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Atualizado em 02/08/2023

Mediação semiótica: estudo de caso de uma criança cega com alterações no desenvolvimento

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RESUMO

É relatado o caso de uma criança cega congênita de quatro anos, com alterações no desenvolvimento, analisado de acordo com as concepções de linguagem constitutiva (Franchi, 1977/1992) e mediação semiótica (Rodríguez & Moro, 1999). Sete sessões de intervenção, compreendendo um intervalo de dois anos, foram transcritas e analisadas. A adaptação da metodologia utilizada por Rodríguez e Moro permitiu que se observassem as aquisições de uso de objetos (desde usos menos convencionais até usos mais convencionais), a participação em brincadeiras (ex: acompanhamento de cantigas infantis) e o surgimento de diferentes modos de comunicação. A análise deu significado a diferentes aspectos da interação entre a criança e adultos, expandindo a proposta das autoras, em relação ao papel da mediação semiótica. Discutem-se as implicações do estudo para a área de Educação Especial.

Palavras-chave: Mediação semiótica; cegueira e desenvolvimento; linguagem; alterações no desenvolvimento.


ABSTRACT

The case of a 4 year old congenitally blind child, with developmental alterations, was analyzed, according to assumptions of constitutive language (Franchi, 1977) and semiotic mediation (Rodríguez & Moro, 1999). Seven sessions of intervention were transcribed and analyzed, comprising a period of two years. The adaptation of the methodology of Rodríguez & Moro allowed the observation of the following aspects: the acquisition of use of objects (from less conventional uses to more conventional uses), the participation in play activities (eg: nursery rhymes) and the appearance of different modes of communication. Different aspects of the adult-child interaction were given significance, expanding the scope of the original proposition in relation to the role of semiotic mediation. The implications of the study to the area of Special Education were discussed.

Key words: Semiotic mediation; blindness and development; language; developmental alterations.


A literatura vem ressaltando os riscos para o desenvolvimento que podem ser originados a partir de diferentes deficiências, entre elas a cegueira e a presença de síndromes.

Segundo Vygotsky (1934/1997), apesar de a cegueira criar dificuldades para a participação em muitas atividades da vida social, não há diferenças básicas no impulso para o desenvolvimento da criança, seja ela cega ou vidente. Ressalta, ainda, que são comuns, ao cego e ao vidente, a fonte principal de conteúdos de desenvolvimento: a linguagem.

Warren (1994) e Hobson (1993), por sua vez, evidenciaram que, em algumas crianças cegas congênitas, o crescimento na compreensão simbólica acontece na medida em que a experiência exploratória e a linguagem vão sendo desenvolvidas.

Uma das discussões que vem sendo feita diz respeito ao fato de crianças cegas terem maior probabilidade de apresentar autismo, ou comportamentos semelhantes aos de autistas. O autismo é caracterizado “pela ‘tríade’ de comprometimentos (social, comunicação, e atividades restritas/repetitivas)” (Bosa & Callias, 2000). No caso de crianças cegas, Hobson, Brown, Minter e Lee (1997) sugerem que essas crianças têm maior probabilidade do que as videntes de apresentarem autismo. Lembram, entretanto, que vários comportamentos repetitivos de crianças cegas no início da infância não levam, necessariamente, a um quadro típico de autismo nos anos subseqüentes. Em estudo com 24 crianças cegas congênitas, os autores verificaram que a maioria apresentou alguns comportamentos semelhantes aos de autistas, por exemplo, no que se refere à sensibilidade aos sinais comunicativos de outras pessoas. Entretanto, o diagnóstico formal de autismo, pelo DSM-III, foi atribuído a aproximadamente um terço das crianças (10 das 24 crianças estudadas), indicando que existe um número maior de crianças cegas que apresentam alguns comportamentos semelhantes aos de autistas, do que crianças com o diagnóstico específico de autismo. Ao analisar esses dados, os autores sugerem fatores de origem psicológica: aspectos cognitivos (ligados à representação) e/ou sócio-comunicativos (ligados à intersubjetividade).

