Biografia de Darcy Ribeiro
Explore a vida e obra de Darcy Ribeiro, um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX, suas contribuições para a educação e a cultura, e seu legado na sociedade.
DARCY RIBEIRO
Darcy Ribeiro disse, certa vez, que “só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”. Defensor de uma sociedade solidária, o etnólogo, antropólogo, professor, educador, ensaísta e romancista Darcy Ribeiro certamente estaria indignado com a violência que assombra o Brasil. Dez anos depois de sua morte (17 de fevereiro), seu sonho de ver um desenvolvimento justo para todos os cidadãos ainda não foi atingido. |
Mineiro polêmico, revolucionário, engajado e movido pela obsessão de salvar o Brasil, era um homem que pensava grande. Por isso deu tanta importância à educação, vista por ele como o único meio para alcançar essa transformação social. “Sem um povo educado, não há como fazer o País crescer”.Com obras traduzidas para diversos idiomas, Darcy figura entre os maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos. Notabilizou-se por trabalhos desenvolvidos nas áreas de Educação, Antropologia e Sociologia. Um dos responsáveis pela criação da Universidade de Brasília e idealizador da Universidade Estadual do Norte Fluminense, o professor Darcy criou, planejou e dirigiu a implantação dos Centros Integrados de Ensino Público (Cieps), um projeto pedagógico de assistência em tempo integral a crianças.Criou também a Biblioteca Pública Estadual, a Casa França-Brasil, a Casa de Cultura Laura Alvim, o Centro Infantil de Cultura de Ipanema e o Sambódromo, em que colocou 200 salas de aula para fazê-lo funcionar também como uma enorme escola primária.A implicância com os homens e a paixão pelas mulheres eram evidentes. Adorava passear de charrete, sempre acompanhado por mulheres, pelo seu sítio, em Maricá. Aliás, esta cidade do litoral fluminense foi o cenário de uma das maiores travessuras de Darcy. Em 1995, ele enlouqueceu os médicos ao fugir da UTI. Depois de 21 dias de internação para se tratar do câncer, ele deixou o hospital no Rio para se esconder em sua casa em formato de oca na praia de Maricá, projetada por Oscar Niemeyer. “No hospital só tinha gente querendo morrer, eu quero viver”, justificou. Acabou vivendo mais dois anos, até ser vencido pela “bolinha maligna”, como ele definiu o câncer que já lhe tirara um pulmão em 1974.Fundou o Museu do Índio e criou o Parque Indígena do Xingu. Elaborou para a Unesco um estudo do impacto da civilização sobre os grupos indígenas brasileiros no século XX e colaborou com a Organização Internacional do Trabalho na preparação de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo. Admirado inclusive pelos adversários, Darcy exerceu vários cargos públicos, como ministro-chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, vice-governador do Rio de Janeiro e senador.Membro da Academia Brasileira de Letras, Darcy foi exilado e teve cassados os direitos políticos durante a ditadura militar. Viveu em vários países da América Latina, conduzindo programas de reforma universitária. Escreveu dezenas de ensaios e livros, entre eles os romances “Maíra”, “O mulo”, “Utopia selvagem” (1982) e “Migo” (1988). Seu último trabalho foi “O povo brasileiro”, de 1995.Darcy não tinha medo da morte. O que o “fazedor de coisas” abominava era a ideia de não mais realizar, dizer adeus aos “fazimentos”. E não mais poder divertir o mundo ao seu redor com lições bem-humoradas de amor à vida, como as frases que usava para explicar seus arroubos intelectuais. “Mais vale errar se arrebentando do que preparar-se para nada”, dizia o poeta Darcy. |
A Educação e a Política
Texto publicado como Prólogo da Revista “Carta’: falas, reflexões, memórias”, nº 15
A rica direita brasileira, desde sempre no poder, sempre soube dar, aqui ou lá fora, a melhor educação a seus filhos. Aos pobres dava a caridade educativa mais barata que pudesse, indiferente à sua qualidade (…).
