RESUMO
O artigo expõe a evolutiva do grafismo infantil segundo a perspectiva da psicologia sócio-histórica e apresenta uma proposta terminológica original para a etapização do desenvolvimento gráfico-plástico infantil. Discute ainda a problemática relativa à formação do professor em arte-ensino na educação infantil e séries iniciais da escolarização nacional.
ABSTRACT
The article exposes a historical-cultural psychological approach to child’s art and proposes an original taxonomy to its developmental features. It also presents some problems related to art-teaching on training teachers’ programs in brazilian children education and first grades of schooling today.
PALAVRAS-CHAVE
Arte infantil – educação infantil – ensino de arte – formação de professores – psicologia sócio-histórica
KEY-WORDS
Child art – children education – arts teaching – teachers trainning – cultural historical psychology
DO DESENHO DE PALAVRAS À PALAVRA DO DESENHO
Prof. Ricardo Ottoni Vaz Japiassu[1][1]
Universidade do Estado da Bahia-Uneb
“Seria totalmente injusto pensar que todas as possibilidades criadoras das crianças se limitam exclusivamente às artes. Lamentavelmente a educação tradicional, que tem mantido as crianças alijadas do trabalho, fez com que elas manifestassem e fomentassem sua capacidade criadora preferentemente na esfera artística.” Lev Vygotsky y
Artes e formação de professores
A problemática relativa ao ensino das artes no país, hoje, põe em cheque a formação de professores oferecida nas licenciaturas em arte (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), nos cursos de pedagogia, em escolas normais superiores, habilitações para o magistério de nível médio e em programas para o aperfeiçoamento em serviço do educador.
(1) Que tipo de (in)formação os profissionais da educação estão tendo para trabalharem com seus alunos, de modo sistemático, as diferentes linguagens artísticas?
(2) Se a habilitação para o magistério na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental é prerrogativa do pedagogo, por que nos cursos de pedagogia e de formação de professores não são oferecidas disciplinas que contemplem a especificidade estética de cada uma das linguagens artísticas (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro)?
(3) Por que não se busca sinalizar procedimentos metodológicos para o trabalho sistemático na escolarização com cada uma das linguagens artísticas em cursos que têm como objetivo a formação dos profissionais da educação que irão atuar nas creches, pré-escolas e séries iniciais do ensino fundamental?
(4) Se cabe aos artistas, arte-educadores e aos professores de arte (egressos das licenciaturasem Artes Visuais, Dança, Música e Teatro) o trabalho pedagógico com as artes na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental (1ª à 4ª série) por que é tão rara a presença desses profissionais nestes níveis da escolarização básica?
Parece-me que evitar formular questões como as que são apresentadas acima – ou não procurar respondê-las – revela uma silenciosa orquestração no sentido de “deixar tudo como está pra ver como é que fica”. Então quero expor aqui meu ponto de vista em relação a essa problemática.
Se, por um lado, não tenho a ambição de ser “dono da verdade”, por outro, proponho um equacionamento não desinteressado do problema. Meu entendimento é o de que o professor da educação infantil e das séries iniciais é essencialmente “polivalente”, ou seja, é aquele profissional “licenciado” para realizar a transposição didática dos conhecimentos de diferentes áreas do saber em creches, pré-escolas e nas séries iniciais do ensino fundamental (1ª à 4ª série).
Ora, não se tem notícia de professores de matemática ou de língua portuguesa, por exemplo, atuando na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental. As licenciaturas em matemática e língua portuguesa têm em vista o exercício do magistério da 5ª à 8ª série do ensino fundamental e ao longo do ensino médio. O mesmo ocorre com as licenciaturas para o ensino das demais áreas do conhecimento (artes, educação física, ciências naturais, história e geografia) (Brasil, 1998, 1997).
Os cursos de pedagogia precisam, do ponto de vista que se defende aqui, assumir a especificidade da formação profissional que se propõem a oferecer criando condições de igualdade no oferecimento das diretrizes metodológicas para o trabalho pedagógico com todas as áreas de conhecimento.
Afinal a licença para o exercício do magistério na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental é prerrogativa do pedagogo. Essa licença é o “caroço” da sua identidade profissional. Abrir mão disso significa por em risco a existência dos cursos de pedagogia. É necessário portanto o compromisso das faculdades de educação para com a elaboração de uma matriz curricular que não comprometa a excelência do ensino de arte que os artistas, arte-educadores e professores de arte brasileiros almejam e têm perseguido historicamente (Japiassu, 2002, p. 49-54).
Eu, por exemplo, sou bacharel e licenciado em Teatro, mestre em Artes Cênicasmas tenho lecionado na Uneb unicamente Metodologia do Ensino de Artes Visuais – embora Metodologia do ensino de Dança, Metodologia do ensino de Teatro e Musicalização Infantil devessem elencar os componentes curriculares do curso de pedagogia. Nenhuma dessas linguagens costuma ser trabalhada satisfatoriamente com os futuros professores.
O leitor certamente deve estar se perguntando as razões pelas quais um especialistaem Artes Cênicasconduz intervenções pedagógicas com a linguagem plástica em cursos de pedagogia. Respondo:
Em primeiro lugar, até o presente, só foi possível “encaixar” como componente curricular, nos cursos de pedagogia da Uneb/Campus X, onde atuo, uma única linguagem artística. Em parte, isso significa algum avanço – mas ainda resiste aquele entendimento de que o ensino de arte deve ser um mosaico condensado das diferentes formas de expressão estética. O fato é que a linguagem das Artes Visuais foi “eleita” no campus X para ser prioritariamente trabalhada com os futuros professores, em razão de a construção dos processos de representação do desenho e da escrita possuírem, em seus inícios, uma trajetória comum. Entendo que é preferível focalizar apenas uma das linguagens artísticas do que “borboletear” de modo superficial e insuficiente pelo vasto universo das artes;
Em segundo lugar, porque me sinto a vontade para conduzir intervenções pedagógicas com esta linguagem artística. Tenho procurado estar atento ao desenvolvimento da área de Artes Visuais no Brasil através de publicações especializadas (Barbosa, 1996; Deheizelin, 1998; Ferraz&Fusari, 1993a, 1993b; Moreira, 1984; Penna, 2001; Pillar, 1996a, 1996b, 1993). Além disso busco, freqüentemente, participar dos encontros (virtuais e presenciais) promovidos pela Federação de Arte-Educadores do Brasil/FAEB e dos eventos sob a curadoria da professora doutora Ana Mae Barbosa;
Por fim, pessoalmente, interessa-me muito o estudo da estética do grafismo infantil na perspectiva da psicologia sócio-histórica e de sua teoria histórico-cultural da atividade-CHAT (Azenha, 1995; De Camillis, 2002; Ferreira, 1998; Levin, 1998; Luria, 1994; Marín, 1985; Rocco, 1990; Vygotsky, 2001, 1998, 1996, 1982).