Embora não se descarte, na etiologia do autismo, possíveis fatores congênitos, revisões sobre o assunto em crianças videntes (Bosa, 2002) ressaltam, entre outros aspectos psicológicos, a importância da relação de apego entre cuidador-criança e as estratégias de interação e sensibilidade aos sinais infantis por parte do adulto. Isso não quer dizer que se tenham, claras, as dimensões em que o ambiente afeta. De fato, a área do autismo continua sendo das mais desafiadoras, no que se refere às alterações no desenvolvimento.

Quando defrontados com casos que apresentam múltiplos obstáculos congênitos ao desenvolvimento, permanece a questão sobre formas de abordar esse desenvolvimento. Amaral (1996) faz uma distinção entre deficiência primária, voltada para os aspectos orgânicos, e deficiência secundária, relacionada às dificuldades nas interações e relações sociais, em diferentes esferas da vida: família, escola e comunidade. Ela considera que a deficiência secundária pode ser praticamente anulada, caso sejam providas as condições para promoção do desenvolvimento das pessoas com deficiência, capacitando-as e removendo barreiras arquitetônicas e atitudinais. Nesse sentido, uma das metas da intervenção é propiciar modos de ação modificados ou alternativos aos impedidos pela deficiência primária. Exemplos de propostas nessa direção vêm sendo descritos pela literatura da área (Batista, 2003; Batista, Nunes & Horino, 2004; Coll, Palácios & Marchesi, 1993/1995).

Quando se desenvolvem projetos de intervenção, geralmente são descritas aquisições por parte de diferentes crianças, com diferentes problemas. Uma das dificuldades que têm surgido é a de caracterizar e visualizar as aquisições de crianças com alterações mais severas, que fazem pouco ou nenhum uso da linguagem e que não utilizam brinquedos nos modos habitualmente observados.

Foi vislumbrada uma possibilidade no trabalho desenvolvido por Rodríguez e Moro (1999) que, através de uma revisão ampla da literatura, buscaram discutir as teorias trazidas por diferentes estudiosos do desenvolvimento – dentre os quais Piaget e Vygotsky – de forma a constituir como unidade de análise de seu estudo as interações triádicas bebê-objeto-adulto. A partir de um estudo com seis crianças (nas idades de 7, 10 e 13 meses), no qual foi observado, registrado e transcrito o momento de interação entre mãe, bebê e objeto, as pesquisadoras enfocaram, ao mesmo tempo, a interação social e a pragmática do objeto, ou seja, o uso que mãe e bebê fazem dos objetos apresentados. As interações foram observadas com dois objetos: um caminhão de plástico que possuía aberturas de formatos diferentes nas quais eram possíveis encaixar peças de formato correspondente, e um telefone de brinquedo.

Pressupondo que é através dos mediadores semióticos, tal e como se apresentam no interior da comunicação entre adulto e criança, que as crianças vão modificando os usos dos objetos desde níveis mais indiferenciados até outros de tipo convencional, Rodríguez e Moro (1999) defenderam a hipótese de que os mediadores semióticos contribuem decisivamente na formação do pensamento da criança acerca do mundo. Destacaram a contribuição de Vygotsky (1934/1997) ao apresentar o conceito de mediação por signos, e criticaram o fato de o autor ter se detido, principalmente, ao estudo da linguagem. Considerando necessário dar atenção a outros aspectos da mediação por signos, as autoras (de acordo com as considerações de Semiótica trazidas por Peirce) adotaram uma concepção de signo mais abrangente, na qual a linguagem é o mais elaborado dos signos – com suas características de arbitrariedade e convencionalidade – ao mesmo tempo em que são levadas em conta outras formas de significação. Dentre estas, destacam-se os gestos, expressões faciais, diferentes usos de objetos, entre outros. No que se refere ao estudo da comunicação de bebês que ainda não falam com suas mães, sugerem a aplicação da tríade semiótica de Peirce (1931-1938).

Peirce (1977) postulou que todo pensamento se dá em signos, não havendo pensamento sem signos.

Um Signo, ou Representamen, é um Primeiro que se coloca numa relação triádica genuína tal com um Segundo, denominado seu Objeto, que é capaz de determinar um Terceiro, denominado seu Interpretante, que assume a mesma relação triádica com seu Objeto na qual ele próprio está em relação com o mesmo Objeto. (p. 63).

