A Violência da Democracia Racial Brasileira
Uma análise crítica sobre a violência da democracia racial no Brasil, abordando a persistência do racismo e suas implicações na luta por igualdade de direitos. O artigo discute a construção do mito da democracia racial e as dificuldades enfrentadas pelo movimento negro.
A “democracia racial brasileira” é um mito ainda vivo e insidioso. Em um país que gosta de se imaginar uma nação sem racismo, o tardio reconhecimento por parte do Estado da existência desse problema ainda não se fez acompanhar de políticas públicas de efetivo alcance social para combatê-lo. Recentemente, ninguém menos que o chefe supremo da nação, em um discurso supostamente contra o racismo, afirmou também possuir sangue africano nas veias. “Tenho o pé na cozinha”, declarou o presidente, deixando claro para todos qual é o “lugar do negro” nesta sociedade.
Com efeito, como observa Darcy Ribeiro, aqui, a luta mais árdua dos negros brasileiros é a pela conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. Até então, ele será chamado de “negrinho arrogante” caso não cumpra seu papel de acordo com as expectativas tradicionais de humildade e subserviência, reservadas sobretudo aos negros em relação aos brancos.
Nunca foi fácil falar de racismo e de discriminação racial. No Brasil, como em qualquer parte do mundo, as controvérsias acadêmicas nunca foram pequenas. Basta simplesmente lembrar os debates acerca da impropriedade do termo “raça” e das limitações do termo “etnia”. “Raça” e “etnia” não são “dados de fato”, mas conceitos muito problemáticos. Não raro, define-se “etnia” com base lingüística, ou seja, fazendo coincidir as fronteiras da “etnia” com as da “língua”. Assim, um defensor do panturquismo pode definir, sem titubear, como “turco” até mesmo um esquimó do nordeste siberiano, já que este último se exprime em uma língua turcófona.
Com base neste critério, no Brasil, onde é praticamente universal o uso do português na sua vertente brasileira, seríamos quase todos da mesma etnia, impossibilitando uma tematização da discriminação étnica no país. É por essas e outras razões que, perfeitamente ciente dos problemas aí implicados, o movimento negro brasileiro (sem querer passar uma ideia que seja um grupo único e que não conheça enormes controvérsias no seu interior) tem, na maioria das vezes, preferido adotar o conceito de “raça”. Estes ativistas estão cientes que “raça” não é uma realidade biológica, mas um conceito político, cuja aplicação social revelou-se um formidável instrumento de desumanização e de promoção de privilégios e desigualdades.
RACISMO INEXISTENTE E ANTI-RACISMO ALIENÍGENA
Quem dera as dificuldades fossem apenas acadêmicas! Poderíamos dormir mais tranquilos. As maiores dificuldades que se erguem quando se clama contra a opressão racial são de ordem cultural, ideológica e, portanto, sobretudo política. No Brasil, os diversos regimes autoritários sempre tiveram caprichosamente o cuidado de reprimir os que ousavam problematizar as ideologias racistas aqui adotadas ou lutar contra os mecanismos e as práticas de discriminação racial. O movimento negro foi recebido com suspeitas e acusado, entre outras coisas, de valer-se de “ideologias exóticas” ou “alienígenas” por meio das quais inventavam “um problema racial inexistente” ou, mais prosaicamente, de querer “criar antagonismos e ódios entre irmãos”.
Contra esse terrível perigo, o Estado sempre soube se valer de sua autoridade e energia. Mesmo em período de democracia. Impossível esquecer a emblemática repressão desencadeada, no Rio de Janeiro, durante a comemoração oficial (portanto, branca) do centenário da abolição da escravidão, em maio de 1988, já no período pós-ditadura (Cardoso, 1992: 30-37). Naquela ocasião, entidades da sociedade civil organizaram inúmeras atividades e manifestações em todo o país.
No dia 11 de maio, no Rio de Janeiro, organizou-se uma passeata, devidamente autorizada, contra o racismo e em homenagem a Zumbi de Palmares, líder do principal e mais famoso “quilombo” (termo de origem afro usado para designar as comunidades solidárias onde viviam sobretudo escravos fugitivos). É preciso lembrar que o movimento negro no Brasil comemora o “20 de Novembro”, aniversário da morte de Zumbi e não o “13 de Maio”, aniversário da assinatura da “Lei Áurea”, pela princesa Isabel, que, na versão oficial, concedeu a liberdade aos negros. Zumbi representa a resistência negra; Isabel, a “redentora”, por sua vez, representa a bondade branca.