Ora, não deve ser difícil para o leitor perceber qual é o meu objetivo aqui: contribuir – ainda que modestamente – para a (in)formação das práticas pedagógicas com as Artes Visuais do(a) professor(a) que irá atuar na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental.
Busco aqui expor, de maneira objetiva, subsídios teórico-práticos para que o(a) leitor(a) tenha condições de compreender melhor e valorizar mais a expressão gráfico-plástica infantil, aproximando-o da problemática relacionada ao ensino das artes nas universidades e cursos de formação de professores.
Por uma estética do grafismo infantil
A estética do grafismo infantil deve referir o estudo das condições de produção e efeitos da criação gráfico-plástica infantil. Trata-se de um campo de estudo que busca conhecer as condições materiais de produção do grafismo infantil e entender o psiquismo da reação estética (apreciação dos resultados perceptíveis da atividade criadora da criança).
Muitos pedagogos, psicólogos e arte-educadores buscaram conhecer melhor e entender, sob diferentes enfoques, a estética do grafismo infantil. Entre eles podemos relacionar, por exemplo, Ana Angélica Albano Moreira, Analice Dutra Pillar, Arno Stern, Celestin Freinet, Esteban Levin, Florence de Méredieu, Georg Kerschensteiner, Jean Piaget, K. Bühler, Herbert Read, Liliane Lurçat, Luquet, Luria, Rolando Valdés Marin, Rhoda Kellogg, Rudolf Arnheim, Schaefer-Simmern, Sueli Ferreira, Victor Lowenfeld, W. Lambert Brittain e Lev Vygotsky.
Esses estudiosos do grafismo infantil, sem exceção, reconhecem haver determinadas fases, etapas ou períodos que são comuns aos sujeitos em processo de apropriação do desenho enquanto sistema de representação. E, de fato, desde o rabisco sem intencionalidade de representação até a representação gráfico-plástica propriamente dita podemos claramente identificar aspectos visuais invariantes no processo de apropriação do desenho como sistema semiótico de representação por parte do sujeito.
Evidentemente a criança precisa encontrar-se imersa em um ambiente no qual o lápis e o papel, por exemplo, sejam parte do “kit de ferramentas” culturalmente disponibilizado a ela – e em efetivo uso por parte dos membros mais experientes do seu meio social. Esses objetos e seus significados culturais (lápis, papel etc) convidam explicitamente o sujeito a usá-los de um modo muito preciso. O seu significado cultural, desse ponto de vista, só pode ser efetivamente apropriado através da participação guiada do sujeito no meio social no qual ele se encontra imerso. A participação guiada se dá basicamente de duas formas: (1) a partir da observação periférica dos modos de agir com esses objetos pelos membros mais experientes do meio cultural do sujeito e (2) mediante instruções explícitas ao sujeito de como ele deve fazer uso desses objetos (Rogoff et alli, 1993).
Adiante serão expostos alguns aspectos visuais invariantes que caracterizam as etapas percorridas por sujeitos aconchegados nas culturas letradas ocidentais – e em processo de participação guiada nessas sociedades – ao longo da sua “tomada de posse” do desenho enquanto complexo sistema de representação semiótica.
Não se tem notícia – ao menos até aqui – de nenhuma tentativa de unificar, nos estudos nacionais relativos à estética do grafismo infantil, os diferentes termos utilizados pelos pesquisadores da expressão gráfico-plástica da criança.
Geralmente, as publicações nacionais que tratam do grafismo infantil costumam tomar emprestada a nomenclatura formulada por um determinado autor – em razão dele ter sido eleito o esteio teórico para penetrar o vasto continente epistemológico dos saberes sobre a expressão psicográfica da criança (p. ex: Pillar, 1996a, 1996b; Moreira, 1995).
Quando não é assim, apresentam-se exposições de diferentes concepções do desenvolvimento gráfico-plástico infantil e suas terminologias específicas para caracterizar as sucessivas fases da figuração no desenho da criança (p. ex: Ferreira, 1998).
A nomenclatura que proponho neste artigo deve servir ao propósito de sintetizar – sem reducionismos – a complexidade dos pontos de vista enredados nas abordagens à estética do grafismo infantil. Não se trata de ecletismo, mas, de simplificação.
Busco concretizar aqui a necessária transposição didática do conhecimento já historicamente acumulado na área – que, a bem da verdade, é bom que se diga, encontra-se “vivo” e em processo contínuo de (co)laboração.
Evidentemente – é claro – a escolha de uma determinada nomenclatura revela muito do lugar de onde nos propomos olhar para o nosso objeto de estudo.
Meu pensamento é o de que nenhuma das terminologias disponíveis, no momento, me parecem suficientes para situar o leitor no âmbito dos saberes já historicamente constituídos sobre o grafismo e, ao mesmo tempo, fornecer-lhe acesso à perspectiva da psicologia sócio-histórica, e de sua teoria histórico-cultural da atividade-CHAT, no que tange a abordagem ao desenho como sistema cultural de representação semiótica.
Por exemplo, a “etapização” do grafismo infantil formulada por Vygotsky deixa “de fora” todo um período da aquisição do sistema de representação do desenho que me parece de fundamental importância ser levado ao conhecimento do(a) professor(a) da educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental. Somando-se a isso, o que se conhece até aqui, em língua portuguesa, a respeito da “etapização” da expressão psicográfica infantil formulada por Vygotsky resulta de traduções livres – a bem da verdade “traduções da tradução” do russo para o espanhol.
Até a elaboração deste artigo, não se tinha notícia do interesse de qualquer editora do país em adquirir os direitos de publicação em língua portuguesa do ensaio psicológico no qual Vygotsky aborda a problemática da construção do sistema semiótico do desenho – publicado em língua espanhola sob o título La Imaginación y el arte em la infância (Vygotsky, 1982).
Vygotsky, em verdade, não se propõe a investigar ali, de modo sistemático, o processo de apropriação do desenho como processo semiótico. O que ele faz naquele livro é: (1) sinalizar a matriz conceitual que deve ser utilizada na (co)laboração de conhecimentos a respeito do grafismo infantil numa perspectiva histórico-cultural e (2) destacar aspectos visuais invariantes do desenho da criança que caracterizam etapas muito nítidas do processo de desenvolvimento do grafismo, discutindo-os (Vygotsky, 1982).
