolvimento supõe intervenção planejada e sistematizada em situação de ensino. As trocas, nesta última, incluem também a figura do professor e os objetivos e meios utilizados são intencionais, selecionados deliberadamente para resultarem em aprendizagem.
Desse modo, segundo afirma Macedo (1994), o problema de se aproximar a teoria piagetiana à educação escolar estaria em conciliar intervenção com espontaneidade e em recorrer à teoria sem desvirtuá-la. Aliás, o desvirtuamento parece ser a tônica, atualmente, em nossas escolas: segundo os professores, o Construtivismo é um método de ensino ou de alfabetização, ou um conjunto de regras ou de técnicas a serem aplicadas em sala de aula, segundo atestam estudos recentes (Chakur, 2005; Chakur, Silva & Massabni, 2004; Massabni, 2005; Silva, 2005).
Mas será que a teoria de Piaget nada oferece à educação?
Pensamos que, embora ainda não existam um método de ensino e uma teoria pedagógica construtivistas, Piaget deixa um quadro teórico consistente, a partir do qual o pesquisador e o professor podem estudar e compreender questões educacionais e repensar a prática pedagógica, como sugerem os estudos de Banks Leite (1994), Coll (1987) e Macedo (1994).
O Construtivismo piagetiano não dá respostas sobre o que e como ensinar, mas permite compreender como a criança e o adolescente aprendem, fornecendo um referencial para identificação de possibilidades e limitações da criança e do adolescente. Com isso, oferece ao professor uma atitude de respeito às condições intelectuais do aluno e uma maneira segura de interpretar suas condutas verbais e não verbais para melhor lidar com elas (Chakur & cols., 2004).
E quando se diz, numa interpretação piagetiana rudimentar, que a educação escolar deveria respeitar as fases do desenvolvimento intelectual, isso não significa sonegar à criança informações socialmente valorizadas ou deixar de ensinar conteúdos tidos como difíceis. O problema estaria em encontrar o equilíbrio entre o que a criança é capaz de assimilar e o que é necessário transmitir-lhe para sua formação como pessoa e cidadã, buscando, igualmente, formas adequadas de ajudá-la nessa tarefa.
Perspectivas atuais da pesquisa psicogenética e sua relevância para a educação
A perspectiva funcional
Como já dito, a abordagem piagetiana original voltava-se para o sujeito epistêmico, núcleo comum dos sujeitos individuais e matriz explicativa do desenvolvimento de aquisições de natureza universal. Seus estudos visavam, portanto, as estruturas do conhecimento racional, de natureza universal e normativa.
O interesse pelo funcionamento cognitivo foi preocupação do último período da obra de Piaget, quando buscou mostrar os mecanismos subjacentes à construção daquelas estruturas, detalhando os processos de equilibração e elegendo a majoração como o mecanismo por excelência do funcionamento psicológico da inteligência humana.
Trabalhos mais recentes, dentro da corrente piagetiana – os encontrados, por exemplo, na obra de Inhelder e cols. (1992/1996) sobre resolução de problemas, chamados estudos sobre microgêneses –, orientam-se para o sujeito individual ou psicológico e se destinam a revelar a dinâmica das condutas, ou seja, suas finalidades, meios, valores e processos de controle e descoberta. Interessa, portanto, o sujeito psicológico como sujeito de conhecimento, com suas intenções particulares e valores.
As pesquisas sobre microgêneses permitem perceber características do processo interativo sujeito-objeto em curto espaço de tempo e as situações-problema são ocasiões propícias para investigar os processos funcionais aí presentes.
Na obra mencionada acima, Inhelder e De Caprona (1996) definem a nova abordagem, distinguindo-a do enfoque piagetiano clássico. Esclarecem que a abordagem estrutural visa estabelecer formas de organização cognitiva, concebendo a sucessão de estruturas como caminhos necessários à evolução dos conhecimentos. A análise funcional, por sua vez, ao invés de estudar filiações entre estruturas, por exemplo, busca determinar o papel funcional dos sucessos e fracassos, a relação entre pertinência e saber. Focaliza os procedimentos utilizados na solução de problemas, ou seja, ações encadeadas e orientadas por finalidades particulares que o sujeito se coloca. Mas, diferentemente das ações particulares, os procedimentos são transponíveis de um a outro problema ou situação e podem ser compartilhados, embora não tenham o caráter de reversibilidade próprio das estruturas lógicas.
