O fracasso escolar é, sem dúvida, um dos mais graves problemas com o qual a realidade educacional brasileira vem convivendo há muitos anos. Sabe-se que tal ocorrência se evidencia praticamente em todos os níveis de ensino do País. Todavia, incide com maior frequência nos primeiros anos da escolarização.
Estatísticas atestam que há várias décadas a taxa de perda da primeira para a segunda série do primeiro grau manteve-se alta e inalterada.
Dentre os inúmeros fatores correlacionados com o fracasso escolar, aparecem tanto os extra-escolares como os intra-escolares. Os extra-escolares dizem respeito às más condições de vida e subsistência de grande parte da população escolar brasileira.
Assim, as péssimas condições econômicas, responsáveis, dentre outros fatores, pela fome e desnutrição; a falta de moradias adequadas e de saneamento básico, enfim, todo o conjunto de privações com o qual convivem as classes sociais menos privilegiadas surge como o elemento explicativo fundamental.
Dentre os fatores intra-escolares, são salientados o currículo, os programas, o trabalho desenvolvido pelos professores e especialistas, e as avaliações do desempenho dos alunos que são hoje, segundo Guiomar Namo de MELLO (1983), “… mecanismos de seletividade poderosos. Sua natureza e qualidade são de teor tal que contribuem para o fracasso escolar das crianças de origem social e econômica desfavorecida, ainda que grande parte desse fracasso se deva, sem dúvida, à pobreza material da qual essas crianças são vítimas.
Nesse sentido, essas condições escolares contribuem para reproduzir a desigualdade social, por meio de um duplo mecanismo: o primeiro é a exclusão dos mais pobres da escola, o segundo, a legitimação dessa exclusão na medida em que o aparecer apenas técnico do modo de operar da escola dissimula seu sentido político.”
Atual trabalho de pesquisa, A Produção do Fracasso Escolar. Histórias de Submissão e Rebeldia, produzido por Maria Helena de Souza PATTO, dentre muitas e relevantes questões levantadas e analisadas, demonstra com clareza que o “processo social de produção do fracasso escolar” se realiza no quotidiano da escola. “… O fracasso da escola pública elementar é o resultado inevitável de um sistema educacional congenitamente gerador de obstáculos à realização de seus objetivos. Reprodução ampliada das condições de produção dominantes na sociedade que as incluem, as relações hierárquicas de poder, a segmentação e a burocratização do trabalho pedagógico, marcas registradas do sistema público de ensino elementar, criam condições institucionais para a adesão dos educadores à simularidade, a uma prática motivada acima de tudo por interesses particulares, a um comportamento caracterizado pelo descompromisso social.”
É nas tramas do fazer e do viver o pedagógico quotidianamente nas escolas que se pode perceber as reais razões do fracasso escolar das crianças advindas de meios sócio-culturais mais pobres.
Entretanto, mesmo após constatações tão sérias e evidentes, que chegam a nós desde o final da década de 70, e que constituem os avanços teóricos fundamentais a respeito do assunto, quando entrevistamos professores, diretores e especialistas que diretamente atuam nas Redes de Ensino, ouvimos outra interpretação para o fracasso dessas crianças, ou seja, o mesmo é sempre imputado a causas extra-escolares.
Atualmente, estamos desenvolvendo em Campinas uma pesquisa tentando diagnosticar o grau de incidência da medicalização*, um dos fatores indicados como responsáveis pelo fracasso escolar das crianças, principalmente as da primeira série do ensino fundamental. Não olvidando dos aprofundamentos teóricos mais recentes que aqui levantaras, com breves pinceladas, queremos salientar tanto na pesquisa apontada quanto neste trabalho, em particular, que o nosso objetivo primordial é o de desmistificar a questão da medicalização do fracasso escolar, considerada como uma das maiores desculpas utilizadas para escamotear tal problema.
Dentro do enfoque “medicalização”, privilegiamos a desnutrição por entendermos ser ela a mais disseminada para rotular de “deficientes mentais” as crianças oriundas dos segmentos mais pobres da população, que não apresentam desempenho escolar desejável.
No desenrolar de nossa pesquisa de campo, o que temos ouvido e observado nas escolas visitadas reforça a afirmação anterior de que se imputa o fracasso dessas crianças, oriundas das classes trabalhadoras, à desnutrição, às verminoses, enfim, a uma condição adversa de saúde. Ignora-se o fato de que estas estudam em escolas de periferia, onde se concentram todos os vícios e distorções do sistema social e, especificamente, do educacional, e tenta-se encontrar nestas crianças uma causa orgânica, inerente a elas, que justifique seu mau rendimento.