Apenas no oitavo capítulo de La imaginación y el arte em la infância Vygotsky aborda o grafismo infantil. Seu interesse ali é o desenho enquanto expressão observável da imaginação criadora humana. O objetivo do capítulo é essencialmente o de demonstrar a tese da constituição social da imaginação enquanto função psicológica cultural redimensiona pelo pensamento verbal (Japiassu, 2001).
Sueli Ferreira (1998) esclarece isso muito bem: “a teoria de Vygotsky apresenta um avanço no modo de interpretação do desenho” porque “(a) a figuração reflete o conhecimento da criança; e (b) seu conhecimento, refletido no desenho, é o da sua [da criança] realidade conceituada, constituida pelo significado da palavra” (p. 40).
Então, a nomenclatura para as etapas do grafismo e a “etapização” da expressão psicográfica da criança que apresento a seguir é uma iniciativa pessoal que traduz o meu esforço docente no sentido de tentar re(a)presentar uma abordagem ao grafismo infantil que dê conta de estabelecer um elo entre os pressupostos teórico-metodológicos da teoria histórico-cultural da atividade-CHAT e o relativismo estético pós-moderno – no qual se fundamentam as diretrizes educacionais para a compreensão das produções artísticas na contemporaneidade.
Em resumo, o que faço a seguir é: (1) (re)significar o conceito de esquema apresentado por Viktor Lowenfeld e W. Lambert Brittain (Lowenfeld&Brittain, 1977);[2][2] (2) tomar emprestados alguns termos da nomenclatura utilizada e formulada originalmente por esses dois psicólogos (Lowenfeld, 1954); (3) buscar estabelecer um diálogo entre a nomenclatura que proponho e aquela originalmente utilizada por Vygotsky (Ferreira, 1998; Vygotsky, 1982); e (4) justificar a pertinência dos termos dos quais me sirvo para caracterizar as etapas do processo de apropriação do sistema do desenho por parte do sujeito.
Antes, porém, é meu dever apresentar ao leitor a nomenclatura e a “etapização” originalmente formuladas por Vygotsky.
A evolutiva do grafismo infantil segundo Vygotsky
Sabe-se que o primeiro estudo brasileiro que se referiu à nomenclatura utilizada por Vygotsky para caracterizar as etapas do processo de (co)laboração do desenho como sistema semiótico é o livro Imaginação e linguagem no desenho da criança da Profª. Drª. Sueli Ferreira, baseado em sua dissertação de mestrado defendida na Unicamp (1998).
Conheci a professora Suely quando ela fazia parte da diretoria da Federação de Arte-Educadores do Brasil-FAEB. Depois, sempre acabávamos nos “batendo” nos encontros da Associação de Arte-Educadores de São Paulo-AAESP ou em seminários da International Society for Cultural and Activity Research-ISCAT (Sociedade Internacional pela Atividade e Pesquisa Cultural).
Suely opta, em seu livro, por traduzir as quatro etapas às quais se refere Vygotsky respectivamente por: (1) Escalão de esquemas; (2) Escalão de formalismo e esquematismo; (3) Escalão da representação mais aproximada do real e (4) Escalão da representação propriamente dita (Idem, p. 29).
Pessoalmente prefiro denominar as etapas identificadas por Vygotsky de: (1) etapa simbólica – porque, como o próprio Vygotsky diz, “el pequeño artista es mucho más simbolista que naturalista” (Vygotsky, 1982, p. 96); (2) etapa simbólico-formalista – porque neste período já se começa a “sentirse la forma y la línea” (Idem, p. 97); (3) etapa formalista veraz (ou formalista-verossímil) – em que passa a existir uma “representación veraz” (Idem, p. 97) dos objetos desenhados e (4) etapa formalista plástica (ou formalista propriamente dita) – porque neste período já se consegue identificar “la imagem plástica” (Idem, 99).
Daqui em diante uso os termos apresentados acima para designar as etapas que caracterizam cada um dos períodos escalonados por Vygotsky. No entanto vale a pena lembrar – uma vez mais – que Vygotsky efetua um recorte no desenvolvimento cultural do grafismo infantil desprezando a “pré-história” do desenho.
A fase dos rabiscos, garatujas e “da expressão amorfa de elementos gráficos isolados” (Idem, p. 94) não interessa aos objetivos que ele possui em seu ensaio psicológico. De fato o desenho – enquanto sistema semiótico – só existe efetivamente após o período dos rabiscos.
No período dos rabiscos certamente não se pode falar de atividade representacional stricto sensu por parte da criança. A intenção de Vygotsky no livro é demonstrar as interrelações entre imaginação criadora e criação artística infantil conforme elas se apresentam e podem ser observadas ao longo particularmente de três formas de expressão estética na escolarização (Literatura, Teatro e Artes Visuais/Desenho).
Vygotsky está a discutir ali a constituição social de uma importante função psíquica cultural: a imaginação criadora. Seu objeto de estudo não é o grafismo infantil em si mas sobretudo as relações entre a imaginação criadora e a criação artística em geral da criança (Japiassu, 2001).
O desenvolvimento gráfico-plástico é abordado por Vygotsky muito rapidamente no livro. E só se justifica por ser útil ao seu empenho em demonstrar o modo como a imaginação criadora se amplia e adquire um funcionamento qualitativamente superior ao longo do desenvolvimento cultural do sujeito.
Verifica-se que a argumentação elaborada por Vygotsky, no capítulo oitavo do livro, em que aborda o grafismo infantil, é desenvolvida buscando dialogar com os resultados de pesquisas de estudiosos da expressão psicográfica da criança de sua época (Barnés, Bakushinskii, Büller, Kerschensteiner, Labunskaya&Pestel, Levinstein, Luquens, Pospiélova, Ricci, Sakúlina e Selly). O ensaio traz inclusive um pequeno anexo com a reprodução de aproximadamente duas dezenas de ilustrações coletadas por estes pesquisadores – às quais Vygotsky recorre para demonstrar a pertinência de sua “etapização”.
Os aspectos invariantes do grafismo infantil são demonstrados por ele através de desenhos de variados objetos, figuras humanas e animais elaborados por crianças de condições sociais distintas e de diferentes idades.
