Duas metáforas Bahktinianas sob a luz da alegoria platônica O Mito da Caverna.
Platão escreveu uma alegoria recontada de forma interessante por Jorge Cláudio Ribeiro em seu livro Ousar a Utopia. Quero resumir a alegoria que acho preciosa para a nossa reflexão.
O MITO DA CAVERNA
“Numa montanha distante (ou quem sabe, mais próximo do que você pode imaginar) havia uma caverna. Mas que caverna estranha! Seu formato era semelhante ao de uma enorme garrafa. Pelo “gargalo” de uma caverna, passavam a luz e o ar. À medida que se caminhava para o fundo, ficava mais largo o espaço entre o chão e o teto.
A caverna terminava num paredão de pedra. Do lado de fora, sobre uma rocha, uma grande fogueira projetava sua luz sobre o fundo da caverna. Assim, como a tela de um cinema natural sempre em funcionamento, o paredão era iluminado permanentemente pelo fogo.
Na beira da entrada da caverna, que era semelhante a um muro, havia uma estradinha. Por ela transitavam as pessoas que iam ao mercado, comprar e vender suas mercadorias. Elas conversavam e riam e o som de suas vozes ecoava dentro da caverna. Além disso, as estatuetas e pequenos animais que carregavam sobre a cabeça recebiam os raios de luz da fogueira. Isto fazia com que as sombras dos objetos fossem projetadas no fundo iluminado da caverna.
Acorrentados
O mais estranho de tudo era que dentro daquele lugar tenebroso morava um grupo de homens e mulheres que sempre estiveram acorrentados ali. Eles tinham uma corrente no pescoço, que os impedia de olhar para trás. Mas ao mesmo que conseguissem virar a cabeça, não teriam coragem de fazê-lo: “Olhar para outra direção dá azar”, comentava-se.
Como os prisioneiros estavam de costas para a entrada, ficavam vendo as sombras das coisas projetadas no paredão do fundo. Nesta ilusão, pensavam que as sombras eram a realidade.
Aquele grupo trabalhava o dia inteiro, tirando do chão em redor de si umas pedras que aprenderam a chamar de “minério”. Mas ninguém sabia ao certo o que era, nem para o que servia. O material era recolhido por Chefe! Que o colocava numa grande barrica de madeira.
Chefe! Também era acorrentado, mas tinha uma diferença. Sua corrente era muito comprida, o que lhe permitia andar entre os prisioneiros e chegar até lá atrás, onde ninguém pode vê-lo. Chefe! Era gordão, bem mais corpulento que os outros acorrentados. De vez em quando ele rolava a barrica cheia de minérios até a entrada da caverna.
Diziam que Chefe! Devia ser mágico: pois não é que ele levava as pedras e parecia que as transformava em pães? Os presos, que viviam reclamando da fome, recebiam seu pedaço com a maior das alegrias e, antes de devorá-lo, agradeciam a bondade de seu benfeitor.
Adivinhação
Mas, então, como é que os presos chamavam a si mesmos? o nome que tinham aprendido a dar para si próprios era “cavernosos” tinham muito orgulho de um nome tão sonoro.
Os momentos mais gostosos do dia aconteciam quando aparecia alguma sombra lá na frente, na parede. Aí todo mundo parava de cavar e brincava de adivinhar o nome das sombras que estavam se mexendo na parede iluminada. Mas os acorrentados nunca chegavam a um acordo. Cada um gritava mais alto que o outro, para dar seu palpite.
A sombra predileta era uma que fazia o som “cocoricó”. Um preso gritava que o nome daquilo era “vaca”. Outro dizia que era “pedra”, mas ninguém acreditava. Mais adiante alguém sugeria que era “galo”, mas ninguém acreditava. A brincadeira terminava em muitas risadas.
Como ninguém tinha certeza do que se tratava, os acorrentados pediam a Chefe! que lhes ensinassem o nome daquela imagem. “Não vi direito”, desculpava-se. Os cavernosos achavam muita graça do charme que ele fazia. Então insistiam, até que seu superior ensinava, categórico: “Trata-se de um elefante”. E todos concordavam que Chefe! Tinha enorme sabedoria.
A fama de Chefe! Era tanta que ninguém notava quando ele (por acaso, claro) trocava os nomes. Falando “tapete” para uma coisa que ele tinha ensinado que era “elefante”. Bem, quase ninguém notava.
Brincadeiras
De vez em quando, os cavernosos aprontavam uma peça uns com os outros. Quando uma pessoa estava relaxando no serviço e botando menor quantidade de minério na barrica de Chefe! Pregavam susto nela. Chefe! Vinha por trás, devagarinho e … ZÁS! Jogava um capuz na cabeça do coitado. Em seguida, soltava o cadeado de sua corrente.
O “libertado”, confuso, ficava agitando os braços. Daí, Chefe! Gritava: “Homem ao mar!”. Ninguém entendia o significado dessa expressão. Mas não faz mal; era o sinal para que o preguiçoso fosse empurrado, em meio a gargalhada, o mais longe possível de seu lugar. Aí tiravam o capuz.
Reviravolta
Mas, um dia, a brincadeira foi longa demais. Fizeram-na com Sou, um dos acorrentados mais jovens. Ele ficava bem perto do paredão iluminado, onde recebia lições extras. Chefe! estava tentando ajudar Sou a perder o mau hábito de estranhar quando ele dava nomes diferentes à mesma sombra.
Sou há dias passava fome. Claro, sua produção caiu tanto que chamou a atenção.