Para o autor, nenhum tipo de signo é auto-suficiente ou completo, pois os signos são mútuo-complementares. Todo signo aparece numa mistura de caracteres: (a) ícone, quando compartilha os caracteres do objeto (ex: fotografia de um rosto, para fins de identificação); (b) índice, quando está conectado ao objeto (ex: fumaça que indica fogo, movimento do catavento que indica vento); e (c) símbolo, que é interpretado como denotando o objeto, devido a convenções anteriormente estabelecidas (ex: semáforo – verde simbolizando passagem livre e vermelho sinalizando parada).

Nas palavras de Rodríguez e Moro (1999):

O sirviéndonos del triángulo semiótico de Peirce, podríamos decir que el niño modifica la relación de representamen com su objeto inmediato desde los significados no canônicos hasta los convencionales, gracias a la interacción com el adulto que actualiza los usos convencionales, los significados culturales e los objetos a través de los signos. (p. 143-144).

Assim, as autoras sugerem que a relação do bebê com objetos não é transparente: o bebê vai modificando sua relação com os mesmos, desde usos não canônicos (ex: bater, chupar), por elas considerados como icônicos, até usos mais convencionais (ex: rodar carrinho, pegar xícara e levar à boca) por meio da interação do adulto, por elas considerados como simbólicos.

Essas colocações, embora importantes em qualquer circunstância, foram consideradas particularmente relevantes para o estudo de crianças mais velhas com alterações no desenvolvimento, uma vez que permitem melhor compreensão de suas formas de significação.

Significados são culturalmente construídos e motivados pela realidade simbólica humana, expressa, entre outras formas, por práticas discursivas (Maingueneau, 1989) que relacionam ações, processos verbais e não-verbais com o que faz sentido, do ponto de vista da sociedade e cultura da qual os sujeitos fazem parte.

Assume-se, portanto, aqui, uma teoria indeterminada e pública de linguagem (Franchi, 1977/1992), à luz da qual o sentido não é dado a priori – mas se faz em meio a contingências sócio-históricas, incluindo fatores contextuais bem como as manifestações e os recursos utilizados pelos sujeitos.

Objetivo do Presente Estudo

O presente trabalho relata o caso de Júlia1, uma criança cega congênita com quatro anos de idade no início do período analisado, que possuía como hipótese diagnóstica uma síndrome rara (Síndrome de Rodriguez), que provoca atraso no crescimento e desenvolvimento. Até o período de realização do presente trabalho, vinha sendo acompanhada por uma equipe de profissionais, em um centro universitário.

Quando foi iniciado o atendimento pela segunda autora, Júlia tinha quatro anos, e suas interações com outras pessoas, além dos familiares, eram quase inexistentes. Observava-se recusa de contato físico ou verbal e raro contato com objetos. Essas características, em crianças cegas, são descritas como comportamentos semelhantes aos de autistas.

A partir do quadro teórico descrito anteriormente, procurou-se criar alicerces que possibilitassem analisar o desenvolvimento de Júlia de forma a dar maior visibilidade às capacidades que crianças, com um desenvolvimento atípico, como Júlia, possuem e desmistificar as limitações que são muitas vezes a elas impostas por avaliações descontextualizadas.

Portanto, tendo como base a abordagem e as estratégias de análise propostas por Rodríguez e Moro (1999), foi proposto, no presente estudo, realizar uma análise das aquisições de Júlia. Entretanto, diferente das autoras, que utilizaram em seus estudos apenas dois objetos claramente convencionalizados pelo uso (caminhão e telefone), foram utilizados, nesta pesquisa, um maior número de objetos, uma vez que a criança em estudo não permanecia durante muito tempo em interação com um único objeto. Além disso, é importante ressaltar que a observação da interação criança-objeto-adulto, neste trabalho, se fez a partir dos registros de um grupo de convivência, onde normalmente existem diversos objetos à disposição das crianças.

É importante, ainda, dizer que a criança deste estudo encontra-se em um momento bastante particular do desenvolvimento: trata-se de uma criança em fase de aquisição da linguagem e, portanto, com um repertório diferenciado daquele apresentado pelas crianças estudadas por Rodríguez e Moro (1999). A linguagem, nesta pesquisa, torna-se, portanto, importante na análise da interação criança-objeto-adulto.