Vejamos abaixo a caracterização dos períodos que ele identifica ao longo do desenvolvimento da expressão gráfico-plástica infantil – e o que os distingüe um do outro:
(1) Etapa simbólica (Escalão de esquemas) – É a fase dos conhecidos bonecos “cabeça-pés” que representam, de modo resumido, a figura humana. Trata-se da etapa na qual a visão do sujeito encontra-se totalmente subordinada ao seu aparato dinâmico-táctil. Esta etapa é descrita por Vygotsky como o momento em que as crianças desenham os objetos “de memória” sem aparente preocupação com fidelidade à coisa representada. Ou seja: os sujeitos desenham o que já sabem sobre os objetos que buscam representar procurando destacar-lhes apenas os traços que julgam mais importantes. É o período em que a criança “representa de forma simbólica objetos muitos distantes de seu aspecto verdadeiro e real” (Vygotsky, 1982, p.94). Vygotsky explica-nos que a arbitrariedade e a licença do desenho infantil nesta etapa é grande porque “o pequeno artista é muito mais simbolista que naturalista” (Destaque meu)(Ibidem, p. 96). Então, nas representações da pessoa humana, de maneira geral, nesta etapa, constata-se que o sujeito se limita a traçar apenas duas ou três partes do corpo fazendo com que os seus desenhos sejam “mais propriamente enumerações, ou melhor dizendo, relatos gráficos abreviados sobre o objeto que querem representar” (Ibid., p. 96). Mas é o período também dos chamados “desenhos-radiografia” (desenhos em que as crianças traçam pessoas vestidas mostrando suas pernas sobre a roupa).
(2) Etapa simbólico-formalista (Escalão de formalismo e esquematismo) – É a etapa na qual já se percebe maior elaboração dos traços e formas do grafismo infantil. A visão e o aparato dinâmico-tactil do sujeito lutam para subjugarem um ao outro. É o período em que a criança começa a sentir necessidade de não se limitar apenas à enumeração dos aspectos concretos do objeto que representa, buscando estabelecer maior número de relações entre o todo representado e suas partes. Há uma espécie de mescla de aspectos formalistas e simbolistas na representação plástica nesta etapa. Constata-se que os desenhos permanecem ainda simbólicos mas, por outro lado, já se pode identificar neles os embriões de uma representação mais próxima da realidade. Trata-se de um período que não se distingue facilmente da fase precedente e que se caracteriza por uma quantidade bem maior de detalhes na atividade figurativa da criança. As figuras representadas assemelham-se bem mais ao aspecto que de fato possuem a olho nu. Há nítido esforço do sujeito em tornar suas representações mais verossímeis. Porém sobrevivem ainda, nesta etapa, os “desenhos-radiografias.”
(3) Etapa formalista veraz (Escalão da representação mais aproximada do real) – É o período em que o simbolismo que se encontrava presente nas representações típicas das duas etapas anteriores definitivamente fenece. A visão passa a subordinar totalmente o aparato dinâmico-táctil do sujeito. Nesta fase, as representações gráficas são fiéis ao aspecto observável dos objetos representados mas a criança ainda não faz uso das técnicas projetivas. Nos desenhos deste período as convenções realistas – que enfatizam a proporcionalidade e o tamanho dos objetos – são violadas com freqüência e, em razão disso, desestabiliza-se toda a plasticidade da figuração.
(4) Etapa formalista plástica (Escalão da representação propriamente dita) – Nesta etapa a plasticidade da figuração é enriquecida e ampliada porque a coordenação viso-motora do sujeito já lhe permite o uso vitorioso das técnicas projetivas e das convenções realistas. Observa-se uma nítida passagem a um novo modo de desenhar. O sujeito não mais se satisfaz com a expressão gráfico-plástica pura e simplesmente: ele busca adquirir novos hábitos representacionais, diferentes técnicas gráficas e conhecimentos artísticos profissionais. O grafismo deixa de ser uma atividade com fim em si mesma e converte-se em trabalho criador.
A estética do grafismo infantil
Uma vez apresentada a “etapização” do grafismo infantil segundo Vygotsky, passo a expor um panorama dos períodos que caracterizam o desenvolvimento do desenho como sistema de representação, do modo como julgo adequado à uma intervenção pedagógica tendo em vista a formação de professores para atuarem na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental:
(1) O rabisco descontrolado ou garatuja descontrolada – O rabisco descontrolado ou garatuja descontrolada caracteriza o período de desenvolvimento da coordenação motora fina necessária à manipulação objetal do marcador (lápis, caneta, pincel etc). As marcas gráfico-plásticas produzidas pelo sujeito sobre o suporte (p. ex: folha de papel, parede, chão) são muito mais o resultado do “exercício” da coordenação de ações motoras (praxias) absolutamente indispensáveis para o uso adequado de variadas ferramentas culturais. A produção gráfico-plástica da criança, nesta etapa, possui uma natureza muito mais expressiva do que semiótica ou simbólica (Figura 1). Ou seja: são as “descargas” motoras incontroladas que geram os rabiscos e “zigue-zagues” no suporte. Nesta fase, é apenas o acaso que leva o sujeito ao traçado, por exemplo, das formas circulares. Traçar um círculo ainda é uma tarefa de difícil solução para a criança neste momento. O destrismo (uso preferencial da mão direita) e o sinestrismo (uso preferencial da mão esquerda) ainda não podem ser claramente identificados. Verifica-se que as marcas geralmente ultrapassam os limites do suporte fornecido ao sujeito (o desenho extrapola as bordas da folha de papel). Observa-se também, em geral, que as marcas inscritas pelo sujeito em variados suportes, nesta fase, são “registradas” ali de tal modo que sugerem ter sido empregada ou muita “força” no traçado dos rabiscos ou, ao contrário, ter havido pouquíssima “pressão” com o marcador sobre o suporte. Costuma-se recomendar para uso das crianças, nesta etapa, marcadores resistentes tais como lápis de carpinteiro, giz de cera, canetas hidrográficas e/ou pincéis grandes e grossos.
Figura 1
Garatuja descontrolada
(2) O rabisco controlado ou garatuja controlada – O rabisco controlado ou garatuja controlada caracteriza maior diferenciação entre as marcas produzidas no suporte por um mesmo sujeito. Constata-se que o “zigue-zague” incontrolado da etapa inicial cede lugar às formas circulares. Isto é: os traçados circulares – anteriormente frutos do acaso – agora são claramente intencionais. Nesta etapa, as formas circulares se repetem freqüentemente e vão sendo aperfeiçoadas com base nas praxias já adquiridas pela criança. Observa-se, neste momento, dois fenômenos muito curiosos: (1) a irradiação ou desenho de formas circulares ciliadas (Figura 3); e (2) uma espécie de proliferação de “círculos” justapostos de diversos tamanhos – como se houvesse a “produção em série” de muitas “bolinhas” (Figura 2). A criança demonstra com nitidez estar em um processo acelerado de aperfeiçoamento do traçado das formas circulares. Além disso, revela claramente já conseguir manter suas marcas dentro dos limites do suporte que lhe foi fornecido. Em outras palavras: o sujeito nos informa ter adquirido, nesta fase, um maior controle sobre os movimentos da mão. Neste período, as linhas “retas” (traços longos) se multiplicam e são aprimoradas pelo sujeito. Surgem os primeiros atos gráficos – a tentativa de representar deliberadamente objetos através do grafismo (Levin, 1998, p. 121). Nos primeiros atos gráficos tudo ocorre como se a intenção representacional primeira do sujeito fosse “traída” ao longo da execução das marcas – agora simbólicas – impressas no suporte. Isso acontece pela dificuldade que o sujeito ainda experimenta em coordenar as ações motoras complexas solicitadas no processo de representação gráfico-plástica dos objetos. Paralelamente, ao associar as marcas produzidas sobre o suporte a determinados objetos da realidade concreta, a criança começa a “dar nome” ao seu desenho (a dizer quais objetos seu desenho busca representar).