Um dia, para seu desespero, foi encapuzado e privado de sua guia e segurança: a corrente. Sou berrava em meio aos gritos de alegria de seus colegas. Rodou pela caverna mais tempo que de costume, sem conseguir se encontrar. Tirou o capuz. Todos já dormiam, inclusive Chefe! De repente, ainda solto, sentiu o coração bater descontrolado. Uma luz muito forte feriu seus olhos. Pensando que era a parede do fundo da caverna, onde ficava seu lugar, caminhou naquela direção. Só que alguma coisa estranha estava acontecendo. A luz era clara demais e doía na vista de Sou. Ele nem percebia por onde estava andando. Mas insistiu, certo de que estava de volta para a sua corrente.
Surpresa
De repente, Sou deu um grito de pavor. Ele percebeu que estava fora da caverna. Enganado pela luz, acabou andando na direção oposta à que pretendia.
Mas à medida que sua vista se acostumava, ele se defrontava com um mundo totalmente diferente, estranho. Não havia mais claro-escuro, preto-e-branco. Aos poucos, seus olhos, olfato, pele começaram a receber impressões maravilhosas, surpreendentes.
Sou, feliz, mergulhou na água, que lhe pareceu tão fraca em suas gotas, mas muito poderosa. Pisou na areia, macia. Lambuzou-se de terra. O gosto da terra não era lá muito agradável. Mas sentir a maciez e frescor daquela substância fecunda, de onde tudo se brotava, trouxe a Sou uma sensação mágica.
Sou, exausto, adormeceu. Quando acordou, estava escuro. “Será que ainda estou na caverna? Tudo foi só um sonho?”, pensou. Mas a suspeita logo passou. Virando a cabeça, ele viu no céu uma grande bola prateada e pontinhos luminosos. Ele ficou deitado no chão, contemplando aquela maravilha.
Volta atrás
Após pensar algum tempo e ao olhar para o chão haver encontrado pegadas que não eram suas. Bateu na testa.
“Como é que fui me esquecer?! eu aqui no bem-bom, e lá em casa está uma porção de amigos e amigas olhando só para as sombras! Vou correndo libertá-los”.
Mais do que depressa, Sou voltou atrás, em direção à caverna.
Revolução
Entrando na caverna, logo estranhou a escuridão. Tateando e tropeçando, Sou chegou lá na frente e disse:
Gente! Estou de volta e quero contar-lhes as maravilhas que descobri lá fora da caverna. O que vocês estão vendo aí no paredão não passa de sombras. Existe um imenso mundo lá fora, muito mais livre, bonito e gostoso do que esse buraco abafado em que nascemos!
Sou, muito emocionado, chorava e ria enquanto dizia essas palavras. Ao mesmo tempo ia tratando de tirar as correntes dos cavernosos mais próximos.
Não percamos mais um minuto aqui dentro. A vida verdadeira está lá fora! – ia dizendo.
Mais Sou logo notou que havia algo errado. Alguns companheiros gemiam, desconfiados de estarem sendo enganados com a brincadeira de tirar a corrente. Outros pediam socorro a Chefe!. Em meio à balbúrdia geral, Chefe! pediu a palavra. Parecia assustado e aturdido.
Começou falando manso.
Meus filhos e filhas! Certamente posso chamá-los assim, não é? há muito tempo graças à minha experiência, venho ensinando a vocês os nomes das coisas verdadeiras e belas, que aparecem para nós aqui na frente. Fui escolhido pelo destino e pelos deuses. Minha mente foi privilegiada, pois nela foram inseridas as ideias, que não inventei, que não aprendi. Essas ideias nasceram em mim e, quando uma coisa aparece na parede, seu nome surge na minha cabeça imediatamente. Vejam vocês, queridos. Agora nos parece esse fedelho, querendo nos dar lições! Ele vem cheio de orgulho, só porque se perdeu lá fora, na apavorante terra das trevas. Lá é tão estranho que ele ficou meio louco. Não deem ouvidos às suas ideias exóticas! Esse verme não merece viver aqui, entre gente decente!
Sou, surpreso, precisou correr muito para não ser estraçalhado pelos cavernosos. Enquanto fugia, o rapaz ouviu alguém gritando: “Vamos com você”. Chefe! quase alcançava Sou.
Venham! Sigam minha voz! – disse o rapaz.
Ele continuou correndo no escuro, ao mesmo tempo que cantava alto: “Eeeeuu Sooou! Eeeeuu Sooou!”.
O barulho da corrente de Chefe! ficou lá para trás.
Fora da caverna, Sou percebeu que estava acompanhado por uma menina. “Aqui na luz você fica mais bonito …”, disse ela. E sorriu.
Logo depois, capengando, apareceu um velhinho. “Quero aproveitar toda a vida que ainda me resta”, disse, soltando uma risada marota.
Os três se abraçaram. Felizes, seguiram juntos na direção das pegadas humanas deixadas no caminho.
1 – INTRODUÇÃO
Quando se analisa a conhecida alegoria platônica, O Mito da Caverna, os olhares estão sempre voltados para a Liberdade: Como Sou encontrou a liberdade, o que fez quando deparou-se com ela, como reagiram os cavernosos quando Sou os chamou para fora da caverna etc. Mas a nossa reflexão propõe enxergar especialmente no professor de língua um Chefe não menos manipulador que o contado por Platão.