A primeira Lei de Diretrizes e Bases, que fui obrigado a pôr em prática como Ministro da Educação que era então, 1961, cumpriu o triste papel de piorar a educação brasileira. Isso ocorreu em razão da vitória da direita, encarnada por Carlos Lacerda e Dom Helder Câmara, contra a esquerda liderada por Anísio Teixeira. Com efeito, a nova Lei, em nome da democratização, liquidou com o sistema de formação do magistério primário com que contavam todos os estados brasileiros na forma de institutos públicos capazes de dar formação teórica e prática a seu magistério. A nova lei abriu a quem quisesse a liberdade de criar escolas normais, quase sempre com propósito puramente mercantil, convertendo-as em meros negócios. O êxito numérico foi grande, as escolas multiplicaram-se aos milhares, mas o efeito educacional foi o mais grave, porque elas degradaram o ensino normal ao mais baixo nível. Hoje, nosso professorado é formado numa das disciplinas falsamente profissionalizadoras, ministradas no nível médio, quase sempre em cursos noturnos, de onde sai praticamente analfabeto e incapaz de ensinar.
A mesma lei, e a legislação educacional que se seguiu, orientou-se por critério idêntico e teve igual efeito no nível superior. Em lugar de forçar a ampliação das matrículas nas Faculdades Públicas que contavam com bons professores, laboratórios e bibliotecas, concedeu liberdade total para converter o ensino superior em negócio. Assim é que as matrículas saltaram de menos de 100 mil a mais de 1.500 mil, mas concentrou 70% delas em escolas privadas, a maioria das quais incapazes de ministrar qualquer ensino eficaz. Em consequência, precisamente o alunado mais pobre e mais necessitado de ajuda paga caro por cursos ruins, degradando-se cada vez mais a qualidade dos corpos profissionais com que conta o país. Nunca coisa tão grave ocorreu em qualquer país do mundo. Mas esta foi a solução que a direita toda-poderosa, sobretudo quando estruturada como ditadura militar, impôs ao Brasil.
Assim, chegamos à situação calamitosa de uma Educação Primária que produz mais analfabetos que alfabetizados; de uma Escola Média que não prepara ninguém para prosseguir os estudos na universidade, nem para o trabalho especializado; e de uma Escola Superior igualmente ruim em que, na maior parte dos casos, o professor faz de conta que ensina e o aluno faz de conta que aprende.
Nenhum desses problemas terá solução se continuarmos trotando pelos mesmos caminhos direitistas, indiferentes à educação popular e ao progresso do país. É indispensável para o Brasil, como o foi para todos os povos que deram certo realizando suas potencialidades, empreender um grande esforço nacional no sentido de alcançar algumas metas mínimas no campo da educação popular.
Primeiro
Criar escolas de dia completo para alunos e professores, sobretudo nas áreas metropolitanas, onde se concentra a maior massa de crianças condenadas à marginalidade porque sua escola efetiva é o lixo e o crime. O que chamamos de menor abandonado e delinquente é tão-somente uma criança desescolarizada, ou que só conta com uma escola de turnos.
Segundo
Instituir progressivamente Escolas Normais Superiores e Institutos Superiores de Educação que formem um novo professorado devidamente qualificado pelo estudo e treinamento em serviço para o exercício eficaz do magistério.
Terceiro
Dar ao novo professorado primário e médio, devidamente preparados, condições aceitáveis de trabalho em tempo completo, com salário dobrado e mais um suplemento de 20%.
Quarto
Ampliar o acesso ao Cursos Técnicos para que neles tenha ingresso qualquer pessoa que possa cursá-los com proveito, sem quaisquer exigências acadêmicas.
Quinto
Instituir nas universidades cursos que formem a base de estudos pedagógicos, e sobretudo da prática educativa, tanto Professores de Turma para ensinar de primeira a quinta série primária, como Professores de Matéria para as séries seguintes. Necessitaremos, pelo menos, de um milhão de novos professores na próxima década para repor os aposentados e para ampliar o sistema, e se eles forem formados como agora, a educação brasileira continuará fracassando.
Sexto
Criar universidades especializadas em Ciências da Saúde, nas Tecnologias ou nas Ciências Agrárias e em outros ramos do saber, dotando-as de recursos para pesquisar e procurar solução para os problemas brasileiros.