Figura 2
Garatuja controlada
Figura 3
Irradiação
(3) A representação gráfico-plástica pré-esquemática – A representação gráfico-plástica “pré-esquemática” equivale ao período denominado por Vygotsky de etapa simbólica (escalão de esquematismo) e caracteriza a fase em que não se observam formas gráficas invariantes para referir um determinado objeto (esquemas). Sol, nuvens e pássaros, por exemplo, não são representados do mesmo jeito ou por um único esquema gráfico (forma invariante) nos sucessivos e diferentes desenhos do sujeito.[3][3]
Verifica-se, nesta etapa, o fenômeno da justaposição (Figura 4), isto é, a colocação, lado a lado, de elementos que compõem o objeto representado pela criança sem, aparentemente, existir qualquer relação lógica entre eles. Na representação da figura humana, por exemplo, braços, cabelos, olhos e boca são desenhados ao lado ou “fora” do traçado do corpo. O grafismo até então ato impulsivo converte-se definitivamente em ato gráfico (Levin, 1998). O desenho, neste período, resulta de uma ação intencional do sujeito. Isto é: o desenho persegue claramente o objetivo de representar simbolicamente um determinado objeto. As marcas feitas pela criança sobre o suporte começam a ser planejadas com antecedência em sua mente – vale dizer, no plano intramental. Verifica-se que, nesta etapa, as praxias da criança já se encontram bastante desenvolvidas e consolidadas permitindo-lhe inclusive miniaturizar as marcas produzidas sobre o suporte. É a partir desta etapa que se pode iniciar o aprofundamento de estudos da expressão gráfico-plástica infantil ou expressão psicográfica do sujeito (Marin, 1985; Vygotsky, 1982). Através da análise do processo de produção gráfico-plástica do sujeito pode-se examinar, por exemplo, o modo como as crianças representam a realidade social e consegue-se até identificar estágios da construção pessoal da criança concernente à expressão político-ideológica de determinados temas em seus desenhos. Tais estudos costumam focalizar basicamente três aspectos da atividade representacional gráfico-plástica: (1) sua dimensão psicomotora; (2) sua dimensão estético-conceitual, ou seja, os princípios gráficos utilizados na construção dos objetos representados; (3) a dimensão gráfico-ideológica, quer dizer, o significado e sentido das comunicações através do grafismo (Marin, 1985, p.27).
Figura 4
Justaposição
(4) A representação gráfico-plástica esquemática – Este período equivale à etapa simbólico-formalista (escalão de formalismo e esquematismo) de Vygotsky. Nesta fase, observa-se a repetição de esquemas gráficos (formas gráfico-plásticas invariantes ou esterotipia) na representação de determinados objetos. A criança “descobre” uma solução gráfica para o desenho de alguns objetos (p. ex: o boneco “palito” para representar o ser humano; o telhado invariavelmente com chaminé para representar a cobertura das casas; a letra “v” para os pássaros etc).
Determinados esquemas gráficos inclusive podem ser compartilhados por mais de uma criança revelando a existência de uma autêntica cultura gráfica infantil (Figura 6). Neste caso, os sujeitos aprendem com os seus pares e com os membros mais experientes dessa “cultura gráfica infantil” muitos dos esquemas freqüentemente observáveis em seu grafismo. Mas, atenção: só se pode afirmar existirem esquemas gráficos comparando-se sucessivos desenhos de um mesmo sujeito ou os de determinado grupo de crianças.
Evidentemente não se deve subestimar o poder auto-reprodutivo dessa cultura de esquemas nem tampouco a velocidade do seu movimento de expansão e hegemonia no mundo globalizado. A disseminação de esquemas gráficos nas sociedades letradas pós-modernas ocidentais pode apresentar-se, à primeira vista, como resultante de uma tendência universal ou “natural” dos seres humanos a um tipo muito preciso de prática gráfica, levando-nos a crer que a construção do sistema de representação do desenho pela criança é algo espontâneo, “inato” e “igual” para todos os sujeitos. Então, vale a pena lembrar que os esquemas são construtos histórico-culturais, ou seja, são artefatos “não-naturais”.
O psicólogo Karl Ratner explica muito bem esse fenômeno da “naturalização” de construtos histórico-culturais quando afirma que “a igualdade psicológica só existe na medida em que tenha a sustentação de semelhanças na vida social concreta. A universalidade sócio-psicológica não é um dado: ela tem que ser construída” (Destaques meus)(Ratner, 1995, p.119).
Ainda neste período verifica-se também o curioso fenômeno da transparência ou raio-x (o “desenho-radiográfico” ao qual se refere Vygotsky). Isto é: a revelação de objetos que não seriam visíveis a olho nu por trás de uma superfície opaca no desenho (p. ex: ao desenhar a fachada de uma casa a criança mostra os móveis e objetos que supostamente estariam em seu interior). Além da transparência (Figura 5) pode ocorrer ainda, nesta fase, um outro intrigante fenômeno: o rebatimento. O rebatimento é uma modalidade de representação do espaço tridimensional em que as indicações de profundidade e perspectiva encontram-se desenhadas num único plano (p. ex: ao desenhar uma estrada entre árvores a criança representa as árvores como se estivessem “deitadas” ao lado do caminho).
Neste período “esquemático” a lateralidade axial da criança é finalmente definida (seu “lado direito” e seu “lado esquerdo” se tornam evidentes) porque observa-se, agora, que a dominância lateral (destrismo ou sinestrismo) organiza o ato motor e as praxias (coordenação de ações físicas) do sujeito. Estabiliza-se enfim a prevalência manual da criança (recorrência de uso da mão esquerda ou direita).