Inicialmente não pensava em aplicar tal alegoria, e mais particularmente tal personagem, ao professor de língua. Mas com o desenrolar da reflexão vi que realmente caía à figura do professor desatualizado, “como uma luva” tal figura ilustrativa; sendo assim achei por bem usá-la, sem comprometer a pessoas mas às finitas iniciativas de mudar tendo em vista tão eminente acidente causado pelo inadvertido preconceito lingüístico. Pretendo levar o leitor a pensar: que posturas adotadas por professores têm transformado alunos em cavernosos acorrentados por uma ideia de língua como estrutura. Uso para nossa reflexão a alegoria que você acabou de ler, aplicada a duas metáforas de Mikhail Bahktin – linguista Russo, fonte de grandes reflexões em Análise do Discurso. Na primeira parte proponho ao professor de língua um aprofundamento no ensino, baseado num conhecimento mais amplo da construção da linguagem e seu conceito dialógico entre outras questões relacionadas ao ensino de língua materna. Na Segunda parte busco levar o professor de língua a pensar qual o melhor procedimento a ser adotado, como Cristão diante do preconceito linguístico e seus maléficos resultados para o aluno.
Depois de haver lido a alegoria, Vamos às metáforas:
Pelo menos duas metáforas Bahktinianas são, a meu ver, no mínimo espetacularmente aplicáveis às nossas reflexões nesta pesquisa.
“O processo de fala, compreendida no sentido amplo como processo de atividade de linguagem tanto exterior como interior, é ininterrupto, não tem começo nem fim. A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. Bahktin (1997:125)
“A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor.” Bahktin ( 1997:113)
2 – O PROFESSOR DE PORTUGUÊS E CHEFE
O professor Chefe era terrível, como lemos na alegoria, acorrentava mesmo!! E essa corrente ideológica de Chefe manipulava os pobres cavernosos na direção que lhe interessava. Percebe-se pelo relato que a grande maioria aceitava, e alguns até sentiam-se mais seguros sendo dominados. A partir desse instante toda vez que citarmos Chefe estaremos falando de professores que mantêm postura manipuladora e autoritária, semelhante à de Chefe na caverna. Analisemos alguns problemas de Chefe.
O primeiro problema de Chefe é que ele não entende de gente. Ele não entende que gente não se mecaniza, gente não é máquina de produção. Os alunos são sensíveis, precisam de atenção, de respeito, amor e aceitabilidade. Precisam ser compreendidos individualmente, assim como têm insistido afamados palestrantes sobre Sucesso nas Vendas e Como Conquistar Clientes, clientes têm que ter tratamento personalizado. Não estou falando em como conquistar clientes para a escola, mas em como ser bem sucedido ao tratar alunos como gente e não cavernosos.
Observe que Chefe hoje diz-se entendido de tudo: word, power point, transparência, livro didático, de seu conteúdo, menos de gente. Roberto Shinyashiki em uma teleconferência em Curitiba, exibida pelo SEBRAE, fala de cinco segredos para ser um campeão, entre eles cita exatamente esse: gente para lidar com gente precisa entender de gente. Diz que todo ser humano tem dois botões: um que liga outro que desliga. Observe o exemplo: Quando o seu filho chega em casa e diz: tirei nota vermelha em português, ou reprovei em matemática etc. como você se comporta? você reage dizendo: Seu burro, eu trabalho tanto para te dar a oportunidade que eu não tive. Você vive só para estudar e nos dá como presente esse desgosto, como você tem coragem? que botão você acha que está apertando no seu filho? o que liga ou o que desliga? é óbvio, o que desliga.
As crianças, jovens, adolescentes são sensíveis, especialmente quando chegam à escola. Seus botões de liga e desliga estão nas mãos de Chefes que na maioria das vezes são incapazes de mensurar essa sensibilidade. Alguns alunos nos dizem claramente: Não gosto de tal disciplina porque causa de tal aula, de tal livro, de tal professor, de tal escola… lidar com gente, exige conhecer gente e amar gente. O professor é referencial, o que ele diz tem peso e influencia a vida do aluno. Se num processo de formação lingüística o professor não consegue compreender como se dá a construção da linguagem no ser humano e sente-se no direito de eliminar a linguagem herdada no lar para impor-lhe a norma culta, ele estará ligando ou desligando o aluno? Ponha-se no lugar de seu aluno como gente para responder a essa pergunta. Digamos que você pertença a um lar, cujo nível social acadêmico não é privilegiado e que seus pais não falam nem se quer ouviram falar a respeito da famosa norma culta da linguagem. Obviamente você chega à escola falando o que aprendeu em casa, certo de que sabe falar. A primeira vez que você fala com a professora ela diz, mesmo que amorosamente: não se fala nóis foi e também não se fala agente cheguemo o certo é: nós fomos e nós chegamos.
O que essa correção pode causar como resultado num ser humano em formação?
O computador reage diferentemente, você corrige e no outro dia ao digitar ele executará a forma correta sem traumas, computador não pensa, não é gente. Mas ao aluno, junto à sua correção, seguem outras informações. O que você disse, para ele não foi só aquilo. O que você fala, querido professor, como diz a primeira metáfora de Bahktin “é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior” (referência supra citada). Que discurso interior é esse? é a formação ideológica que resulta no enunciado que você materializou e essa formação ideológica, inadvertidamente, acompanha o que você disse sem que perceba e tenha poder sobre o resultado final. Desta forma sua correção lingüística pode ter soado ao aluno como: Você não sabe falar… cuidado antes de abrir a boca, você pode passar vergonha… falar correto é coisa que poucos sabem fazer… cuidado quando falar comigo e uma infinidade de outros constrangimentos e encarceramentos ideológicos. Voltaremos a tratar desse assunto, preconceito lingüístico, mais a diante.