Sétimo
Passar a contratar nas faculdades públicas professores por matéria e não por disciplina, com obrigação de ministrar o mínimo de 10 horas de ação docente semanal junto aos alunos e de ensinar diversas disciplinas.
Oitavo
Desobrigar o professor de nível superior a simular a realização de pesquisas para ter o salário aumentado (20 a 40 horas nominais) e apoiar, substancialmente, a pesquisa autêntica, seja científica, seja tecnológica. Simultaneamente se deve valorizar e remunerar o Magistério em si, independentemente de qualquer programa de pesquisas, como atividade indispensável à Nação e altamente meritória.
Nono
Criar Cursos de Sequência que dêem direito a Certificado de Estudos Superiores a quem cursar mais de cinco matérias correlacionadas. Só assim se poderá superar o sistema tubular de nossas universidades, preparadas para formar apenas algumas dezenas de profissões à base de um currículo mínimo prescrito, quando uma sociedade moderna necessita de mais de duas mil modalidades de formação superior para funcionar eficazmente na nova civilização.
Outras
Mutíssimas outras providências e inovações são indispensáveis para que os brasileiros ingressem definitivamente na civilização letrada, com capacidade de alcançar um desenvolvimento auto-sustentado. Para tanto é indispensável jugular a formação de novos analfabetos. Esse esforço poderia ter início pondo em marcha a Década da Educação, instituída pela Constituição Federal,
- Fazendo os prefeitos recensear todas as crianças que vão completar sete anos de idade para entregá-las aos cuidados de boas professoras devidamente ajudadas pelo Estado e pela União;
- Recensear também os jovens que completam 14 e 16 anos, insuficientemente escolarizados, para inscrevê-los em cursos de Educação à Distância, ministrados através de textos escritos para estudar em casa e da ajuda de programas de televisão educativa, proporcionados pelo Ministério da Educação.
Somente a esquerda poderá enfrentar esse desafio. Para isso, entretanto, é indispensável que ela se arme da mais viva indignação contra o atraso e a fome desnecessárias a que é submetido o povo brasileiro, sobretudo a infância. É indispensável também que essa nova esquerda alcance a necessária lucidez para desmascarar e enfrentar a trama direitista de interesses setoriais, corporativos e privatistas, que condena nosso povo à fome e ao analfabetismo.
O substitutivo que ofereci ao Projeto de Lei de Diretrizes e Bases elaborado na Câmara dos Deputados, uma vez aprovado, criará condições para que se efetive essa mobilização nacional contra o atraso. Trata-se de um projeto síntese que aproveita as melhores contribuições dos anos de discussão no Congresso e das centenas de sugestões dadas por toda sorte de instituições nacionais para evitar que a nova Lei Geral da Educação venha a congelar o péssimo sistema educacional que temos e com ele condene nosso povo ao fracasso na história.
Quem não luta seriamente por essas reivindicações mínimas de uma educação popular democrática ajuda a direita a manter nosso povo condenado a viver à margem da civilização letrada, sofrendo as consequências do desemprego e de uma fome e ignorâncias crescentes.
Comprovam esse pendor das elites brasileiras a descurar da educação popular a destruição perversa da reforma educacional de Anísio Teixeira; experiência estudada até hoje como o melhor esforço que se fez no Brasil para criar a escola primária média e superior de que necessitamos.
Outra comprovação se teve com a eleição de Moreira Franco, que abandonou o sistema de escola de tempo integral que estávamos implantando através dos Centros Integrados de Educação Pública, dando aos seus edifícios as mais absurdas utilizações para negá-los às crianças como escola de tempo integral.
O mesmo ocorreu mais feiamente, com a equipe a que Marcelo Alencar entregou a educação no Rio de Janeiro. Ela se ocupou devotadamente a reverter à rede comum de escolas de turno os 400 CIEPs que deixamos funcionando e que absorvia ¼ do alunado do Estado, ou seja, 340 mil crianças em cursos de dia completo que vinham alcançando enorme êxito. Comprovavam que efetivamente com escolas adequadas o alunado oriundo das camadas mais pobres, mesmo que tenha sofrido anos de subnutrição e violência, pode ser recuperado e completar os estudos de 1º grau.