Figura 5
Rebatimento (à esquerda) e transparência (à direita)
Figura 6
Esquema gráfico para a representação de mãos e pés
(5) A representação gráfico-plástica pós-esquemática – Esse período equivale às etapas formalista veraz ou formalista verossímil e formalista plástica ou plástica propriamente dita de Vygotsky (escalão de representação mais aproximada do real e escalão da representação propriamente dita). A superação dos esquemas, comuns na fase anterior, só pode ocorrer se – e quando – o sujeito for submetido a uma intervenção pedagógica que o desafie a experimentar novas possibilidades para o tratamento gráfico-plástico de suas representações através do desenho. Geralmente constata-se uma tendência dos sujeitos em reproduzirem as convenções realistas-naturalistas na representação dos objetos neste período (modalidade dominante ou hegemônica de desenho). Pode surgir o interesse, nesta etapa, em conhecer e dominar as técnicas projetivas e euclidianas ou “clássicas” da representação gráfico-plástica do espaço.
As técnicas projetivas consistem em convenções que nos permitem visualmente diferenciar e coordenar nosso ponto de vista em relação aos objetos representados graficamente. Através delas pode-se “projetar” um objeto no espaço fornecendo-se a noção de primeiro e segundo planos além da impressão de profundidade (desenho em perspectiva).
Já as técnicas euclidianas são aquelas convenções que permitem organizar visualmente o desenho de modo tal que os objetos possam ser traçados considerando-se sua posição, distância e proporção em relação ao conjunto de referências espaciais que organizam e estabilizam a realidade graficamente representada.
As convenções projetivas e euclidianas são técnicas em geral muito utilizadas para criarem um efeito de “ilusionismo” e de “fidelidade” da coisa representada. O senso comum, por exemplo, costuma denominar por “desenho bem feito” as representações gráfico-plásticas que recorrem às técnicas projetivas e euclidianas.
Verifica-se também, neste período, a incorporação de um intrigante procedimento por parte dos sujeitos: o uso da linha de base. A linha de base é a definição – quase sempre explícita – da superfície geral na qual se apóia a “cena” mostrada pelo desenho (p. ex: ao representar uma casa, seus habitantes e arredores, o sujeito traça uma linha definindo a base sobre a qual serão apoiados os objetos e figuras do desenho).
Recursos pedagógicos para a coleta sistemática do grafismo infantil
Acredito ter exposto até aqui uma proposta terminológica adequada à compreensão histórico-cultural da “etapização” do grafismo infantil, relacionando-a à nomenclatura originalmente utilizada por Vygotsky. O leitor deve ter percebido que a nomenclatura apresentada busca atender às diretrizes formuladas pela teoria histórico-cultural da atividade-CHAT numa clara abordagem à expressão psicográfica da criança na perspectiva da psicologia sócio-histórica.
Afinal cabe lembrar que o processo de apropriação e (co)laboração do desenho como sistema de representação semiótico pressupõe a intervenção deliberada do(a) professor(a) porque “não se trata de algo massificado, natural, espontâneo, ou seja, do surgimento por si mesmo da criação artística infantil, mas que esta criação depende da habilidade, de hábitos estéticos determinados, de dispor de materiais etc” (Vygotsky, 1982, p. 102). Além disso “no fomento da criação artística infantil, incluindo a representativa, será necessário estar atento ao princípio de liberdade, como premissa indispensável para toda atividade criadora” (Ibidem, p. 102).
Com o que se disse acima coloca-se toda a complexidade da problemática subjacente ao gerenciamento das intervenções pedagógicas no âmbito do ensino das artes na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental: se por um lado é importante garantir a inventividade e liberdade de criação da criança, por outro, é necessário também assegurar-lhe a posse dos materiais, recursos e técnicas úteis ao pleno desenvolvimento de sua atividade criadora.
No caso específico do processo de apropriação e (co)laboração do grafismo como sistema semiótico, fazer com que o sujeito venha a superar a fase esquemática solicita algum compromisso do(a) professor(a) para com a elaboração de uma ambiente de aprendizado rico, estimulante e desafiador.
Neste sentido, o paradigma metodológico triangular (Barbosa, 1996) pode ser um grande aliado do(a) professor(a) na melhoria da qualidade de suas intervenções pedagógicas com as Artes Visuais na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental (Deheizelin, 1998).
A “etapização” do grafismo infantil exposta aqui fornece um passeio rápido pelos principais períodos que caracterizam o desenvolvimento psicográfico da criança. A nomenclatura que refere cada uma das fases descritas me parece a mais apropriada para lidar com o relativismo estético pós-moderno na contemporaneidade.
Evidentemente a identificação e delimitação de períodos comuns ao processo de apropriação e (co)laboração do desenho como sistema de representação, por parte do(s) sujeito(s), não implica necessariamente compreender o “etapismo” ou “etapização” como “uma referência naturalizada da passagem do sujeito por um percurso universal abstrato” (Oliveira e outros, 2002, p. 44).
Examinando-se o ensaio psicológico de Vygotsky vê-se que ele recorre a desenhos de crianças com diferentes idades (7 a10 anos) para discutir os típicos “desenhos-radiográficos” da etapa simbólico-formalista (Vygotsky, 1982, p. 95). E mais: que algumas legendas dos desenhos chegam a explicitar inclusive o capital cultural de seus autores: “não desenham em casa nem possuem livros com ilustrações”; “desenha em casa e possui livros com ilustrações” (Idem, p. 112 – 117).
A incorporação desse tipo de legenda aos desenhos demonstra haver uma clara tentativa de sinalizar a compreensão do “etapismo” como “uma referência historicizada da passagem por um percurso culturalmente contextualizado” (Oliveira e outros, 2002, p. 44).
Embora Vygotsky não explicite a adoção de um sistema “rizomático” para interrelacionar as diferentes dimensões (cognitiva, afetiva, psicomotora, histórica, social etc) enredadas na atividade do desenho, parece que ele advoga ali uma análise de dados menos “estruturalista” e menos “evolucionista” dos processos desenvolvimentais.
Um indício desse tipo de análise – “rizomática” ou “pós-estruturalista” – é a importância conferida por ele à articulação de diferentes níveis genéticos (filogenético, macrogenético e ontogenético) em sua abordagem à constituição social do psiquismo humano – se bem que não se pode negar que Vygotsky tece, muitas vezes, uma argumentação ambígua em torno da idéia de desenvolvimento (Vygotsky&Luria, 1996).
Mas o desenvolvimento, na perspectiva histórico-cultural, deve ser pensado como o conjunto dos processos de transformação que ocorrem ao longo da vida do sujeito – e que se relacionam “tanto a fenômenos orgânicos, maturacionais, que permitem asserções universalizantes sobre certos aspectos do desenvolvimento (especialmente nas menores idades), como a processos enraizados historicamente, que requerem uma contextualização histórico-cultural para serem adequadamente compreendidos” (Oliveira e outros, 2002, p. 43). Desse ponto de vista, a abordagem desenvolvimental ou evolutiva diverge muito do modo “desenvolvimentista” ou “evolucionista” de aproximação de um objeto.