Em minha trajetória de paralelismos, entre o Chefe da alegoria e o professor, outro problema sério de Chefe é que ele alimenta pouco. Vejo alunos acorrentados quando lutam tanto, para comer tão pouco da mão de Chefe. Alunos que se deparam com as correntes gramaticais do “não sei falar” mas não encontram respostas para: como é então que se fala? e as respostas nem sempre satisfazem a sua inteligência:
“Já que os professores em geral não sabem gramática e os alunos não aprendem, para que ensinar?” Possenti (2001: 8)
Chefe da escola alimenta pouco porque sabe pouco e coitados dos alunos. Professor, não estou dizendo que você não sabe gramática, mas que saber gramática não é suficiente. Chefe sabe muita gramática e por isso mesmo acorrenta. Ensinar gramática não traz resultados práticos e esperados no futuro.
O professor de português como Chefe é aquele que não ensina para a vida. Aquele que não torna a sua disciplina funcional e útil. Mantém seus alunos amarrados os 365 dias do ano à uma corrente chamada gramática tradicional, que como bem disse Possenti, nem ele mesmo sabe como torná-la útil. Não vê ele mesmo (Chefe) o mínimo de sentido prático em algumas matérias da disciplina com as quais ocupam semanas dando e revisando. Depois querem que seus alunos saibam ler bem, falar com desenvoltura, escrever com coerência, coesão, concisão e clareza, mas não desgrudam das correntes. Não prego a irresponsabilidade, mas não vejo que a ameaça, o espírito de dominação, o preconceito e uma gramática destituída de sentido prático sejam compromissos e façam parte de um ensino para a vida.
Na alegoria, Chefe era engraçado porque dava nome a tudo. E muitas vezes dava o mesmo nome a coisas diferentes, que ridículo não? quando vejo certas posturas de Chefe lembro de outra citação de Possenti que diz: “Se eu não tivesse nenhuma razão para ser contra o ensino da gramática teria esta: ninguém sabe gramática.” Possenti (2001:11)
Já passou da hora de entender que o alimento é fraco e não sustenta; as correntes não fazem mais parte dos tempos de descobertas científicas em que vivemos e essa história de camuflar incompetência atrás de discurso autoritário de “eu sei tudo sobre como falar certo” jamais deverá existir para quem se chama professor de português. Em outras palavras, ensinar e exigir falar certo mas falarerrado, não é menos ridículo ou tão diferente de dar o mesmo nome a duas coisas diferentes como Chefe fazia na caverna. (releia na alegoria o subtópico: Adivinhação)
Quando Possenti diz que Chefe não sabe gramática não está dizendo que não sabe analisar as velhas e descontextualizadas orações do período simples ou composto, mas está dizendo que gramática não é só isso e seu ensino é muito mais profundo que dar nomes aos seres como fazia Chefe na caverna. Analisemos alguns pontos:
“Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. É apenas nos processos de aquisição de uma língua estrangeira que a consciência já constituída – graças à língua materna – se confronta com uma língua toda pronta, que só lhe resta assimilar.” Bahktin (1997:108)
Entender gente, como professor de português, é entender que as crianças constróem seu falar com base em referências, criando a cada dia sua própria gramática. Vigotsky considera que “o nível de desenvolvimento real da criança caracteriza o desenvolvimento de forma retrospectiva, ou seja, refere-se às etapas já conquistadas pela criança.” Abreu (1982: 114)
Portanto não são as correntes de Chefe que ensinarão o aluno a falar. O aluno já vem para a escola sabendo falar e muito bem. Entendendo essa visão ampliada da construção lingüística no ser humano, cada aluno tem que enxergar em seu professor um amorável colaborador de seu projeto de vida. Paul Ricour sedimenta essa visão neo-estruturalista dizendo: “A tendência espontânea do ensinante é pensar que o ensinado não sabe nada, que o saber é passar da ignorância ao saber, e que esta passagem está em poder do mestre. Ora o ensinado traz alguma coisa: aptidões e gostos, saberes anteriores e saberes paralelos e, sobre tudo, um projeto de realização pessoal que não será, senão parcialmente, preenchida pela instrução, pela preparação profissional (…) O contrato que liga o professor ao aluno comporta uma reciprocidade essencial que é o princípio e a base de uma colaboração.” Ricour apud Abreu (1982: 114)
A criança não nasce sabendo falar e nem aprende na escola, esse aprendizado é construído. Primeiro pelo círculo familiar, depois esse círculo estende-se aos amigos, vizinhos etc. e então chega à escola. Todo esse processo de construção da linguagem tem um referencial, os adultos que confirmam ou não as hipóteses levantadas pelas crianças. Nesse processo de construção da linguagem, o que for confirmado é tido pela criança como certo o que não for confirmado é tido como errado. Isso é o que Bahktin chama de penetrar na corrente da comunicação verbal.
Portanto, essa visão da construção da linguagem ainda nos faz compreender que torna-se impossível aprender uma língua, ou qualquer de suas normas, sob a ótica do objetivismo abstrato. A língua não é objetiva e acabada como tem sido ensinada, é viva e eterna assim como são eternos os pensamentos, as construções ideológicas que resultam nas mudanças sociais. Nenhuma criança aprende a falar tomando aulas de gramática. Diz ainda o célebre lingüista Bahktin acerca desse objetivismo no ensino:
“Dizer que a língua como sistema de normas imutáveis e incontestáveis, possui uma existência objetiva é cometer um grave erro.” Bahktin (1997:91)
“A separação da língua de seu contexto ideológico constitui um dos erros mais grosseiros do objetivismo abstrato.” Bahktin (1997:96)
Nada sem aplicabilidade contextual tem funcionalidade para o aluno, especialmente língua.