Nós educadores precisamos estar atentos também para as nossas culpas. Sempre que um Governo elitista abocanha o poder encontra falsos educadores prontos a reimplantar a escola pública corrente que não alfabetiza nem educa as crianças pobres. Isto é feito por ignorância, por adulação aos poderosos do dia e, sobretudo, pelo pendor direitista da pedagogia vadia que se pratica entre nós. Ela sustenta que o sistema escolar de turnos é auto-corretivo e através de seu próprio funcionamento superará suas deficiências.
Não é verdade! Só uma escola nova, concebida com o compromisso de atender as condições objetivas em que se apresenta o alunado oriundo das classes menos favorecidas, educará o Brasil. Só uma escolarização de dia completo, com professores especialmente preparados e de rotina educativa competentemente planejada, acabará com o menor abandonado, que só existe no Brasil. Assim é porque só aqui se nega à infância pobre a escola que integrou na civilização letrada a infância de todas as nações civilizadas.
Darcy Ribeiro, setembro de 1995
A UnB
O Nascimento da UnB
Assim que Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência, seu compromisso de criar Brasília, mudando a capital para o interior, tornou-se o principal tema de debate nacional. Toda a mídia e todas as bocas discutiam Brasília, surgindo as mais variadas interpretações do que viria a ser. Algumas vezes figuravam a nova capital como tendo que ser feita no meio da selva selvagem, onde só viviam índios também selvagens. Isso me irritou muito. Eu era um dos poucos intelectuais que tinha vivido para além das fronteiras da civilização, conhecia inclusive a região onde Brasília seria implantada.
Expressei minha reação em um programa, na TV Tupi, em que dizia que Brasília ia ser plantada no cerrado goiano, onde não havia mata nenhuma, acrescentando que, no local, já havia algumas cidades, uma delas fundada em 1720.
Sugeri, naquele programa, que muito mais razoável que a programada capital nova seria retomar as idéias de um século atrás, de ligar com um canal o sistema Tocantins-Araguaia com o sistema Paraná-Paraguai, criando uma nova costa brasileira, instalada numa via navegável que iria de Belém a Buenos Aires. Se isso fosse feito desapropriando terras ao longo dessa via para implantar lavradores pobres, o projeto permitiria realmente arrancar os brasileiros que estavam concentrados na praia e lhes dar perspectivas novas de progresso.
Minha idéia chegou a ser discutida. Cheguei inclusive aos ouvidos de JK, para quem eu me tornei visível. Tinha já as qualidades de mineiro de uma família do PSD, um tio meu era deputado federal. Muito mais valeu, porém, para Juscelino, minha oposição de intelectual a Brasília e minha sugestão alternativa de adotar outras formas de interiorização do Brasil.
Segue-se a esse episódio o concurso internacional para a urbanização de Brasília e a divulgação do plano admirável de Lúcio Costa para a nova capital – um dos mais altos e belos documentos da cultura brasileira. Divulga-se também que a arquitetura de Brasília seria entregue a Oscar Niemeyer, o único gênio brasileiro. Nessas bases é que eu aderi aos planos de JK. Reconheci que a criação de uma cidade-capital, sede de todos os poderes e da cabeça das forças armadas no centro do Brasil, teria o efeito que teve a descoberta do ouro em Minas Gerais. Ataria todas as províncias brasileiras desgarradas por imensas distâncias umas das outras, porque em lugar de inclinar-se para o Rio de Janeiro, na costa Atlântica, todos se voltariam para o novo núcleo reitor, que seria a nova capital, situada no centro do Brasil.
Nessa ocasião, eu trabalhava no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, que tinha o encargo de planejar o ensino primário e o médio da nova capital, sob a direção de Anísio Teixeira. Comecei então a argüir sobre a necessidade de criar também uma universidade e sobre a oportunidade extraordinária que ela nos daria de rever a estrutura obsoleta das universidades brasileiras, criando uma universidade capaz de dominar todo o saber humano e de colocá-lo a serviço do desenvolvimento nacional.