Enquanto o problema do “saber fazer” é determinar por que houve fracasso, o problema relacionado aos procedimentos é o de “como ser bem sucedido”, o que significa “compreender como fazer”. Segundo Inhelder e De Caprona (1996), o “como fazer” supõe uma forma de compreensão distinta da compreensão conceitual, desde que relacionada aos procedimentos que permitiram chegar a determinada solução.
Piaget já havia diferenciado dois sistemas de esquemas na atividade cognitiva: o sistema presentativo, que inclui os esquemas sensoriomotores, representativos e conceituais e o sistema de procedimentos, cujos esquemas são seqüências de ações que servem de meios para se atingir um objetivo, sendo difícil abstraí-los de seus contextos. Essa distinção estabelece, portanto, a diferença entre atividades cognitivas com função organizadora e estruturante e aquelas que apresentam função heurística.
As pesquisas sobre microgêneses têm sido feitas, geralmente, na forma de estudo de casos, tomando sujeitos individualmente e empregando a observação de suas atividades espontâneas diante de certo material. São empregadas gravações em vídeo e análise de tarefa, que ressaltam o tipo de representação que o sujeito elabora e os meios empregados na solução do problema.
Acreditamos que pesquisas desse tipo interessam diretamente à educação. É importante ao professor saber não apenas o que o aluno de certa faixa etária é capaz de assimilar em dada matéria, mas, principalmente, comoresolve problemas pertinentes a determinados conteúdos, que meios emprega em suas tentativas de solução, como integra conhecimentos e informações sobre dado assunto, quais estratégias de aprendizagem esse aluno utiliza.
Vale lembrar que, nas preocupações das pesquisas com análise funcional e igualmente nas preocupações da educação escolar, há uma identidade de sujeito: em ambas, é o mesmo sujeito psicológico, particular, com seus valores e intenções, atuando em determinado contexto, que se apresenta como foco de atenção.
A abordagem sócio-interacionista
A chamada abordagem sócio-interacionista é uma linha de pesquisas que enfatiza a natureza social da inteligência e se preocupa com o domínio social, trazendo importantes contribuições para a educação escolar. As pesquisas são geralmente do tipo pré-teste/pós-teste, com introdução de uma tarefa problemática a ser resolvida em grupo de dois ou três indivíduos.
Desde seus primeiros trabalhos, Piaget (1932/1994; 1998) já havia formulado algumas hipóteses sobre o papel da cooperação no desenvolvimento intelectual e também estimulado a adoção de métodos de ensino que recorrem à interação entre pares. Mas foi apenas na década de 1970 que certos pesquisadores retomaram essas hipóteses, elegendo como principal variável determinante do desenvolvimento o conflito sociocognitivo que surge nas situações de interação entre as pessoas.
Os defensores dessa abordagem concordam com certas idéias piagetianas, como a de que um ambiente social favorável, com um ingrediente de cooperação, pode conduzir à autonomia tanto cognitiva quanto moral, à descentração e à reciprocidade, mas levantam críticas à lacuna deixada por Piaget, que não tratou da inteligência como um fenômeno social, omitindo-se de estudar as ligações causais entre o cognitivo e o social. Segundo Doise e Mugny (1984), a inteligência, na visão piagetiana, é geralmente concebida como propriedade de um organismo isolado, e não como propriedade de um organismo em relação com um ambiente específico, como um processo relacional entre indivíduos que organizam de modo conjunto suas ações sobre o ambiente físico e social.
Doise e Mugny (1984) incorporam a idéia de Piaget de que o desenvolvimento ocorre em estádios de equilíbrio crescente, mas negam que a construção de estruturas seja apenas endógena. É nesse ponto que a abordagem sócio-interacionista parece aproximar-se das idéias de Vigotski ao defender a “tese geral de que as coordenações entre indivíduos são a fonte de coordenações individuais e que as primeiras precedem e produzem estas últimas” (Doise & Mugny, 1984, p. 23). Interações sociais que se revelam mais complexas favorecem a aquisição de capacidades cognitivas mais desenvolvidas que, por sua vez, permitem a participação do indivíduo em relações sociais mais complexas, e assim por diante. O método experimental pode mostrar quais interações e em quais estádios se revelam efetivas em promover o desenvolvimento cognitivo.