Que funcionalidade haverá para o aluno se ele for levado a decorar as complicadas flexões verbais, ou decorar o feminino de inúmeros substantivos, ou analisar o sujeito de frases descontextualizadas? “Na base dos fundamentos teóricos do objetivismo abstrato, estão as premissas de uma visão do mundo racionalista e mecanicista, as menos favoráveis a uma concepção correta da história; ora, a língua é um fenômeno puramente histórico.” Bahktin (1997:109)
Esse é um dos mais graves problemas de Chefe não entender que é impossível separar a língua da história, da vida. Separar a língua da vida é, ainda, vender a ideia de que a norma padrão e apenas ela, tem caráter privilegiado diante das demais. E que sem ela a língua deixará de existir. E também que essa norma culta assegura a comunicação de um determinado grupo social que usem o mesmo código, seria isso verdade?
Você já parou para pensar que só existe língua porque existem os seres humanos e que ela segue o curso da história?
“A língua no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida.” Bahktin (1997:96)
Se a língua é inseparável do ideológico e também é a sua materialização (quando enunciada) não há dúvidas quanto às ordens das coisas, afinal de contas ninguém pensa sem existir. Já que ninguém se comunica sem antes pensar. Portanto ela depende de seu usuário e a ele está diretamente associada. A enunciação é de natureza social, diz Bahktin. Portanto não é atributo de qualquer ser humano ser advogado da língua e buscar impedir que ela se expanda e viva a vida dela, que é resultado da nossa através da história.
No século XIX muito se preocupou com a infiltração de palavras francesas em nosso português e as chamadas por alguns “pragas dos galicismos”. A onda veio e passou. Hoje a humanidade vive a era da tecnologia, por quem ela é encabeçada? pelos EUA. Que código portanto está em voga? lógico que é o inglês. E nem por isso estamos necessariamente sendo ameaçados de falar português. Acho interessante o exemplo dado por Marcos Bagno ao responder a uma pergunta de uma leitora em seu site.
Portanto se é o homem que dá vida à história, nada há de mais certo que as mudanças. As transformações asseguram a vida do ser humano, especialmente nesses tempos de modernidade; e a língua jamais poderá comportar-se de forma diferente… isso é, se somos nós que mandamos nela e não ela que manda em nós.
Também jamais poderemos pensar que é a língua que assegura a comunicação. Afinal de contas, mesmo falando bom e claro português, para falantes nativos deste código, quantas vezes você teve a intenção de comunicar algo e foi mal interpretado? e quantas vezes falou uma coisa quando o seu comando ideológico verdadeiro pensava em outra? o papel da língua é para os nativos de um mesmo código o menor dos obstáculos. Por isso diz Bahktin que o que falamos é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites. O discurso interioré capaz de esconder a verdadeira intencionalidade ideológica que materializa o enunciado.
Chefe precisa entender que é inaceitável pensar que poderemos falar de uma mesma forma, e que isso assegurará a confiabilidade de nossa comunicação. E Chefe precisa entender ainda que na comunicação; à frente das palavras vão dois elementos bem mais poderosos que elas (as palavras). A fisiologia e a entonação.
Maria J. P. da Silva diz que apenas 7% dos pensamentos são transmitidos por palavras; 38% por sinais paralingüísticos, tais como entonação de voz, velocidade com que as palavras são pronunciadas; e 55% pelos sinais do corpo. Silva (1996)
A fisiologia na comunicação é a expressão corporal, postura, expressões faciais de tristeza, tensão, ansiedade, entre outros. Um menear a cabeça pode dizer muito mais do que se intencionava, se fosse dito em palavras. E a entonação das palavras dirigem o rumo e a variabilidade do que se deseja dizer. “Quando alguém acorda um amigo de manhã bem cedo com um grito de “Bom dia!”, o seu cumprimento soa como uma maldição.” Prov. 27:14 Salomão entendia muito bem de comunicação e o pequeno valor das palavras diante da entonação. Uma boa palavra dita em bom tempo, mas com a entonação errada envenena o que foi dito a ponto de tornar a bênção em maldição. E muitas vezes uma repreensão, cujas palavras precisem ser duras, ditas com uma entonação amorosa, com um olhar manso e que manifeste interesse em ajudar, adoçará o fel, transformando repreensão em conselhos.
Gostaria de ajudar Chefe a entender um pouco mais sobre normas lingüísticas dizendo que um de seus graves problemas do ensino da gramática tradicional é priorizar apenas uma das nove normas existentes, a chamada norma culta. A Bíblia da norma culta, a gramática tradicional, tem ensinado que qualquer manifestação lingüística que não esteja configurada com esta norma, está errada, como se houvesse apenas dois grupos de normas: a certa (norma culta) e a errada. Esse caráter de certo e errado é pregado pela forma e prioridade que se dá ao ensiná-la na escola desde os primeiros anos.
Graves têm sido os resultados quanto a essa postura: preconceito, discriminação social, distinção de níveis sociais (pela forma de falar e escrever, etc), nada a favor do bom senso e respeito ao próximo. Você deve estar se perguntando: quais são as nove normas? embora não seja parte deste trabalho explicá-las uma a uma, acho interessante citá-las: espaço físico, classes sociais, faixa etária, grupos profissionais, discursos, sexo, modalidade, situação e culta.
Se a língua é essencialmente social e por isso sensível às mudanças ocorridas na sociedade, (inclusive é elemento efetivamente decisivo na articulação dessas mudanças), ela deve ser objeto de um estudo abrangente para os alunos.