Metodologia

O atendimento de Júlia, criança alvo do presente estudo, conforme descrição anteriormente apresentada, envolveu, inicialmente, sessões semanais individuais (45 minutos), e, posteriormente, sessões em grupo (90 minutos), registradas em relatos e periodicamente filmadas.

Em uma análise de seu desenvolvimento, realizada em três momentos distintos do processo de intervenção (Batista, Cardoso & Santos, 2004), foi possível identificar as seguintes características:

1. Período inicial: atendimento individual, com a mãe presente. Júlia choramingava na maior parte da sessão, permanecia com o corpo tenso, fazia movimentos repetitivos, arremessava objetos oferecidos, raramente emitia sons (geralmente “Deixa ela”).

2. Situação após 12 meses de atendimento: Júlia participava de sessões de grupo, sem a mãe. Pronunciava palavras e frases esporadicamente (“não qué” e refrões de músicas); explorava o ambiente, tateando móveis e paredes; levava objetos à boca ou manipulava-os de modo repetitivo. Às vezes, observava-se tensão na postura, no modo de manusear a chupeta e os objetos oferecidos. Em outros momentos, parecia mais à vontade, com o corpo mais relaxado e fisionomia mais tranqüila.

3. Após 18 meses de atendimento: Júlia se mostrava à vontade e pouco tensa no grupo. Falava algumas frases, em alguns momentos contextualizadas (ex: “papa tudo” quando se anunciou o lanche; “segurei” ao pegar objetos). O uso dos brinquedos ficou mais funcional, aceitando diferentes brinquedos que lhe eram apresentados. Em contato com os adultos participantes da sessão, em algumas ocasiões permitiu ser guiada na exploração tátil de objetos. Durante o atendimento, algumas vezes cantou trechos de músicas que eram tocadas nos primeiros atendimentos, e, em outras, acompanhou o ritmo da música com pandeiro ou tambor.

Situação de Coleta de Dados

A coleta dos dados, deste trabalho, foi realizada a partir de um acompanhamento longitudinal do grupo de convivência do qual Júlia faz parte. Esses grupos são compostos por crianças com diagnóstico de deficiência visual, muitas delas apresentando dificuldades de aprendizagem e alterações no desenvolvimento. A composição é heterogênea em termos de faixa etária e nível de desenvolvimento. Os encontros semanais têm a duração de 90 minutos, e envolvem projetos (fazer papel reciclado, contar histórias, entre outras) e atividades lúdicas.

Através da observação, registro em vídeo e anotação em diário das sessões, foi constituído um corpus referente às datas das seguintes sessões: 04/11/2002, 11/11/2002 (4 anos, 6 meses); 16/03/2004 (5 anos, 10 meses); 06/04/2004 (5 anos, 11 meses); 10/08/2004, 31/08/2004 (6 anos, 3 meses); 21/09/2004 (6 anos, 4 meses). Optou-se em incluir duas sessões do ano de 2002 para que houvessem dados comparativos de períodos mais distantes; no entanto, há uma concentração maior nas sessões de 2004, por ter sido este o ano em que a primeira autora deste trabalho teve seu contato inicial com o grupo e, assim, com Júlia.

Por se tratar de um estudo de caso, o corpus foi elaborado, apenas, com dados em que o sujeito, em análise, está envolvido. É importante, também, ressaltar que alguns recortes dessas sessões foram excluídos por serem semelhantes ou recorrentes; evitando-se, assim, que o trabalho se tornasse demasiadamente extenso. Deu-se, ainda, preferência por situações potencialmente interativas, nas quais a criança estivesse interagindo com objetos e/ou pessoas.

As transcrições foram feitas a partir do registro em vídeo e anotações em diário das sessões do grupo do qual Júlia faz parte. Para melhor visualização dos dados, foi formatada uma tabela com as seguintes colunas:categorias de análise (CA), a serem referidas através de números (Atenção = CA1, por exemplo); sujeito;produções oraisgestos, usos de objetos e movimentação global; e observações sobre processos de significação.