Além disso, retoma-se o conceito piagetiano de conflito cognitivo – conflito que ocorre entre os próprios argumentos da criança quando se depara com uma situação problemática e focaliza elementos perturbadores distintos – transformando-o em conflito sociocognitivo, em que o confronto ocorre entre pontos de vista ou soluções divergentes dadas por distintos indivíduos em situação de interação social, conduzindo ao progresso cognitivo. Por exemplo, crianças de níveis cognitivos diferentes têm maior possibilidade de desacordo quanto a respostas específicas a um problema, de modo que seus julgamentos e ações se derivam de esquemas diferentes mas também crianças de um mesmo nível podem mostrar centrações diferentes (sobre distintos elementos da situação), resultando em julgamentos que se contrapõem. Em ambos os casos, os desacordos podem gerar um conflito sociocognitivo, que seria, então, a fonte de desequilíbrio e o mecanismo que leva ao progresso cognitivo.
Os autores contestam as idéias de Piaget e também de Inhelder, Sinclair e Bovet, de que o desacordo ocorre entre esquemas de assimilação e constatação de observáveis ou entre diferentes esquemas de um mesmo sujeito. Para Doise e Mugny (1984), o conflito seria de natureza sociocognitiva, porque resulta da confrontação entre esquemas de diferentes sujeitos durante situação de interação social.
Com esse breve resumo, já se pode ter uma idéia da fecundidade de tais pesquisas para o âmbito da educação escolar. Sabemos que, muitas vezes, os professores sentem que os trabalhos realizados em grupo pelos alunos resultam mais produtivos que as tarefas feitas individualmente; mas há, também, professores que mostram certa resistência em recorrer a essa estratégia em sala de aula, seja porque é difícil controlar a “altura” a que chegam as discussões, seja por que não conseguem distinguir quem realmente trabalha e quem copia a resposta do colega.
A nosso ver, as investigações sobre conflito sociocognitivo dão indicações precisas de como tornar proveitosas as experiências de trabalho em grupo e mereceriam ser divulgadas entre os professores, servindo como fonte de idéias de como formar grupos de alunos (homogêneos ou heterogêneos), a qual critério recorrer para essa formação, como distribuir as tarefas etc. Além disso, o trabalho em equipe, tal como defendeu Piaget várias vezes (Piaget, 1969/1976, 1948/1977, 1998), é uma ocasião propícia para a troca de opiniões e de pontos de vista, fundamental na superação do egocentrismo infantil, além de revelar-se uma experiência prazerosa.
Os estudos sobre a compreensão do mundo social
Outra vertente de pesquisas psicogenéticas não explorada por Piaget, mas bastante valorizada atualmente, situa-se no campo dos conhecimentos sociais.
Em algumas ocasiões, Piaget (1967; 1967/1973) fez a distinção entre três tipos gerais de conhecimento: 1)conhecimentos estruturados por uma programação hereditária (reflexos, percepção, por exemplo); 2)conhecimentos físicos – retirados da experiência por abstração física ou empírica (descoberta de propriedades pertencentes aos objetos); e 3) conhecimentos lógico-matemáticos – obtidos por abstração reflexiva ou lógico-matemática (descoberta de propriedades das próprias ações do sujeito e de suas coordenações).
A esses três tipos, estudos piagetianos relativamente recentes (iniciados a partir da década de 70 do século XX) têm acrescentado os conhecimentos sociais, opondo-os aos primeiros. São estudos, no entanto, que apresentam controvérsias sobre a especificidade do conhecimento social, tendo aparecido algumas confusões não apenas quanto ao próprio conceito de social, mas também quanto à perspectiva da relação social estudada (Chakur, 2002; Delval, 1994b; Enesco, Delval & Linaza, 1989; Jahoda, 1984).
A corrente comumente chamada de cognição social costuma incluir no rol de conhecimentos dessa natureza o conhecimento de si mesmo (autoconceito), o de como os outros pensam e sentem, suas intenções e motivações, percepções e personalidade, além de conceitos de relações interpessoais (amizade, confiança, obediência), de instituições, regras, convenções e julgamento moral (Codol, 1989; Damon, 1979; Grusec & Lytton, 1988; Rose-Krasnor, 1988).
Em alguns dos seus textos, o pesquisador espanhol Juan Delval tenta “aparar as arestas” do debate e delimitar o campo em questão (Delval, 1989, 1992, 1994b). Observa que toda atividade humana é social em sua origem, mas nem todo conhecimento tem um objeto social como conteúdo. Seria, pois, necessário distinguir entre o social como objeto de conhecimento e o social como contexto em que o conhecimento é adquirido ou como determinante do desenvolvimento.
Algumas relações são, na verdade, definidas como sociais do ponto de vista do observador externo, que examina a interação entre sujeitos, enquanto o sujeito observado conhece o outro como organismo psicológico, com seus sentimentos, crenças, intenções etc. Este seria um estudo da atividade do sujeito como uma espécie depsicólogo espontâneo, como diz Delval (1992).