É papel do professor de língua motivar seus alunos a lerem diversos, senão todos os tipos de textos (claro que levando em consideração o aspecto moral), discernindo os gêneros primários e secundários dos textos, os elementos inter e intratextuais, seu contexto e intencionalidade discursivos, sua coerência e coesão, rescrever o mesmo texto sob novas perspectivas e enfoques. “Gostaria que na escola só circulassem textos, e não houvessem os exercícios gramaticais(…) Se pudesse eu diria: tirem a gramática para pôr o discurso na escola. Mas isso é uma coisa que a escola não tem coragem de fazer.” Possenti (2001:6)
Outro aspecto que vejo como valioso seria estimular nossos alunos a fazer da leitura e escrita um hábito, a tal ponto de fazer o aluno formador de suas próprias ideias e não mero refletor de correntes ideológicas da mídia, da religião como mercadoria, política etc. O ensino exclusivo da norma culta tem transformado alunos em cavernosos diplomados, gente que quer falar como se escreve, gente que discrimina socialmente os outros e que desta forma desqualifica a si próprios, gente literalmente amarrada a correntes que não dominam.
É importante entender que para se aprender uma língua estrangeira não é necessário esquecer a nativa. Isso também ocorre em se tratando de norma, não é necessário que para ensinar a norma culta meu aluno tenha que considerar a norma herdada em seu lar como errada e que por isso seja desqualificado e as vezes até ridicularizado em sala de aula. Bagno partilha dessa ideia afirmando que:
“Esse mito é muito prejudicial à educação porque, ao não reconhecer a verdadeira diversidade do português falado no Brasil, a escola tenta impor sua norma lingüística como se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os 160 (169 milhões)* milhões de brasileiros, independentemente de sua idade, de sua origem geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu grau de escolarização etc.”
“Como a educação ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio de uma norma culta. Assim, da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem teto, sem trabalho, sem saúde, também existem milhões de brasileiros sem língua.”
Voltando a falar na alegoria, o professor que chamamos de Chefe é hábil em observar e corrigir aqueles alunos que não falam sob o rigor desta norma culta; para Chefe eles não passam de cavernosos e assegura que é seu papel ensiná-los a falar e escrever corretamente. A norma culta tem seu valor assim, como tem a norma profissional, assim como tem a norma de faixa etária, de classes sociais etc. Vejo cada uma das normas como possuidoras de um guarda roupa com peças muito bem definidas e que devem ser empregadas em ocasiões, também, muito bem definidas. Você nunca viu alguém ir de sunga à igreja ou vestir um belo terno Giorge Armany para ir à praia; pior, de ônibus lotado. São situações absolutamente ridículas, concorda? A situação não seria menos séria, diferente e constrangedora, se parássemos num período de recreio escolar onde todos estão merendando e se divertindo, para ouvir alguém falando como escrevia Machado de Assis, ou Padre Antônio Vieira. Ninguém suportaria meia hora ouvindo. Não há erros em língua, há adequação ou inadequação quanto ao uso das normas lingüísticas constituintes. Erros em língua são frases agramaticais como “a vamos gente” e “o homens foi”.
É importante ainda entender que todos falamos e somos entendidos porque somos possuidores de uma gramática internalizada absolutamente organizada e construída pelo falante através das relações sociais baseada em hipóteses de seu funcionamento.
“Saber gramática não depende, pois de princípio da escolarização, ou de quaisquer processos de aprendizado sistemático, mas de ativação e amadurecimento progressivo (ou da construção progressiva), na própria atividade lingüística, de hipótese sobre o que seja a linguagem.” Franchi (1991:54)
Portanto conhecer e saber o que é gramática, estudar o processo de construção da linguagem, é função imediata e necessidade sine qua non hoje para quem quer ser professor e não Chefe. O professor que ensina língua preso a uma única norma, manifesta pouco interesse pelo estudo e ensina uma competência limitada e falha, por isso não posso atribuir-lhe outro nome a não ser de Chefe, ele impõe o que ele mesmo não sabe. Como já disse, sempre usando as correntes enferrujadas – as gramáticas tradicionais, para prender os cavernosos “satisfeitos” a um discurso de manipulação chamado de, o mercado do vestibular.
É mesmo preciso saber gramática tradicional para falar e escrever bem? Carlos Drummond de Andrade, no poema “Aula de Português” manifesta sua dúvidas a tal prática de ensino, “das figuras de gramática esquipáticas” que compõe o amazonas de minha ignorância. Rubem Braga também fala sobre o assunto em “Nascer do Cairo, ser fêmea de cupim”.
Machado de Assis ao abrir a gramática do sobrinho, se espantou com a sua própria ignorância por não ter entendido nada. Celso Luft cita esses casos em “Língua e Liberdade” (1994:23-25). Diz-nos ainda esse mesmo autor:
“Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e autêntica de si mesmo.” Luft (1994:21)
Formar alunos sem identidade lingüística é entregá-los a um futuro dependendo da sorte. Esta postura pedagógica descarta a fala do aluno herdada em sua casa para fazê-lo reaprender a falar na escola, quer dizer são levados a desaprender a falar o que já sabiam para nunca mais abrir a boca com medo de errar. É em função do que se diz ser o certo ou errado, que as pessoas têm aberto mão de seu poder de raciocínio. E essa didática da língua tem tapado a boca das pessoas. Quantas pessoas têm medo de falar em público, perdem a oportunidade de contribuir numa reunião, de participar num programa, de falar com uma autoridade; simplesmente por inconscientemente terem sido castradas lingüisticamente na escola. Correntes que Chefe amarrou, apenas para mostrar que ele é Chefe.