Categorias de Análise

Baseando-se em estudos realizados por Rodríguez e Moro (1999), as observações feitas foram segmentadas em seqüências, que chamamos de unidades de análise. Como é muito variado o que o adulto e a criança podem realizar com um objeto, foram adotados os seguintes critérios para realizar o corte em seqüências:

1. Tipos de uso do objeto/ tipos de atividades: são os usos do objeto ou as atividades significativas que a criança realiza – não canônico(a)s, premissas de usos/atividades canônico(a)s, e canônico(a)s2.

2. Convergir em torno de um referente comum: quando adulto e criança estão atentos, manipulando ou se referindo, ambos, ao mesmo objeto/atividade.

3. Critérios de início e ruptura: como início consideramos o momento em que um dos protagonistas (adulto ou criança) inicia uma atividade ou ação sobre um objeto e o outro dirige a atenção para o que o primeiro estava fazendo; como ruptura consideramos o momento em que um dos sujeitos rompe com a ação convergente, ou quando um deles inicia um tipo diferente de uso do objeto.

As situações de interação são assimétricas devido a enorme distância no nível de interpretação entre adulto e criança. Portanto, as categorias de análise foram criadas para sistematizar os dados, de forma a serem sensíveis aos diferentes níveis de uso do objeto/ diferentes níveis de desempenho de uma atividade, uma vez, que são variados os significados que as crianças atribuem tanto aos objetos/atividades quanto aos mediadores comunicativos que o adulto emprega.

Tendo sido as categorias de 1 a 5 apropriadas do trabalho de Rodríguez e Moro (1999), as categorias propostas para analisar os dados foram as seguintes:

1. Atenção: é a primeira manifestação de interesse pelo objeto e/ou convergência de atenção da criança e do adulto sobre o objeto. Ex: parar o que estava fazendo, dirigir-se para o objeto ou para o adulto, levar as mãos em direção do objeto.

2. Emoção: é a manifestação externa de um estado emocional que esteja relacionado com o objeto ou com a ação de um dos protagonistas. É uma marca suplementar de interesse. Ex: vocalizar, rir, gritar, expressões faciais.

3. Usos/atividades não canônico(a)s – icônico(a): quando a criança não utiliza o objeto ou não realiza a atividade da maneira esperada ou de acordo com sua finalidade. Ex: colocar o objeto na boca.

4. Precursores de usos/atividades canônico(a)s – indicial: quando a criança utiliza o objeto ou desempenha a atividade de maneira mais dirigida e precisa do que quando o faz de forma não canônica. Ex: bater com a baqueta no chão ao invés de bater no tambor.

5. Usos/atividades canônico(a)s – simbólico(a): quando a criança utiliza o objeto ou desempenha a atividade da maneira esperada ou de acordo com sua finalidade. Ex: bater a baqueta ou a mão no tambor.

6. Linguagem da criança: é a linguagem verbal (oral) ou não verbal (gestos) utilizada pela criança durante sua interação com o objeto e/ou com o adulto. Sugerimos uma subdivisão deste item, uma vez que, por se tratar de uma criança em fase de aquisição da linguagem e com maior repertório do que as crianças estudadas por Rodríguez e Moro (1999), apresenta formas diferenciadas de enunciação: (a) descontextualizada: são frases ou expressões cristalizadas que não apresentam nenhuma ligação com o contexto em que foram reproduzidas (ex: dizer “olha menina!” enquanto está sentada aparentemente relaxada ou andando ou com algum brinquedo nas mãos, isto é, em diferentes contextos sem ligação aparente com o que estava fazendo); (b) contextualizada: são enunciados (que podem ser incorporados da fala do adulto ou não) que possuem alguma ligação com o contexto em que foram produzidos (ex: dizer “caiu tudo!” depois que a pesquisadora disse no momento em que derrubou as peças de um brinquedo).

7. Linguagem do adulto: é a linguagem oral produzida pelo adulto durante sua interação com o objeto e a criança, muitas vezes utilizada para comunicar algo para a criança em relação ao uso ou características do objeto.

É importante ressaltar que as categorias aqui descritas foram analisadas concomitantemente. Salvo as categorias 3, 4 e 5 que são excludentes entre si, as demais categorias são, muitas vezes, complementares.