Encontrei logo adesões e oposições. Essas últimas partiram de assessores de JK, que queriam a nova capital livre de badernas estudantis, assim como de greves de operários fabris. Foram crescendo, porém, as ondas de apoio, que vinham, sobretudo dos grandes cientistas brasileiros, que se juntavam na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
O decisivo, porém, foi alcançar o apoio de Cyro dos Anjos e de Victor Nunes Leal, respectivamente Sub-chefe e Chefe da Casa Civil. Ambos passaram a falar ao Presidente do imperativo de criar-se uma universidade em Brasília. Conseguiram inclusive que ele, por decreto, me desse o encargo de projetar uma universidade para a nova capital. Eu andava sempre pelo Palácio do Catete, como encarregado que era de colaborar na redação das Mensagens Presidenciais, inclusive de redigir o capítulo da Educação. Nesse trabalho, atribuindo idéias à Presidência da República, é que me aprofundei no estudo dos sistemas educacionais, inclusive das formas de organização das universidades.
Armado com a autoridade que me dava o referido decreto, passei a reunir cientistas, artistas, filósofos para discutir a forma que deveria ter a futura universidade. Terminei por redigir um documento muito divulgado, que englobava uma crítica severa à universidade que tínhamos e a proposição de uma universidade de utopia. Nisso estávamos, quando fui chamado ao Catete para falar com o Presidente. Ele me disse que tinha sido procurado por Dom Hélder Câmara, que lhe comunicara o propósito que tinha a Companhia de Jesus de criar em Brasília uma universidade jesuítica, sem ônus para o Governo, acrescentando que a principal universidade de Washington era uma universidade católica. O Presidente me disse que, entre meu projeto e o jesuítico, ele lavava as mãos. Suspeitei logo que ele já tivesse optado pelo projeto de uma universidade religiosa.
Vivi uma semana de desespero, vendo ruir o sonho da minha universidade de utopia, que era já, então, a ambição maior da intelectualidade brasileira como caminho de renovação do nosso ensino superior e de desenvolvimento da ciência. No meio desse meu desengano, tive a idéia de apelar para os cães de Deus, os dominicanos, que tradicionalmente opunham reservas aos projetos jesuíticos.
Procurei em São Paulo o Geral, no Brasil, da Ordem, que era Frei Mateus Rocha, e lhe expus o meu problema. Argumentei que o Brasil tinha oito universidades católicas, quatro delas pontifícias, que formavam milhares de farmacêuticos e dentistas, mas não formavam nenhum teólogo. Propus entregar aos dominicanos a criação de um Instituto de Teologia Católica dentro da Universidade de Brasília. Seria um ato revolucionário, porque a teologia, expulsa das universidades públicas desde a Revolução Francesa, a elas voltariam, justamente na mais moderna universidade que se estava criando naqueles anos. Houve reações adversas à minha iniciativa, inclusive a de um eminente cientista, que me acusava de trair a tradição laicista da educação.
Frei Mateus foi a Roma procurar o Santo Papa João XXIII, em companhia do Geral dos Dominicanos – o chamado Papa Branco -, e lhe fez a entrega de minha proposta. Soube logo, por telegrama, que o Papa tinha aquiescido. Tempos depois fui receber Frei Mateus, pedindo o documento papal. Ele me disse que o Papa não escreve cartas nem faz promessas. Que toda a Igreja naquele momento sabia que não haveria universidade jesuítica em Brasília, estando aberto espaço para nós.
Enorme foi à surpresa de Juscelino quando lhe contei as minhas demarches. O que se seguiu, porém, foi um ato dele encarregando o Ministro da Educação e um grupo de canastrões, inclusive Pedro Calmon – que era, há dezoito anos, o Reitor da Universidade do Brasil – de programar uma universidade para Brasília. Eu seria uma voz isolada naquela convenção, destinada a perder a parada. Minha reação foi escrever um documento dirigido aos principais cientistas e pensadores brasileiros, compromentendo-os com o projeto que eu havia elaborado e para o qual pediria o apoio da referida Comissão. O certo é que a Comissão acabou por mandar ao Presidente o nosso projeto. Provavelmente porque enorme seria a celeuma se quisessem fazer em Brasília mais uma universidade federal.