Sem falar que essa postura de Chefe é a maior aula sobre como ser preconceituoso lingüisticamente. Os alunos aprendem a qualificar as pessoas socialmente pela norma que usam, e aprendem a corrigir os chamados erros de norma culta quando eles mesmos e Chefe fingem saber. Essa é a forma mais inteligente de não informar e muito menos formar.
Napoleão Mendes de Almeida um dos mais ácidos defensores do ensino da gramática tradicional desqualifica a forma de falar de “infelizes caipiras” cita também “língua de cozinheiras”. Em uma citação diz: “Cozinheiras, babás, engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos é que devem figurar, segundo esses derrotistas (os lingüistas), como verdadeiros mestres de nossa sintaxe e legítimos defensores do nosso vocabulário.” Almeida (1994)
Quando se fala que é o povo que constrói a língua, ninguém está falando que “povo” são somente os citados por Napoleão, mas as grandes mudanças lingüísticas são sentidas pelas mudanças e desenvolvimentos tecnológicos, políticos, da mídia etc. de uma sociedade e isso quem faz não são apenas os citados por ele.
Uma defesa que discrimina, que sedimenta aversão e desqualificação não só ao ser humano mas a classes sociais. Postura que deve ser inaceitável para um educador que sonha em ver seus alunos como seres humanos livres, dotados de competências linguísticas capazes de torná-los, pensadores, oradores, escritores, leitores, gente.
Por isso para mim todo professor, mas sobre tudo o professor Cristão, tem, além da responsabilidade, de informar a de formar e transformar. Informar como professor de português é tornar seu conteúdo o mais prático e funcional possível, formar é não fazer de suas aulas, aulas de preconceito lingüístico, mas conhecer e entender o aluno e sua língua como ser humano e viva respectivamente, e transformar seria imprimir nele a ideia de que aceita os diferentes, Cristo o referencial por excelência.
Por isso quero falar que em tempos como esses de tanta violência e discriminação social nossos alunos precisam aprender a construir pontes. Isso não se ensina com gramática tradicional e norma culta. O que são pontes?
3. O DIÁLOGOS SÃO PONTES
A Segunda alegoria de Bahktin é:
“A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor.” Bahktin ( 1997:113)
Se a língua é social, se o homem é inteligente e racional, como dizia Aristóteles “um ser político”, por que não aceitar o lado democrático para o qual a língua foi originalmente formada, o de fazer o homem diferente dos animais, um ser que pode se expressar, dialogar e construir pontes, que entende, como vimos no tópico anterior, a complexidade da construção da linguagem no homem.
O homem hoje como nunca antes precisa de pontes. Quero falar delas, porque elas só têm valor para professores não para Chefes. Pode parecer que esteja falando de outro assunto, mas não, apenas quero mostrar que pontes sociais e espirituais só existem se antes houver pontes ideológicas sinceras que materializem pontes discursivas sinceras, frutos verdadeiros. Dessas pontes dependemos muito para sermos professores cristãos e educadores de futuros cristãos. Por isso pontes têm tudo a ver com preconceito lingüístico.
Combate-se muito hoje, todas as formas de preconceitos (racismo, o papel social da mulher etc.) mas esquece-se que o preconceito lingüístico tem levado muitos a abandonarem as salas de aulas, a perderem sua identidade, é um perigoso destruidor de pontes etc. Jamais poderei ser uma ponte se for preconceituoso pois qualquer forma de preconceito é capaz de destruir qualquer ponte que venha a ser construída. Como serei uma ponte que desconsidera e ameaça o diferente – aqui, especialmente, o que não domina a norma culta. O pensador francês André Frossard, citado pelo professor Gabriel Peissé, contribui ricamente nesse sentido dizendo:
“Deus, por conhecer a irredutibilidade de cada ser humano, não consegue contar a todos. Diante de bilhões de pessoas sempre repete o mesmo primeiro número: um, um, um… Esse caráter único de cada ser humano aponta para uma limitação intrínseca. A cada vez que nos detemos perante uma pessoa, descobrimos que os seus talentos mais evidentes convivem com a ausência de outros talentos. Aliás, é exatamente essa falta de talentos que faz sobressair aquela nossa inclinação que será decisiva e definidora da nossa pertença à sociedade, da nossa atuação no mundo do trabalho etc.” (Frossard apud Perissé)
Para nós cristãos há uma fonte de exemplos inquestionáveis extraídos da vida e ensinos de Cristo. Sua vida foi um verdadeiro exemplo de respeito às diferenças ou repúdio à desigualdade? O estilo para Cristo era limitação ou virtude? nem mesmo o perdido era visto por Cristo como problema, “Eu vim buscar e salvar o que se havia perdido” Luc 19:10.
Não é sem razão que o homem vive atrás de pontes, afinal as diversas formas de manipulação institucionais de Chefes têm cansado a vida e desanimado a muitos de lutar por ideais, fazendo com que muitos olhem mais para as suas desigualdades e limitações do que para os seus objetivos.
Fala-se muito hoje em: crescimento, flexibilidade, produção, qualidade, recursos humanos (sem o “seres” na frente de humanos), normas, tecnologia, mas pontes? o que são pontes?
Mikhail Bahktin um do mais aclamados e reconhecidos nomes da lingüística, faz reflexões extremamente profundas sobre a linguagem. E vê a linguagem humana como essencialmente dialógica, construída a partir de uma formação ideológica.