Categorização e Análise

Serão apresentados, neste trabalho, dados ilustrativos de três sessões analisadas no estudo realizado.

1ª Sessão

Trata-se da sessão ocorrida no dia 04/11/2002 (4 anos, 6 meses), na qual estavam presentes Júlia, sua mãe e a pesquisadora responsável.

No primeiro recorte é possível verificar como a interação criança-objeto-adulto pode se tornar significativa para o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem: o sujeito, ainda que tenha recusado o objeto, retoma “coe” da produção anterior do adulto “coelhinho”, ao nomear o objeto que fora oferecido pela mãe. Ainda que esta fala da criança não signifique propriamente a intenção de nomear e se reportar ao objeto, ela é parte importante do processo de aquisição, no qual a mediação da linguagem do adulto se torna extremamente relevante.

Já no segundo recorte, verifica-se um uso não convencional do objeto por parte do sujeito: colocar o ônibus de madeira na boca. Muitas vezes, este ato de colocar os objetos na boca é atribuído a uma fase do desenvolvimento da criança em que esta está conhecendo, experimentando as coisas do mundo através dos sentidos – mais especificamente de uma região extremamente inervada, que fornece muitas informações a cerca do objeto: a região da boca – extremamente importante, especialmente para uma criança cega. Retomando a tríade peirceana – ícone, índice, símbolo – é possível ainda dizer que, neste momento, o objeto é um ícone; isto é, ele é o objeto em si mesmo, a ele ainda não foi atribuída nenhuma significação. No entanto, destaca-se o que acontece em seguida: o adulto, através da linguagem, atribui um sentindo para a conseqüência da ação realizada pela criança (derrubar os pinos de madeira, ao virar o ônibus) e a criança, mais uma vez, retoma o enunciado do adulto; desta vez, porém, por completo, mantendo-se até mesmo a entonação. Nota-se que o papel mediador da linguagem do adulto, novamente, se faz importante.

2ª Sessão

Trata-se da sessão ocorrida no dia 16/03/2004 (5 anos, 10 meses), na qual estavam presentes Júlia, a pesquisadora responsável, dois aprimorandos e um estagiário.

No primeiro recorte nota-se que o sujeito, mais uma vez, faz um uso convencional do objeto; neste caso, o tambor. Não só utiliza o brinquedo de forma convencional, como volta a fazê-lo quando é interpelado pelo outro. Ao tocar novamente o tambor, no entanto, acerta as pontas dos dedos. Observa-se que quando Júlia levou a mão na boca e franziu a testa, logo outro interlocutor interveio e através da linguagem atribuiu significado ao gesto de Júlia, procurando satirizar a situação.

Verifica-se, no recorte seguinte, porém, que o mesmo objeto é utilizado de forma não canônica, quando Júlia coloca a baqueta, que deveria ser utilizada para bater no tambor, na boca. Vê-se mais uma vez a importância do papel mediador da linguagem, neste recorte: o interlocutor, através da linguagem, explica qual a utilidade daquele objeto que Júlia estava segurando. Júlia, então, bate a baqueta no chão, como se estivesse batendo no tambor, mostrando com isso um índice, um precursor do uso canônico. Em seguida, porém, mais uma vez, leva o objeto na boca, utilizando-o, mais uma vez, de forma não convencional. Só então, com a mediação da linguagem pelo adulto que Júlia volta a índices de seu uso convencional. Finalmente, quando indagada sobre o que vem a ser um tambor é que chega ao uso convencional do mesmo, batendo com a mão sobre o objeto. Este dado é ilustrativo de que o uso do objeto menos convencional para o mais convencional, não segue uma evolução direta, linear. O processo é de idas e vindas, de (re)construção do sentido atribuído ao objeto.

3ª Sessão

Trata-se da sessão ocorrida no dia 31/08/2004 (6 anos, 3 meses), na qual estavam presentes Júlia, a pesquisadora responsável e duas aprimorandas.