A 21 de abril de 1960, Juscelino manda ao Congresso Nacional uma Mensagem pedindo a criação da Universidade de Brasília. Seguiu-se para mim um longo trabalho, primeiro nas Comissões da Câmara dos Deputados, para conseguir a aprovação de uma lei libertária da criação em Brasília de uma universidade inovadora. Nesse trabalho, contei com a colaboração de San Tiago Dantas, que deu forma ao Projeto de Lei, instituindo a universidade como uma organização não-governamental, livre e autônoma, de caráter experimental e dotada de imensos recursos para constituir-se e para funcionar.
Adveio o breve governo de Jânio Quadros, que me confirma por Decreto na qualidade de coordenador de planejamento da Universidade de Brasília. Em seu governo, adiantamos muito na fixação do terreno onde ficaria o campus da Universidade, entre a Asa Norte e o Lago. Contribuiu poderosamente para isso o plano urbanístico da Universidade, proposto por Lúcio Costa.
Nessa quadra, vendo que a universidade era inevitável, Israel Pinheiro lhe concedeu um vasto terreno, seis quilômetros distante da capital. O propósito era afastar a agitação estudantil do centro de poder da capital. Aceitei a doação, destinando-a a criar ali um centro agrícola de estudo de uma tecnologia para o cerrado.
No dia da renúncia de Jânio Quadros, passei no Gabinete da Presidência e senti ali um ambiente de incontrolável tensão. Mas ninguém me adiantou nada. O Secretário do Presidente, José Aparecido de Oliveira, sugeriu que eu fosse para a Câmara. Lá, só lá, soube da renúncia. No meio de uma Câmara perplexa, porque havia acabado de aceitar a renúncia como um ato unilateral, que não cumpria discutir, mas apenas tomar conhecimento. A sessão estava por encerrar-se, o que ninguém queria.
Acerquei-me então do Presidente da Mesa, Deputado Sérgio Magalhães, e lhe pedi que pusesse em discussão o projeto de criação da Universidade de Brasília, que era o número dezoito da Ordem do Dia. Ele reagiu instantaneamente, tratando-me de louco. Mas instantaneamente percebeu que, ali, o único homem de juízo era eu. Mandou que eu descesse a Plenário para conseguir que um líder propusesse a mudança da Ordem do Dia. Quando eu ainda tentava convencer o Deputado Josué de Castro a fazê-lo, o Presidente Sérgio Magalhães anunciou que, tendo sido aprovado o requerimento do líder do PTB, punha em discussão e mandava ler o projeto de criação da Universidade de Brasília. O que se seguiu foi o tumulto de uma Câmara que demorou alguns minutos a perceber do que se tratava, que era fazê-los exercer suas funções, discutindo uma lei de suprema importância. Os debates foram acalorados entre a UDN, como sempre contrária aos projetos do Governo, e os outros partidos, com o pendor de aprová-lo. O mais veemente discurso contrário foi o do velho Raul Pilla, ponderando que, se nossos pais e avós mandavam seus filhos estudarem em Coimbra, bem poderia o povo de Brasília mandar os seus para as antigas universidades, sem incorrer no risco de criar aventureiramente uma universidade em uma cidade apenas nascente. Na votação, o projeto da Universidade de Brasília foi aprovado com grande margem favorável.
Comecei meu trabalho então junto ao Senado, que aquiescia verbalmente às minhas proposições, mas não parecia disposto a aprovar o projeto. Procurei então o Primeiro-Ministro, Hermes de Lima, pedindo conselhos. Ele me disse que tinha uma boa solução, mas estava certo de que eu não a acolheria: era procurar o líder Filinto Müller, pedindo que ele conduzisse o debate da Universidade no Senado. Horrorizei-me. Tratava-se de aproximar dois extremos simbólicos – o meu de esquerdista e o de Filinto Müller, direitista.