Geralmente, estas crianças são encaminhadas a um serviço médico ou a um serviço de saúde mental, onde são atendidas por médicos ou psicólogos imbuídos dos mesmos preconceitos da professora – são profissionais que, embora na maioria dos casos sem formação adequada, não hesitam em atribuir às crianças, sem avaliação aprofundada, um retardo mental, que justificam ser consequência do estado de desnutrição. Para as crianças pobres, assim, fracasso escolar é sinônimo de deficiência intelectual.
Quais são as crianças desnutridas que estão hoje frequentando nossas escolas? São aquelas portadoras de desnutrição leve, a chamada pelos especialistas de desnutrição de primeiro grau. Não estamos aqui afirmando que este tipo de desnutrição não tem importância, ela a tem tanto que constantemente é apontada como forte indicador da situação de penúria e miséria em que vive grande segmento de nossa população. É a fome a principal causa da incidência de desnutrição em crianças, e esta fome é consequência direta da má distribuição de renda existente em nossa sociedade, resultado direto do modelo econômico imposto ao País nos últimos anos.
Entretanto, o que estamos querendo enfatizar é que este grau de desnutrição não afeta o desenvolvimento do sistema nervoso central, não o lesa irreversivelmente e, portanto, não torna a criança deficiente mental, incapaz de aprender o que a escola tem a lhe ensinar.
A criança portadora de desnutrição leve apenas sacrifica o seu crescimento físico para manter o seu metabolismo. Exames clínico e laboratorial indicam que a criança é normal, com exceção de um déficit de peso e estatura em relação à sua idade.
Não existe controvérsia na literatura médica a respeito de que somente a desnutrição grave (terceiro grau), no período em que o cérebro está se desenvolvendo (no homem, do terceiro mês de gestação até os primeiros seis meses de vida) e durante longo tempo, neste período, é que lesa a estrutura do sistema nervoso central.
Através dos dados de uma pesquisa desenvolvida por mim nos anos de 1980 e 1981, Influência da Merenda Escolar no Rendimento em Alfabetização: Um Estudo Experimental, objeto de minha tese de doutorado em Educação, constatei, numa população de 860 alunos matriculados na primeira série do primeiro grau da Rede Pública de Ensino do Município de Paulínia, em 1980, após criteriosa avaliação de seu estado nutricional, que 35,9% apresentaram desnutrição leve ou de primeiro grau, 5,5% de segundo grau e 0,3% de terceiro grau. Este tipo de avaliação foi repetido três vezes durante o estudo e na segunda avaliação observou-se que as crianças portadoras de desnutrição de segundo e terceiro graus haviam abandonado a escola durante o primeiro mês de aulas, fato lá esperado pela equipe de pesquisa (COLLARES, 1982).
Tal constatação reforça minha afirmação de que nas escolas existem muitas crianças portadoras de desnutrição leve. Hoje, até talvez em número maior que o de 1980, uma vez que a situação econômica da população vem paulatinamente se deteriorando nos últimos anos. Entretanto, é preciso não se esquecer do tipo de deficiência de que elas são portadoras, ou seja, desnutrição leve.
Não existem em todo o mundo trabalhos de pesquisa que obedeçam, minimamente, a critérios de metodologia científica, que se proponham a estudar a relação de desnutrição leve com rendimento escolar, e quando algum pesquisador tenta encontrar tal relação, não a consegue estabelecer, como é o caso de SCHUFTAN (1974) e POLLITT (1984), que não conseguiram encontrar significância no resultado dessa relação e relatam ser impossível isolar a desnutrição da rede complexa de fatores sociais da qual faz parte, ou seja, do “complexo de doença social” que assola o meio no qual a criança escolar pobre está inserida.
Muitos e notáveis trabalhos existem tentando relacionar a desnutrição com o desenvolvimento do sistema nervoso central, entretanto, todos eles estudam crianças portadoras de desnutrição grave, como é o caso de KLEIN (1972), STEIN (1972), BIRCH (1972) E RICHARDSON (1976), apenas para citar alguns. Se a criança escolar apresenta desnutrição leve, não possui lesões no sistema nervoso que a torne incapaz de aprender.
Por que então, ao entrevistarmos na escola professores, diretores e especialistas, esta deficiência é apontada como uma das principais causas do fracasso escolar?