“Só o grito inarticulado do animal procede do interior, do aparelho fisiológico do indivíduo isolado. É uma reação fisiológica pura e não ideologicamente marcada. Pelo contrário, a enunciação humana mais primitiva, ainda que realizada por um organismo individual, é, do ponto de vista do seu conteúdo, de sua significação, organizada fora do indivíduo pelas condições-extraorgânicas do meio social. A enunciação enquanto tal é um puro produto da interação social (…)” Bahktin (1997:121)
Em outra citação ele diz:
“A palavra é o fenômeno ideológico por excelência.” Bahktin (1997:36)
As citações de Bahktin constatam nada mais que o propósito de Deus ao criar o homem. Quando Ele disse que criou o homem livre e possuidor de seu livre arbítrio estava dizendo que ele era capaz, diferentemente dos animais, de dialogar com os outros e consigo mesmo antes de materializar seus enunciados. Livre para pensar, para falar, para construir ideias em si mesmo e nos outros. E que sua linguagem, seu proceder e comportamento eram, antes de serem materializados, construídos ideologicamente. Tão viva como eles próprios.
Deus nos criou democráticos, e para isso precisou fazer-nos absolutamente diferentes uns dos outros. “Nosso grito” não é fisiológico, mas parte de uma razão inteligente, o pensado, o sonhado, o idealizado. Mas a política, a mídia, a religião, a escola têm sido objeto de manipulação e dominação. As pontes do livre arbítrio e da democracia têm sido alvo de manipulação dos dominadores e suas correntes ideológicas.
A mídia visando poder, vende o que não se pode comprar, a empresa objetivando produção camufla um discurso de interesse pelo bem estar do empregado, a religião tem destruído a fé e a credibilidade, vendendo a salvação como mercadoria, a política objetivando votos vende sonhos irrealizáveis, a grande maioria dos professores imersos no tráfico do vestibular, e nem sempre interessados em mudar, preparam mercadoria velha e inconseqüente para entregar em forma de aula… Todos comandados por Chefes que só pensam em si próprios mesmo que isso custe preços altíssimos a serem pagos no futuro por aqueles que adquirirem seus produtos. Onde está hoje aquele que pense em ser humano, como seres e não apenas como massa humana?
Como Cristo, o maior professor de todos os tempos estabelecia pontes? Ele nunca andou com letrados. Seu vínculo de amizade era restrito a pescadores, em sua maioria; outros, eram pessoas mal vistas pela sociedade. Salvou de pedradas mortais uma adultera, não porque fosse rica, ou houvesse lhe impressionado com o seu modo “culto de falar”. Ressuscitou mortos, curou doentes sem receber uma moeda em troca sequer. A ponte didática necessária para que todo aluno de português aprenda é com amor, o verdadeiro amor. Isto é verdadeiramente informar, formar e mais transformar. Porque é nosso papel transformar? porque nós temos o que os outros não têm o modelo, Cristo. A ponte que ele veio estabelecer é a ponte, muito tempo depois descoberta por Bahktin, do diálogo. Esta é a ponte que dignifica e motiva o aluno a acreditar em seu futuro. O amor que entende os diferentes é o amor que ensina, que trata gente como gente. E esse era o amor de Jesus. Tenho certeza que nunca recriminou alguém por falarincorretamente, por vestir-se mal, etc. Creio que se esses fossem os problemas da humanidade Ele não precisaria ter vindo morrer. Esses não são os sérios problemas para o professor Cristão que entende de seu ministério e sabe o que está fazendo.
Querido professor “o critério de eficiência do seu trabalho é a própria eficiência da aprendizagem do aluno. E os recursos que o professor utiliza para conseguir maior ou menor eficiência são as estratégias de aprendizagem, o processo de avaliação e o clima sócio-emocional estabelecido na classe através de relação professor-aluno.” Abreu (1982: 113)
Para mim Cristo é o maior mestre, porque Ele era professor Cúmplice, Ele foi enviado por Deus mas não cumpriu seu propósito como Chefe, ele deu sua própria vida para fazer seus alunos aprenderem.
A ponte que ligava Cristo à Deus é a que ligando-nos a Deus, também nos unirá uns aos outros, o amor. Por isso mesmo o professor Cristão não é “dador de aula” também é Cúmplice. Cumplicidade é comprometimento e não apenas compromisso. Chefe pode até ter compromisso com o pouco que entende do que ensina, mas o professor se compromete com o aprendizado do aluno ao qual ensina. Esse é o professor que vê no aluno, um pastor, um jornalista, um escritor ou qualquer outro profissional que dependa das misericórdias de Deus e de seu esforço profissional para ser bem sucedido. Ser cúmplice é construir com o aluno o seu ideal de vida. Por isso a língua é social, ideológica e dialógica. É o diálogo que destrói as correntes e constrói pontes.
Termino dizendo que ser professor de português é antes de tudo, ser um construtor de pontes, ou diálogos: meu diálogo com Deus, para alimentado, amar e respeitar o diferente; meu diálogo com a ciência buscando sempre o que há de melhor e esclarecedor, enxergando em mim a oportunidade de crescimento acadêmico; meu diálogo com o meu aluno para ensinar-lhe a dialogar com Deus e com a ciência.
Tenho que pensar que ele depende de mim para não ser cavernoso. Porque um dia meu aluno poderá ver em seu professor a figura de Chefe e não de um professor.
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ABREU, Maria Célia T. Azevedo. O PROFESSOR UNIVERSITÁRIO EM AULA PRÁTICA E PRINCÍPIOS TEÓRICOS, São Paulo, Editora Cortez, 1982.
RIBEIRO, Jorge Cláudio. OUSAR A UTOPIA, FTD, s/a.
Por Josemar Monteiro de Oliveira – é graduado em Teologia e Letras e mestrando em lingüística pela UNINCOR, leciona língua portuguesa e inglesa no IAEMG e FIAMG.
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