Procurei o Senador Filinto Müller e pedi o seu apoio. Ele convidou-me para um chá em sua casa, onde comemos os excelentes bolos que sua senhora fazia. Mal ouviu parte da exposição que eu queria fazer, justificando a organização da nova universidade, ele disse-me:
– Não se inquiete, professor. O problema agora é meu. Breve eu lhe farei saber quando será a discussão final em plenário.
Efetivamente, pouco tempo depois ele me chama, me faz sentar numa cadeira lateral para ouvir os debates sobre o projeto de criação da nova universidade. Eu os ouvia atentíssimo, sobretudo o Senador Mem de Sá, que num longo discurso argumentava que, sendo o Professor Darcy Ribeiro sabidamente um intelectual inteligente e competente; sendo também inegavelmente um homem coerente; e sendo, para arrematar, um reconhecido comunista, fiel ao marxismo, a universidade que propunha só podia ser uma universidade comunista. Como tal, inaceitável para o Senado. Seguiu-se a votação e o projeto da universidade foi aprovado por imensa maioria. Eu tinha em mãos, pois, toda uma lei admirável que deveria pôr em execução.
Minha primeira providência foi discutir com Anísio Teixeira se o Reitor deveria ser ele, que nesse caso teria de mudar-se para Brasília, ou se seria eu. Anísio, em sua generosidade, aceitou o cargo de meu Vice-Reitor, o que comuniquei a Hermes de Lima e assim saiu o Decreto do Presidente João Goulart que me fazia fundador e primeiro Reitor da Universidade de Brasília.
Os meses e anos seguintes foram os da alegria de dar nascimento à Universidade de Brasília, transfigurando a idéia em coisa concreta. Dela tive de afastar-me, primeiro para ser Ministro da Educação e depois para ser Chefe da Casa Civil. Anísio assumiu a Reitoria fazendo Frei Mateus Rocha, que levava adiante com todo entusiasmo a edificação do Instituto de Teologia Católica, o seu Vice-Reitor.
Graças às funções que eu exercia na máquina do Estado, pude ajudar muito a Universidade. Por exemplo, na sua edificação, no equipamento de seus laboratórios e conseguindo residências para os professores que começavam a chegar às dezenas. Assim, a Universidade foi crescendo e desdobrando suas potencialidades, até que o golpe militar que se abateu sobre o Brasil, regressivo e repressivo, caiu sobre ela com toda a fúria.
Darcy Ribeiro, abril de 1995.
(…) A antiga Lei de Diretrizes e Bases, vigente até agora, em nome da democratização, liquidou com o sistema de formação do magistério primário com que contavam todos os estados brasileiros, na forma de institutos públicos capazes de dar preparação teórica e prática a seu magistério. Abriu a quem quisesse a liberdade de criar escolas normais, quase sempre com propósito puramente mercantil, convertendo-as em meros negócios. O êxodo numérico foi grande, as escolas multiplicaram-se aos milhares, mas o efeito educacional foi o mais grave, porque elas degradam o ensino normal ao mais baixo nível. Hoje, nosso professorado é formado numa das disciplinas falsamente profissionalizantes ministradas no nível médio, quase sempre em cursos noturnos, de onde sai incapaz de ensinar.
A mesma lei e a legislação educacional que se seguiu, orientou-se por critério idêntico e tiveram igual efeito sobre o nível superior. Em lugar de forçar a ampliação das matrículas nas faculdades públicas que contavam com bons professores, laboratórios e bibliotecas, concedeu liberdade total para converter o ensino em negócio. Assim, é que as matrículas saltaram de menos de 100 mil a mais de 1.500 mil, mas concentrou 70% delas em escolas privadas, a maioria das quais incapazes de ministrar qualquer ensino eficaz. Em conseqüência, precisamente o alunado mais pobre e mais necessitado de ajuda paga caro por cursos ruins, degradando-se cada vez mais a qualidade dos corpos profissionais com que conta o País. Nunca coisa tão grave ocorreu em qualquer país do mundo.