O primeiro recorte mostra um momento de tensão vivido por Júlia, o que demonstra que inúmeros fatores, muitas vezes humanos, podem influenciar no uso do objeto. Júlia usa de forma não convencional (morde, amassa) o objeto a ela oferecido: uma manga de plástico. Quando é repreendida, entretanto, se zanga com a interlocutora, querendo até mesmo mordê-la. Fato interessante é que no final do episódio, Júlia pega outra fruta de plástico (maçã) e realiza o mesmo uso, não convencional, do objeto: morder, levar à boca. Parece, porém, que através desse contato com o objeto Júlia é capaz de reconhecer que se trata de um objeto diferente (maçã) do qual estava inicialmente (manga). Neste momento, Júlia faz sinal de negativo com a cabeça (movimenta a cabeça para os lados) e joga o objeto para longe, recusando-o.

No segundo recorte, Cecília, pesquisadora, convida Júlia a brincar de “pocotó”, brincadeira a qual estão habituadas. Observa-se que quando Cecília interrompe a brincadeira e pára de movimentar as pernas, Júlia faz, por si só, um gesto indicativo da brincadeira: movimenta o corpo para cima e para baixo, como acontece quando Cecília movimenta as pernas durante o “pocotó”. Este gesto de Júlia é indicial, um precursor da brincadeira; logo compreendido por Cecília, que a retoma. Verifica-se ainda, por parte de Júlia, a marcação do ritmo da brincadeira sobre a bengala que se encontrava em seu colo; reafirmando sua vontade de retomar a brincadeira, já que se trata de um momento de prazer para a mesma. Neste dado, constata-se um modo efetivo de significação não verbal, uma vez que a gestualidade de Júlia é compreendida pelo outro que retoma a brincadeira.

Considerações Finais

A partir da análise dos dados, é possível admitir que através dos mediadores semióticos, tal e como se apresentam no interior da comunicação entre adulto e criança, as crianças vão modificando os usos dos objetos desde níveis mais indiferenciados até outros de tipo convencional, conforme demonstrado por Rodríguez e Moro (1999), em seus estudos. No atual estudo, foi possível verificar, sobretudo, que a criança não apenas modifica os usos dos objetos, como também a realização das atividades, suas ações e seus modos de comunicação.

Entretanto, como constatamos, esse processo não é linear; pelo contrário, é um processo de idas e vindas, de constante (re)construção e (re)elaboração por parte dos sujeitos. Nesse processo, torna-se fundamental o papel do adulto que atualiza os usos convencionais e os significados culturais dos objetos, das atividades, das ações, das produções verbais e não-verbais da criança, através dos signos (Rodríguez & Moro, 1999).

Isso só foi possível devido às contribuições de diferentes estudos e pesquisas, como também de autores renomados. Peirce (1977), por exemplo, ao assumir que nenhum tipo de signo é auto-suficiente ou completo, mas são mútuo-complementares, traz a idéia de que todo signo aparece numa mistura de caracteres: ícone (quando o signo é determinado por seu objeto por compartilhar de seus caracteres), índice (quando o signo é determinado por seu objeto por estar realmente, e na sua existência individual, conectado a ele) e símbolo (quando o signo, por certeza mais ou menos aproximada, é interpretado como denotando o objeto, por conseqüência de um hábito).

Esse construto teórico reporta-se às categorias de análise que Rodríguez e Moro (1999) criaram em seu estudo: usos/atividades não canônico(a)s/icônico(a), quando a criança não utiliza o objeto ou não realiza a atividade da maneira esperada ou de acordo com sua finalidade; precursores de usos/atividades canônico(a)s/indicial, quando a criança utiliza o objeto ou desempenha a atividade de maneira mais dirigida e precisa do que quando o faz de forma não canônica; usos/atividades canônico(a)s/simbólico(a), quando a criança utiliza o objeto ou desempenha a atividade da maneira esperada ou de acordo com sua finalidade – e que aqui são apropriados para visualizar as aquisições da criança estudada, dando ênfase assim ao que nela existe e não ao que lhe falta. Portanto, utilizando-se da mesma metodologia, foi possível identificar, no presente estudo, mudanças e progressos em Júlia, caracterizá-los de modo a salientar aquisições, mesmo que esparsas, e de dar-lhes significado.