Segundo esse autor, a passagem do psicológico ao social não seria questão de quantidade de atores envolvidos na relação, mas da natureza dessa relação. O que caracteriza os fenômenos sociais é a existência de relações institucionalizadas, que transcendem os sujeitos individuais e as relações pessoais. O estudo dos conhecimentos propriamente sociais deveria, nesse caso, ter em conta o sujeito como pensador social e não como psicólogo espontâneo.
Conforme essa última perspectiva, os conteúdos das pesquisas apresentam dois núcleos básicos: a ordemeconômica e a ordem política. Evidentemente, há temas que não se enquadram em nenhum desses núcleos, como os relativos à família, às diferenças de gênero e às relações interpessoais, entre outros. As pesquisas sobre a ordem econômica têm focalizado a compreensão de noções, tais como sistema monetário, classe social, lucro, mobilidade social, hierarquia ocupacional e outras mais (de que são exemplos os estudos de Delval, Enesco & Navarro, 1994; Enesco & cols., 1995; Furth, 1980; Navarro, 1994; Navarro, Enesco, Soto & Delval, 1993). Dentro do núcleo político, há pesquisas sobre a compreensão de conceitos tais como nação, país, lei, direitos humanos, justiça, poder, guerra, paz etc. (ver, por exemplo, os estudos de Chakur, Delval, del Barrio, Espinosa & Breña, 1998; Coutinho, 1987; Delval & del Barrio, 1987, 1991).
Os estudos psicogenéticos dos conhecimentos sociais costumam trazer o mesmo formato de procedimento e apresentação de dados das pesquisas piagetianas em geral: utilizam entrevistas clínicas e apresentam os dados em forma de estádios ou níveis evolutivos, com extratos de protocolos exemplificando os achados. Tal como previsto pela teoria de Piaget, os autores dessas pesquisas têm assinalado que as crianças oferecem interpretações sobre o mundo social que não coincidem com as dos adultos, nem correspondem ao que ocorre na realidade. São interpretações e explicações que também não foram ensinadas, mas são comuns a crianças de uma mesma faixa etária, mesmo provenientes de meios sociais e culturais distintos. Vale lembrar que essas pesquisas têm encontrado certo atraso na aquisição de conhecimentos sociais, comparativamente à aquisição de noções do mundo físico (Carretero, 1993/1997b; Delval, 1989; Delval, 1994b; Furth, 1980).
As pesquisas sobre conteúdos escolares
Uma outra vertente de pesquisas dentro, ainda, do domínio social tem se preocupado de modo especial com a aquisição de conteúdos propriamente escolares, como os conceitos históricos de absolutismo, feudalismo, democracia; e também com a compreensão de fatos históricos, como a Descoberta da América, a Revolução Francesa, a Queda do Muro de Berlim e a Segunda Guerra Mundial.
Carretero (1995/1997a) comenta que parece generalizada a opinião de que os conteúdos das Ciências Sociais e da História são facilmente compreensíveis, visto que não supõem relações muito complexas do ponto de vista conceitual. Portanto, para serem compreendidos corretamente, apenas requerem explicações inteligentes e bem elaboradas por parte do professor e um trabalho de memória e repetição por parte do aluno.
E completa que esta é uma crença que advém de uma visão estereotipada das Ciências Sociais e da História, em que o ensino dessas áreas se associa com “conteúdos puramente episódicos ou com nomes de rios, reis e batalhas, assim como com datas e dados concretos” (Carretero, 1995/1997a, p. 79).
Diferentemente, as pesquisas têm mostrado que é grande a dificuldade dos alunos na compreensão dos conteúdos sociais e históricos, pois que são de alta complexidade e supõem um domínio de conceitos que não têm tradução direta na realidade empírica.
Algumas pesquisas sobre temas das Ciências Sociais têm apontado que, na verdade, são os alunos, inclusive os adolescentes, que dispõem de representações episódicas e personalistas dos conceitos sociais e históricos. Concebem, por exemplo, as revoluções como enfrentamento entre grupos de pessoas, reduzem a instituição monárquica à figura do rei e compreendem o Estado moderno em termos do seu território ou dos seus habitantes (Carretero, 1995/1997a, 1993/1997b).
