Brincadeira é coisa séria
Este artigo explora a importância do ato de brincar na infância, destacando como as brincadeiras são fundamentais para o desenvolvimento das crianças e como elas devem ser vistas como atividades sérias e significativas.
Brincadeira é Coisa Séria
“Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar…”
Chico Buarque
Este texto aborda o ato de brincar, numa perspectiva prática, buscando uma reflexão e subsídios para a compreensão da sua seriedade para a criança. É importante ressaltar que, durante o decorrer desse texto, os termos brincadeira, jogo e lúdico podem ser vistos com um mesmo conceito, isto é, como atividades livres ou dirigidas, que tenham um caráter de não seriedade, capazes de envolver seus participantes e gerar prazer.
Independente de época, cultura e classe social, os jogos e os brinquedos fazem parte da vida da criança, pois elas vivem num mundo de fantasia, de encantamento, de alegria, de sonhos, onde realidade e faz-de-conta se confundem. (Kishimoto, 2000). O jogo está na gênese do pensamento, da descoberta de si mesmo, da possibilidade de experimentar, de criar e de transformar o mundo. Portanto, com as brincadeiras, a criança entra em contato com o mundo, dá asas à sua imaginação, isto é, pode ser o que bem desejar, ser rei, ser bedel, ser juiz, ser feliz…
Huizinga (1971) analisa esses jogos que a criança realiza, apontando algumas características: o prazer, o caráter “não sério”, a liberdade, a separação dos fenômenos do cotidiano, as regras, o caráter fictício ou representativo e sua limitação no tempo e no espaço. No entanto, não se analisará todas essas características do jogo neste texto, mas precisamente o caráter “não-sério” do jogo. Huizinga esclarece ainda que, não que a brincadeira infantil deixe de ser séria, mas quando uma criança brinca, ela o faz de modo bastante compenetrado. A pouca seriedade, a que faz referência, está mais relacionada ao cômico, ao riso, que acompanha na maioria das vezes o ato lúdico e se contrapõe ao trabalho, considerado atividade séria.
A brincadeira para a criança não representa o mesmo que o jogo e o divertimento para o adulto, recreação, ocupação do tempo livre, afastamento da realidade. Brincar não é ficar sem fazer nada, como pensam alguns adultos, é necessário estar atento a esse caráter sério do ato de brincar, pois esse é o seu trabalho, atividade através da qual ela desenvolve potencialidades, descobre papéis sociais, limites, experimenta novas habilidades, forma um novo conceito de si mesma, aprende a viver e avança para novas etapas de domínio do mundo que a cerca.
A criança se empenha durante as suas atividades do brincar da mesma maneira que se esforça para aprender a andar, a falar, a comer etc. Brincar de faz de conta, de amarelinha, de roda, de esconde-esconde, de dominó, de jogo de câmbio (1) são situações que vão sendo gradativamente substituídas por outras, à medida que o interesse é transferido para diferentes tipos de jogos, no entanto todos eles são tratados com a seriedade respectiva, seriedade que pode ser voluntária ou involuntária.
Segundo Chateau (1987), uma criança, em seus primeiros anos de vida, gosta sempre de “fazer-se de boba”, de divertir-se, mas conhece perfeitamente a diferença entre “fazer-se de boba” e brincar/jogar. Percebe-se isso quando ela chega às vezes a nos dizer “agora eu não estou brincando, estou falando sério”, isto demonstra claramente a sua capacidade de diferenciar o brincar de “fazer-se de boba” da seriedade do seu jogo.
Ao observarmos atentamente crianças brincando de médico, fazendo uma massa de areia, edificando com cubos, brincando de polícia e ladrão, brincando de casinha com papai, mamãe e filhinha(o), brincando de “dar aula”; o primeiro aspecto que nos chamará a atenção será a seriedade com que ela o faz, incorpora o papel de corpo e alma e é tão consumida em tudo isso quanto nós em nossas pesquisas mais sérias. A seriedade também com que lida com as regras criadas para esses jogos, que quase sempre são regras rígidas, incluindo fadigas, levam-na até mesmo ao cansaço. Além do mais, as crianças detestam ser interrompidas em suas brincadeiras e não admitem zombarias; se isso acontece, reagem quase sempre ignorando a interrupção, às vezes irritadas ou até mesmo agressivas. Podemos perceber então que esta atividade não é mero divertimento, é muito mais. Isso tudo acontece porque, nos seus primeiros anos de vida, a criança pode chegar segundo Chateau (1987, p.20) “a absorver-se tão bem no seu papel que ela se identifica momentaneamente com a personagem que representa”.
Neste caso, a criança que joga não percebe o mundo à sua volta como um jogador de futebol num campo, mas mergulha fundo em seu jogo, porque ele é coisa séria.