Quando analisamos sob esse prisma os dados, estes se tornam extremamente reveladores. Levando-se em conta que o ato de colocar os objetos na boca faz parte de uma fase do desenvolvimento da criança em que esta está conhecendo, experimentando as coisas do mundo através dos sentidos (principalmente uma região extremamente inervada, que fornece muitas informações a cerca do objeto, como é a região da boca; ainda mais importante para uma criança portadora de deficiência visual), episódios como os descritos no segundo recorte da sessão do dia 04/11/2002 (em que Júlia leva o ônibus de madeira até a boca), e no primeiro recorte da sessão do dia 31/08/2004 (em que Júlia leva à boca repetidas vezes uma manga de plástico e depois uma maçã de plástico), revelam não apenas o fato de Júlia estar em ambos os casos fazendo um uso não convencional dos objetos, mas também o fato de que esse uso lhe permite (re)conhecer e discriminar o objeto. Quando Júlia, no episódio do dia 31/08/2004 depois de colocar a manga na boca repetidas vezes, leva uma maçã até a boca, faz um sinal de negativo com a cabeça e a solta, pode-se entender que Júlia reconheceu que a maçã não era a manga, o que não significa que ela soubesse o que é uma maçã ou uma manga, mas que ela reconheceu que os objetos que ela manipulou tratavam-se de objetos diferentes. Poderíamos entender também como um sinal de reconhecimento da ordem anteriormente dada pela pesquisadora de não colocar o objeto na boca. De qualquer maneira, conforme fora anteriormente dito, torna-se possível, através da noção de mediação semiótica, não somente caracterizar as aquisições de Júlia, mas também lhes atribuir significado.

Ao serem resgatados autores como Vygotsky (1934/1989, 1934/1997) e Franchi (1977/1992) destaca-se o papel mais importante da linguagem – e que se visualiza, neste trabalho, nos dados analisados – que consiste na representação de experiências efetivas sobre si próprio, sobre os outros e sobre o mundo. E é através desse papel que o sujeito é constituído. As análises de episódios, como as dos recortes referentes aos dias 04/11/2002 (falar “coe” ao rejeitar o coelho, virar o ônibus e repetir a fala do adulto: “Caiu tudo”) e 16/03/2004 (do uso não convencional para o uso convencional do tambor), nos quais o adulto mediador ampliou e deu significado às ações de Júlia, tiveram esse papel.

Dessa forma, dentro das perspectivas aqui delineadas, fica evidente a possibilidade de aquisições em crianças que apresentam desenvolvimento bastante atípico. Desta forma, as teorias mencionadas podem ser aplicadas tanto para analisar o desenvolvimento de crianças com desenvolvimento típico, como para dar sentido às aquisições de crianças cujo desenvolvimento parece muito desviante dos padrões típicos.

Adotar uma perspectiva educacional que assuma tal concepção faz com que as pessoas sejam defrontadas, por conseqüência, com outras maneiras de conceber o ensino e a aprendizagem; fazendo com que sejam capazes de levar a criança a novos níveis de conhecimento.

Além disso, faz com que os padrões atualmente empregados nos diferentes testes de avaliação sejam repensados. Mais do que isso, ao propor uma análise longitudinal da criança em contexto de interação, como se faz neste trabalho, traz-se à tona as complexidades envolvidas no processo de desenvolvimento infantil – que são impossíveis de serem detectadas em um curto espaço de tempo, como normalmente é feito nos procedimentos de avaliação padronizados.

Finaliza-se, portanto, este artigo, com a esperança de que ao lançar luzes sobre as potencialidades dessa criança, se tornem visíveis os sujeitos reais e suas histórias individuais de relação com a linguagem, com outros sujeitos e com os objetos do mundo. O trabalho, com sujeitos reais, historicamente situados, possibilita o reconhecimento e a exploração teórica do fato de que eles costumam usar a linguagem, os objetos, bem como, a desempenhar diferentes atividades de maneira, por vezes, absolutamente singular. Singularidade esta, que pode vir a ser, como é possível constatar nos dados aqui apresentados, extremamente reveladora.

Referências

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 Autor:

Michelli Alessandra Silva*; Cecília Guarnieri Batista**

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil

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