As pesquisas mostram, igualmente, que a compreensão dos alunos não é questão de tudo ou nada, mas se apresenta em certos níveis. Tais são os casos, por exemplo, das idéias dos alunos sobre fontes históricas, sobre o trabalho do historiador e sobre a evidência histórica, cujos estudos são comentados por Carretero (1993/1997b).
As investigações também se voltam para a visão que têm os alunos com relação a certas ciências sociais como matérias escolares – suas preferências, o nível de dificuldade que essas matérias apresentam relativamente a outras disciplinas, a importância que têm no currículo (vide, por exemplo, os trabalhos de Carretero, 1995/1997, 1993/1997b; Carretero, Pozo & Asensio, 1983).
A relevância dessas pesquisas para a educação é evidente, já que tratam de conteúdos específicos e propriamente escolares. Mas não só por isso. Ao atestarem que certos conteúdos apresentam dificuldade intrínseca e que são adquiridos de forma progressiva, as pesquisas informam ao professor sobre os modos mais adequados de transmiti-los e, principalmente, de avaliá-los, quando se busca reconhecer a que distância se encontram da aquisição plena.
Conclusão
Pesquisas que têm por objeto o desenvolvimento aparentemente se distanciam da educação escolar, cuja preocupação primordial é com a aprendizagem do aluno. Mas, como deixamos entrever em nossa exposição, em geral essas investigações se revelam bastante promissoras para a área educacional. O problema que enfrentam se refere à tentativa de aproximar a teoria psicogenética da realidade educacional, sem desvirtuar a primeira, nem desprezar o valor dos conteúdos escolares.
Sabe-se que as pesquisas psicogenéticas no domínio social ainda são muito escassas, recebem poucos recursos e têm pouca divulgação, principalmente no Brasil, relativamente ao que ocorre, por exemplo, nas áreas de Ciências Naturais e Matemática, como indicam os estudos de Carretero (1995/1997a, 1993/1997b) e Delval (1994b). Desse modo, revela-se providencial o avanço das investigações no domínio dos conhecimentos sociais. O modo como esses conhecimentos são adquiridos, o que a criança consegue assimilar e como evolui sua compreensão do mundo social, se elucidados, podem orientar não apenas a reformulação curricular, como também a criação de procedimentos de ensino mais adequados a um campo que apresenta dificuldade intrínseca para ser compreendido.
Mais importante, segundo pensamos, é a contribuição dessas pesquisas para reorientar a visão de ensino-aprendizagem dos conteúdos das ciências sociais: de uma visão que se assenta no verbalismo, no decorativo e factual, amplamente disseminada nas escolas, a outra que valoriza os conhecimentos prévios do aprendiz e sua compreensão e respeita suas limitações – evidentemente valorizando também a intervenção que pode corrigi-las, quando inadequadas –, considerando o nível superior de dificuldade que apresentam os conteúdos sociais.
Assim também, investigações que se voltam para a solução de problemas e para o papel do conflito sociocognitivo na aprendizagem dão valiosas contribuições ao professor quando são fontes de idéias sobre como organizar os conteúdos e como distribuir a classe na realização de tarefas.
Consideramos, no entanto, que há certo perigo – já presente entre nós – na divulgação de resultados de pesquisas, quaisquer que sejam, apoiadas na abordagem psicogenética (ou construtivista, como é mais conhecida). Investigações sob nossa coordenação ou orientação (Chakur, 2005; Chakur & cols., 2004; Massabni, 2005; Silva, 2005) apontaram o risco de que o aligeiramento na divulgação de dados e idéias do Construtivismo pode fomentar, entre professores, a disseminação de fórmulas verbais destituídas de fundamentos e/ou de raízes na prática educativa (tal como o aluno constrói sozinho os conhecimentos ou o conteúdo não interessa, o que importa é o raciocínio), além de receitas e prescrições desligadas da teoria e/ou de justificativas práticas que lhes dão sentido (por exemplo, deve-se dar trabalho em grupo em sala de aula ou não se deve corrigir o aluno).
Partindo do exposto, podemos, enfim, concluir que as pesquisas psicogenéticas não só ampliam o campo da Psicologia e o de um dos seus ramos (a Psicologia do Desenvolvimento) – caso em que o homem passa a melhor compreender a si próprio em um mundo em contínuo movimento –, como também oferecem uma visão ampla do desenvolvimento para aqueles que se interessam em promovê-lo, o que constitui uma das finalidades da educação escolar.
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Autor: Cilene Ribeiro de Sá Leite Chakur
Psicologia: Teoria e Pesquisa
Instituto de Psicologia
Universidade de Brasília
70910-900 – Brasília – DF – Brasil
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