Essa seriedade do jogo infantil é, entretanto, diferente daquela que consideramos, por objeção ao jogo, a vida séria. Essa seriedade do jogo implica um afastamento do ambiente real; a criança parece esquecer o real e se torna o personagem em questão, o médico, a polícia, o ladrão, o pai, a mãe, o filho, o professor etc., já que se conhece como criança. O quadro real, amplo e social no qual está inserido, desapareceu. “Tudo acontece como se o jogo operasse um corte no mundo, destacando no ambiente o objeto lúdico para apagar todo o resto” (Chateau: 1987, p.21). Nessa perspectiva, a criança só tem consciência da cena que está em primeiro plano, o restante desaparece ou se esconde temporariamente. O jogo, pois, constitui um mundo à parte, um outro mundo, distante do mundo dos adultos, isto é, o seu mundo lúdico.
Essa absorção do papel que representa, esse afastamento do ambiente real, pode ser considerado involuntário; a criança não age com a decisão de entrar no jogo, ela se projeta no imaginário da brincadeira/brinquedo. A ênfase é dada à “simulação, à ilusão” ou faz-de-conta, por certo ela cria o seu próprio mundo.
Tendo em vista que lúdico segundo Huizinga (1971) significa “ilusão, simulação”, então podemos dizer que, ao destacar assim o objeto lúdico, a criança está se destacando, isto é, simulando um outro mundo só para ela, distanciando-se do mundo dos adultos, onde ela pode exercer sua soberania: pode ser rei, pai, professor, caçador. Essa perspectiva analisa, assim, a sua personalidade, dando-lhe uma característica marcante e, ao mesmo tempo, oferecendo-lhe novos poderes. No jogo, a criança cresce, liberando-se do domínio sob o qual ela era nada mais que um submisso e, como se sente pequena, tenta se realizar no seu mundo lúdico, evadindo-se.
O adulto também se utiliza dessa evasão quando procura no jogo de aposta, de bilhar, o esquecimento dos seus problemas, o alívio de suas tensões. Mas essa fuga do real nem sempre é evasão; um arquiteto que faz uma barragem, primeiro executa o planejamento no papel, distante das pedras, do cimento etc., isto é, distancia-se do mundo no plano real. Idealiza, simula, imagina, cria uma outra realidade, só assim, depois retorna ao mundo real da construção propriamente dita da barragem. Assim, todo projeto, com efeito, é, em primeiro lugar, distanciamento do mundo ambiente.
Mas esse distanciamento do mundo ambiente pode ser voluntário, quando a criança utiliza das brincadeiras de competição ou de roda, em que ela decide fazer parte; ela cria um distanciamento a um mundo onde ela tem poder, onde pode criar, um mundo onde as regras do jogo têm um valor que não têm no mundo dos adultos. O distanciamento funciona como um juramento de obediência às regras tradicionais, às regras pré-estabelecidas: “Quem joga, jurou” (Alain, 1932, apud Chateau, 1987, p.23); mas este é um juramento de esquecer o mundo da vida séria, onde as regras válidas são aquelas “combinadas pelo grupo”. Por isso, o distanciamento surge voluntariamente.
Portanto, brincar é o trabalho da criança, um ato muito sério, e por meio de suas conquistas no jogo, ela afirma seu ser, proclama seu poder e sua autonomia, explora o mundo, faz pequenos ensaios, compreende e assimila gradativamente suas regras e padrões, absorve esse mundo em doses pequenas e toleráveis.
Dessa forma, nenhuma criança brinca só para passar o tempo; sua escolha é motivada por processos íntimos, desejos, problemas, ansiedades. O que está acontecendo com a mente da criança determina sua atividade lúdica; brincar é sua linguagem secreta, que se deve respeitar mesmo se não a entende. Então, faz-se necessário que o professor/educador fique atento para oferecer possibilidades e situações de jogos/brincadeiras; é imprescindível que as suas aulas sejam “recheadas” de atividades lúdicas, para que a criança tenha a oportunidade de provar a sua superioridade, de expressar-se, de evadir-se do mundo real, de ser séria no seu diminuto mundo lúdico.
Mas, apesar do jogo ser uma atividade espontânea nas crianças, isso não significa que o professor/educador não necessite ter uma atitude ativa sobre ela, inclusive uma atitude de observação e de intervenção quando for o caso; sua atitude não passará apenas por deixar as crianças brincarem, mas, sobretudo ajudar as crianças nesse ato e compartilhar com elas, ou até mesmo por ensiná-las a brincar.
Para concluir, é oportuno transcrever o pensamento de um dos grandes poetas brasileiros:
“Brincar não é perder tempo, é ganhá-lo.
É triste ter meninos sem escola,
mas mais triste é vê-los enfileirados em salas sem ar,
com exercícios estéreis,
sem valor para a formação humana.”
Carlos Drummond de Andrade
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROUGERE, Gilles. Jogo e educação. Porto Alegre. Artes Médicas, 1998.
CHATEAU, Jean. O jogo e a criança. São Paulo. Summus, 1987.
HUIZINGA, J. Homo Ludens – 1938. Tradução de J. P. Monteiro. São Paulo, Perspectiva, 1971.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida (org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo. Cortez, 2000.
MOYLES, Janet R. Só brincar? O papel do brincar na educação infantil. Porto Alegre. Artmed, 2002.
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