Pensamos que colocar as causas desse mau rendimento nas crianças, individualmente, é uma forma de, até inconscientemente, se tentar minimizar ou mesmo ocultar a falha da escola, em particular, e de todo o sistema educacional em geral. A proposta desse artigo foi a de privilegiar na discussão a desnutrição como um dos exemplos mais comuns da medicalização do fracasso escolar. Entretanto, ressaltamos aqui a realidade de que o atual discurso das professoras, diretores e especialistas também caminha para outras manifestações ou facetas desta mesma medicalização. Assim, chama muita atenção em Campinas, o grande número de crianças repetentes testadas por psicólogos no início do ano letivo e posteriormente encaminhadas para tratamento no Serviço de Saúde Mental. É a “psicologização” do fracasso que encaminha rapidamente estas crianças a outros serviços ligados ou não à área da saúde, como é o caso da fonoaudiologia, da neurologia e, mais recentemente, da psicopedagogia, entre outros.
Em Campinas, o canal privilegiado de encaminhamento dessas crianças é, na atualidade, o Serviço de Saúde Mental, porque o Município decidiu extinguir o Serviço de Saúde Escolar nas escolas, e os médicos passaram a atender nos Centros de Saúde, não só os escolares, mas todas as crianças em idade escolar que necessitarem de atendimento médico. Neste Município, até bem pouco tempo, os casos de mau rendimento escolar eram assunto discutido, analisado e conduzido pelos médicos do Serviço de Saúde Escolar e, somente agora, na falta deste, aparecem em primeiro lugar os psicólogos. Entretanto, o fenômeno de medicalização continua. São outras as roupagens, mas o dano tanto às crianças quanto ao sistema escolar continua.
A medicalização do fracasso escolar passa então a exercer um papel fortemente tranquilizador para a escola e para o sistema. “Tudo está indo muito bem, pena que 50% a 70% de Joãozinhos e Mariazinhas, individualmente, tenham problemas de saúde, sejam imaturos, desajustados, carentes… e por isso fracassem logo na primeira série do ensino fundamental.” Esta medicalização cumpre um papel ideológico tão preponderante que temos observado que nem mesmo professores com grande compromisso político conseguem rompê-lo.
A nosso ver, o fracasso escolar é uma dura realidade com a qual convivemos há muitas décadas, porém, é um mito, muito bem engendrado, o fato de não conseguirmos dar conta dele.
É necessário que desmistifiquemos as “famosas” causas externas desse fracasso escolar, pela articulação destas àquelas existentes no próprio âmbito escolar, e que tenhamos clareza dos fatores que as determinam e as articulam.
Essa trajetória nos conduziria, por vezes, a relativizar e até mesmo a inverter muitas das formas de se compreender este fracasso, dentre as quais poderíamos exemplificar a atual caracterização do fracasso escolar como “problemas de aprendizagem” e que deveria, nesta perspectiva, se configurar também e talvez, principalmente, como “problemas de ensinagem”, que não se produzem exclusivamente dentro da sala de aula. Devemos continuar falando em fracasso escolar como até hoje se tem feito ou assumi-lo como problema social e politicamente produzido?
Bibliografia
- BIRCH, H.G. Malnutrition, Learning and Intelligence. J Public Healt, (62): 773-784, 1972. Cadernos CEDES. São Paulo, n. 15. Editora Cortez, 1985.
- COLLARES, C.A.L. Influência da Merenda Escolar no Rendimento em Alfabetização: um Estudo Experimental. Tese de Doutorado apresentada à Escola Pós-Graduada de Ciências Sociais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, 1982.
- HERTZIG, M. E. et ali Intellectual of School Children Severely Malnourished during the First Two Year of Life Pediatrics 49, pp 814-824, 1972.
- KLEIN, E. et ali Effects of Protein – Calorie Malnutrition on Mental Development dv. Pediatr. 18 pp 75-91,1972.
- MELLO, Guiomar N. Magistério de Primeiro Grau: da competência técnica ao compromisso político. São Paulo, Editora Autores Associados e Cortez Editora, Terceira edição, 1983.
- MOYSÉS, M.A.A, e ZANETTA, G. Desnutrição e Fracasso Escolar, uma relação tão simples? São Paulo, Revista da Ande, 5, 1982.
- PATTO, M.H.S. Histórias de Submissão e Rebeldia – tese de livre docência apresentada ao Instituto de Psicologia da USP, 1987. (livro no prelo)
- RICHARDSON, S.A. The Relation of Severe Malnutrition in Infancy to the Intelligence of School Children with Differing Life Histories, Pediat. Res., 10; pp 57-61; 1976.
- STEIN, Z. et all. Nutrition and Mental Performance Science, 178, pp 708-713, 1972.
- SCHUFTAN, CLÁUDIO et aí. Bojo rendimiento escolar: Desnutrición o deprivación cultural? In: Archivos Latino Americanos de Nutrición, Chile, pp 121-134, 1974.
Autora: Cecília Azevedo Lima Collares
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