A nova LDB muda muita coisa, porém o faz incentivando transformações nos vários níveis de ensino do que ordenando rigidamente normas estatutárias. Os sistemas estaduais de educação são fortalecidos a ir adaptando a educação em seus estados às prescrições da lei, mas fazendo com respeito às suas próprias tradições e singularidades. Regras precisas só são estabelecidas sobre o que são despesas com a educação para inibir os abusos correntes em que elas eram usadas para abrir ruas e pontes e outros programas municipais.
As escolas de tempo integral para professores e alunos, indispensáveis para que todas as crianças se integrem na civilização letrada, é proposta como um ideal que cada região procurará alcançar tão rapidamente quanto possível. Torna obrigatório o ensino da Educação Artística do nível pré-escolar até o 2º grau. Concede licença para oferta de curso de religião sem ônus para os cofres públicos.
As universidades são libertadas da ditadura do Ministério da Educação. Vale dizer, assumem o comando de si mesmas, com verdadeira autonomia, inclusive para variarem. São admitidas universidades especializadas por campos de saber – como saúde, agricultura, educação e outras – sem exigência da dar cursos de outras áreas, como hoje se faz. A grande novidade é a instituição de cursos por seqüência de um mesmo campo, que dão direitos a um certificado de estudos superiores. Liberta, assim, nossas universidades, de só ministrarem cursos curriculares e as convoca para abrir seus cursos, sobretudo de ciência e tecnologia, a quem queira inscrever-se neles.
Outra novidade é exigir das universidades públicas um mínimo de oito horas semanais de aula ou trabalho direto com os alunos. Isso parece pouco para quem as vê de fora, mas as obrigará a suarem para cumprirem esse novo preceito. Entre as novas liberdades está a de cada universidade organizar seu vestibular como queira.
Contribuição fundamental ao aprimoramento do ensino superior é a obrigatoriedade prescrita pela lei de que um terço dos professores tenham títulos de mestre ou doutor, estabelecendo um prazo de oito anos para que isso seja alcançado.
Outra inovação da lei é instituir o Curso Normal Superior para formar e aperfeiçoar professores de 1ª a 4ª séries nas faculdades e universidades. Esses professores de turno, que são de fato o alicerce onde se assenta todo o edifício da educação precisam sair do nível médio e passar para o superior através de um novo padrão de ensino e de práticas educativas, oferecidos para a melhoria do professorado em exercício e para a formação do novo magistério brasileiro.
A nova lei determina, ainda, que o Ministério da Educação organize sistemas regulares de avaliação da qualidade do ensino para os cursos primário, médio e superior. A inexistência dessas avaliações gerais era uma das carências maiores do nosso sistema nacional de educação. Ela é que permitirá rever periodicamente as autorizações de licença de docência dadas a várias instituições de educação, inclusive para universidades.
A Lei Darcy Ribeiro dá um importante passo, também, ao mandar que o Ministério da Educação regulamente, no curso do corrente ano, a Década da Educação. Esta década, prevista na Constituição de 1988, nunca foi regulamentada e posta em exercício. Agora é a própria Lei de Diretrizes e Bases que estabelece as metas fundamentais que o sistema nacional de educação deve alcançar, a começar pela alfabetização e integração na civilização letrada de toda a infância brasileira. É notório o fato de que a educação brasileira está muito aquém do desenvolvimento socioeconômico que já alcançamos e constitui, por isso, fator de atraso e subdesenvolvimento que a nova lei aponta caminhos para superar.
No ensino de 1º e 2º graus é permitido o desdobramento por ciclos, que enseja distinguir dois ramos. Os cursos de 1ª a 4ª séries, entregues a professoras de turma e dedicados às crianças. E os cursos de 5ª a 8ª, destinados a adolescentes, entregues a professores de matéria.
Uma bela virada da nova lei é o estímulo para que se dêem cursos de educação à distância para os três níveis de ensino, com uso das novas tecnologias didáticas, através da televisão, do rádio e da internet. Com esta medida o Brasil passa a ter acesso à grande inovação educacional das últimas décadas, que é a educação à distância.
Autor: Carlos Alexandre Constantino