Se o(a) professor(a) estiver atento às produções gráfico-plásticas dos seus alunos ele(a) poderá acompanhar os ritmos pessoais de cada criança e identificar eventuais fases comuns à toda sua turma de educandos. Mas, não basta entender os mecanismos psicomotores, cognitivos, afetivos e histórico-culturais enredados no grafismo infantil. É preciso oferecer um ambiente de aprendizado desafiador e estimulante aos alunos que busque: (1) valorizar sua expressão psicográfica; e (2) promover avanços nos processos singulares de apropriação e (co)laboração do sistema de representação do desenho.
Adiante passo a expor alguns instrumentos pedagógicos úteis nesse sentido. Porém, inicialmente, é necessário fazer uma distinção muito grosseira entre desenho e pintura. Embora rude, a diferenciação será útil para esclarecer a especificidade estética dessas duas modalidades de expressão gráfico-plástica bidimensional. Evidentemente o conceito de desenho pode ser ampliado – e as fronteiras entre desenho, pintura e escultura se tornarem pouco nítidas. Não cabe aqui uma discussão conceitual a esse respeito.
No desenho, pode-se dizer, o sujeito deixará sempre o suporte – ou parte dele (papel, tela etc) – à mostra do observador. Ou seja: as marcas impressas em um determinado suporte não ocupam nem preenchem toda a extensão de sua superfície. Já na pintura, ao contrário, toda a superfície do suporte é recoberta por tratamento plástico. Atenção: deste ponto de vista desenho colorido ou colorizado não é pintura!
Tanto o desenho como a pintura são representações gráfico-plásticas bidimensionais, isto é, buscam correlacionar duas dimensões do objeto representado: a altura e a largura das formas. Embora nos desenhos e pinturas as formas representadas simulem possuir expessura e volume, elas – a representação propriamente dita dessas formas – não são tridimensionais. Falta-lhes a terceira dimensão, o volume. Desenhar e pintar em perspectiva uma caixa, por exemplo, difere muito de representá-la, moldá-la ou esculpi-la em três dimensões. Todavia na escultura a altura, largura e volume das formas são dados palpáveis, concretos. A escultura é uma representação gráfico-plástica tridimensional.
Os instrumentos pedagógicos de coleta do grafismo relacionados a seguir aplicam-se indistintamente às representações bi e tridimensionais das crianças, isto é, aos seus desenhos e pinturas (representações plásticas bidimensionais) e esculturas (representações plásticas tridimensionais).
(1) O desenho espontâneo – [Leia-se pintura espontânea, escultura espontânea]. É o desenho onde não existe uma proposta temática por parte do(a) professor(a). A criança busca desenhar o que quer e o que lhe é significativo em um dado momento.
(2) O desenho da história – [Leia-se pintura da história, escultura da história]. O(a) professor(a) lê, conta ou apresenta através de vídeo, teatro de sombras ou de fantoches, por exemplo, uma história para as crianças. Em seguida, propõe que os alunos desenhem “de cabeça” ou “de memória” (sem uso de modelos para cópia) a história que lhes foi apresentada.
(3) A história do desenho – [Leia-se história da pintura, história da escultura]. O(a) professor(a), após a atividade de desenho espontâneo do aluno, solicita-lhe que este fale e conte a história do seu desenho.
(4) O desenho de vivência – [Leia-se pintura de vivência, escultura de vivência]. O(a) professor(a), após uma determinada vivência do grupo (excursão ao zoológico, ida ao teatro, por exemplo) solicita aos alunos o registro gráfico-plástico daquela experiência.
(5) O desenho de observação – [Leia-se pintura de observação, escultura de observação]. O(a) professor(a) apresenta um determinado objeto ou imagem à turma e, em seguida, solicita aos escolares que desenhem o que lhes é colocado à mostra (cópia do modelo).
(6) O desenho a partir de interferência “sobre” o suporte – [Leia-se pintura a partir de interferência sobre o suporte, escultura a partir de interferência sobre o material a ser moldado]. O(a) professor(a) apresenta ao grupo suportes com uma determinada interferência gráfico-plastica (contendo parte de uma imagem recortada de revista, por exemplo) e, a seguir, solicita aos escolares que completem, desenhando, o fragmento de ilustração colada sobre o suporte.
(7) O desenho a partir de interferência “no” suporte – [Leia-se pintura a partir de interferência no suporte]. O(a) professor(a) oferece à turma suportes em formatos variados (suporte em forma de círculo, de estrela etc) e, a seguir, pede aos escolares que façam um desenho espontâneo sobre eles.
(8) O desenho a partir da “reunião de partes” – [Leia-se pintura a partir da “reunião de partes”, escultura a partir da “reunião de partes”]. O(a) professor(a) oferece aos alunos envelopes grandes contendo variadas formas recortadas em cores e tamanhos diversos (não apenas formas geométricas). A seguir, pede aos escolares que elaborem com elas uma composição gráfico-plástica utilizando as formas disponibilizadas nos envelopes sobre um determinado suporte (pode ser desenho espontâneo, desenho de vivência, da história etc). Feita a composição, o(a) professor(a) pode solicitar ao aluno que, sobre um novo suporte, desenhe, pinte ou esculpa a composição elaborada com as “partes” (desenho de observação – neste caso, do próprio desenho do sujeito). Observação: as composições com as formas podem ser feitas solitariamente ou em grupo (duplas, trios etc). Os desenhos de observação da composição no entanto precisam ser individuais. Pode-se propor a composição de formas no computador a partir de softwares gráficos (o programa paint, por exemplo). Mas o desenho de observação neste caso deve ser necessariamente feito do modo tradicional (manualmente).
(9) O diálogo gráfico – [Leia-se diálogo plástico no caso de se solicitar pintura ou escultura ao aluno]. O(a) professor(a) propõe que uma dupla de alunos, por exemplo, faça um desenho [pintura ou escultura] em conjunto, de maneira que os escolares se revezem, em turnos, na produção gráfico-plástica conjunta.
(10) O desenho de memória – [Leia-se pintura de memória, escultura de memória]. O(a) professor(a) propõe um “jogo” no qual ele(a), professor(a), irá pedir aos escolares que desenhem “de memória” determinados objetos ou cenas que serão revelados a todo o grupo (uma espécie de “ditado” gráfico-plástico).
Acredito que as dez propostas para a atividade gráfico-plástica relacionadas e descritas acima são suficientes para animar uma série de intervenções pedagógicas do(a) professor(a) na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental. Não se quer dizer com isso que as propostas para atividade com as Artes Visuais na escolarização devam se restringir apenas a elas. Mas, sem dúvida, as propostas apresentadas aqui constituem um importante conjunto de ferramentas pedagógicas úteis na coleta da expressão psicográfica da criança. Costuma-se porém adotar alguns procedimentos para a catalogação e o arquivo sistemático da produção gráfico-plástica do aluno:
(1) A primeira coisa a fazer é confeccionar portfólios (envelopes grandes para a guarda dos desenhos e pinturas de cada aluno). Costuma-se propor aos próprios alunos a confecção dos seus respectivos portfólios. Embora eles possam ser adquiridos já prontos em papelarias pode ser mais barato confeccioná-los, por exemplo, a partir da junção de duas folhas de cartolina unidas por fita adesiva ao longo de três das suas extremidades. Em apenas uma das folhas de cartolina – ou em cada uma delas – poderá ter sido solicitado, anteriormente, um desenho ou pintura da criança. As folhas devem ser unidas com as faces nas quais se encontram os desenhos ou pinturas voltadas para o exterior, claro. Toda a produção gráfico-plástica do aluno ao longo do ano deve ser arquivada em seu portfolio pessoal. Isso permitirá o acompanhamento longitudinal dos avanços, recuos e aspectos gráficos da expressão psicográfica do pré-escolar ou escolar.
(2) Além do portfolio alguns hábitos precisam ser rotinizados por parte do(a) professor(a). O mais importante deles é, sempre, providenciar a identificação dos autores dos desenhos na face do suporte que não foi utilizada pelo sujeito (“atrás” do desenho). A identificação deve revelar o nome do aluno, sua idade, a data da confecção do desenho e o tipo de atividade que lhe foi proposta. Exemplo: Bruna, 5 anos, 08 de maio de 2004, desenho espontâneo. Isso facilitará a avaliação por parte do(a) professor(a) da trajetória única, pessoal e insubstituível da criança em seus movimentos de apropriação e (co)laboração do desenho como sistema semiótico. Pais e pesquisadores do grafismo infantil no entanto podem ser mais precisos na identificação do tempo de vida da criança. Neste caso, costuma-se revelar não apenas quantos anos a criança tem mas, também, informar a quantidade de meses e dias de existência do sujeito. Exemplo: Luis, 1;6 (30). Neste tipo de notação o pesquisador, professor(a) ou pai registra a quantidade de anos (um), de meses (seis) e dias (trinta) que o sujeito tem de vida. Observe que após o nome da criança coloca-se uma vírgula, para logo depois ser informado o número que corresponde à quantidade de anos que ela possui. Em seguida, separado por um ponto e vírgula, informa-se a quantidade de meses de vida do sujeito. Por fim, entre parênteses, registra-se com precisão os dias de vida da criança (Piaget, 1978).
Considerações finais
Espero aqui ter compartilhado com você, leitor, alguns conhecimentos teórico-práticos que me parecem indispensáveis à implementação de intervenções pedagógicas tendo em vista a apropriação e a (co)laboração do desenho enquanto sistema de representação por parte do educando.
A discussão sobre a quem cabe a responsabilidade do ensino das artes na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental continua. Na introdução ao artigo eu já me posicionei claramente em relação à essa problemática. E minha opinião – já disse – é a de que esta é uma prerrogativa do pedagogo, ou seja, do profissional da educação – (in)formado e licenciado para exercer o magistério nestes níveis iniciais da escolarização.
Mas isso não significa excluir definitivamente a possibilidade de o licenciado para o ensino das diferentes linguagens artísticas (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), do artista e do arte-educador autodidata atuarem junto aos profissionais da educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental (recentemente, por exemplo, a Prefeitura de São Paulo fez concurso público para o ensino de artes nos CEUs abrindo inscrições para licenciados em arte, artistas e arte-educadores autodidatas). Mas – é claro – o professor de arte, o arte-educador e o artista autodidata, neste caso, necessitam obter (in)formações adequadas para gerenciarem competentemente suas intervenções pedagógicas nestes níveis da escolarização.
A principal questão continua sendo a da (re)conceptualização dos processos (in)formativos dos profissionais da educação na perspectiva da melhoria da qualidade da educação que é oferecida no país.
Penso que, paralelamente à tradicional ênfase no saber (conhecimento), as universidades e agências (in)formadoras do(a) professor(a) devem cuidar também para que o saber-fazer (transposição didática do conhecimento) e o ser (militância pedagógica e exercício consciente da profissão docente) recebam a mesma atenção por parte dos propositores das matrizes curriculares dos cursos para a formação de professores.
Mas não se pode jamais esquecer que “a escola é sempre construção dos sujeitos sociais, que se apropriam de determinado modo da escola e das determinações sociais e estatais a partir das suas histórias particulares, e de suas experiências” (Sawaya, 2002, p. 205). Então não sejamos ingênuos: a melhoria da qualidade da educação nacional requer a melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro como um todo!
Mas daí a cruzar os braços em sala de aula e esperar a coisa ser resolvida ao nível das macropolíticas educacionais é, no mínimo, no meu entendimento, falta de compromisso para com os interesses das classes sociais mais débeis, fragilizadas e alijadas do mundo do conhecimento. Equivaleria aliená-las do direito universal à uma escolarização digna.
Hoje, estou convencido de que são sobretudo as micropolíticas na esfera do cotidiano profissional do(a) professor(a) (de sua prática docente em sala de aula) que fundamentalmente (re)dimensionam o poder revolucionário da educação.
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Para citar este articopie as linhas abaixo:
RICARDO OTTONI VAZ JAPIASSU. DO DESENHO DE PALAVRAS À PALAVRA DO DESENHO [online]
Disponível na internet via WWW URL:
[1][1] Doutor em Educação e mestre em Artes pela USP; licenciado e bacharel em Teatro pela UFBa. End. para correspondência: Rua Enseada do Cavaco, 66 – Barra Grande, Vera Cruz, Cep. 44 470000, Bahia. Fone: (71) 636 8627.
y VYGOTSKY, L. S. (1982). La imaginación y el arte em la infância – ensayo psicológico. Madrid: Akal, p. 106.
[2][2] O uso da palavra esquema por Lowenfeld&Brittain difere do uso que Vygotsky faz deste vocábulo em sua proposta terminológica para a caracterização das etapas do grafismo infantil. Adoto o conceito de esquema de Lowenfeld&Brittain como ponto de partida para propor a nomenclatura que apresento aqui.
[3][3] O conceito referido por esquema (esquema gráfico, forma gráfica invariante), na nomenclatura de Lowenfeld&Brittain, difere do sentido desta palavra na expressão escalão de esquemas utilizada por Vygotsky. O escalão de esquemas vygotskiano equivale ao que Lowenfeld&Brittain chamam de etapa pré-esquemática. Por isso optei por utilizar a expressão etapa simbólica na tradução da nomenclatura formulada por Vygotsky.
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