Àquela ocasião, o Comando Militar do Leste do Exército divulgou uma nota oficial explicando que teve que ocupar as ruas do centro carioca em face da “intenção descabida de ativistas em utilizarem-se das comemorações do Centenário para tumultuar a tranquilidade da Cidade do Rio de Janeiro”. E mais: tinha-se que impedir que, “no bojo de pretensas passeatas”, com “objetivos bem conhecidos e até inconfessáveis”, tentassem, “de maneira grosseira, mudar fatos reais”, sem que estivessem “escudados em qualquer dado histórico-científico e sim apenas em meias verdades e omissões, divulgando para o povo deturpações com propósitos impatrióticos de criar antagonismos…”. O de sempre. Em poucas palavras: para a nossa velha direita, apontar o dedo contra o racismo seria ameaçar a segurança nacional, valer-se de “ideologias alienígenas”, em um país marcado pelo “convívio harmonioso entre as classes”.
Parafraseando Roberto Schwarz, podemos dizer que aqueles que no Brasil acusam o anti-racismo de “ideologia alienígena” talvez acreditem que o fascismo seja invenção brasileira.
Por outro lado, colocar o anti-racismo nas agendas das esquerdas não foi muito mais fácil, sendo que se tenha, ainda hoje, conseguido conferir devida centralidade à luta contra a opressão racial no país. Durante o período de resistência à ditadura militar, as forças que lutavam pela implantação de um regime democrático não raro apresentavam enorme desconforto diante da problematização contra o racismo e a discriminação racial.
A esquerda tinha enormes dificuldades para lidar com a questão. Para que tanta preocupação com a discussão sobre o racismo ou outras discriminações? Isso seria típico do capitalismo. Com a revolução, uma vez debelados os problemas “objetivos”, os problemas “subjetivos” ruiriam feito um castelo de cartas, automaticamente. Além do mais, diziam outros, não existe racismo no Brasil, mas sim a desigualdade econômica. Os negros estariam sendo discriminados porque pobres.
Por que será, então, essa estranha obstinação desses negros em quererem manter-se pobres? Devemos muito à incansável atuação dos inúmeros ativistas negros, como Abdias do Nascimento, Edson Lopes Cardoso, Suely Carneiro e tantos outros para colocar na agenda das esquerdas a batalha contra o racismo no Brasil. O sociólogo Florestan Fernandes, o principal representante do grupo de intelectuais responsáveis pela desmistificação da democracia racial brasileira, foi uma figura central no processo ao procurar fazer as esquerdas brasileiras entenderem que lutar contra as diversas formas de opressão racial no país seria a forma mais eficaz de combate contra os mecanismos mais perversos do capitalismo brasileiro.
Racismo e discriminação são produtores eficazes de privilégios para o grupo racial dominante, com forte impacto na estrutura social como um todo. Destarte, a “democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça” (Fernandes, 1987: 71).
DEMOCRACIA RACIAL E O LUGAR DO NEGRO
O mito da democracia racial no Brasil está assentado na suposta inexistência de mecanismos jurídicos de segregação e na afirmação de que não se levantaram barreiras à ascensão social do negro, dada a “ausência de preconceito e de discriminação”. O sociólogo Gilberto Freyre, embora reconhecesse a existência de um certo preconceito racial no país, foi o principal articulador desse mito, argumentando que, aqui, a distância social entre brancos e negros era resultado de diferenças de classe, antes que principal fruto de preconceitos de cor ou raça.
Segundo o autor de “Casa-Grande & Senzala” (publicado em 1933), a marca do povo brasileiro é a sua “duplicidade e alma”, a qual lhe confere uma especial capacidade para suportar contradições e harmonizá-las. Assim, no Brasil, tradicionalmente, a busca de soluções dos conflitos se faria por meio da integração ou do equilíbrio de elementos antagônicos. O brasileiro, figura transigente, saberia conciliar oposições.
Daí, “nossa relativa democracia étnica: ampla, embora não perfeita, oportunidade dada a todos os homens, independentemente de raça ou de cor, para se afirmarem brasileiros plenos” (Freire, 1971: 4-5). Freyre, distinguindo-se dos seus colegas que continuavam ancorados nas teorias racistas européias (Gobineau, Lapouge e outros), via como positiva a presença do africano na sociedade brasileira: o negro foi um agente da colonização e cumpriu importante papel civilizador.
Freire foi, por isso, alvo de duras críticas à época. Graças a ele, verificou-se uma transição nas abordagens sobre a questão racial: o debate ganhou novos contornos à medida que incorporou o discurso culturalista do antropólogo Franz Boas, que relativizava a importância da “raça” para a compreensão dos grupos humanos e destacava a relevância do ambiente, da história e da cultura. Mas, vejamos, se não há obstáculos, por que o negro não ascendeu? Malgrado as intenções de Freyre, o discurso acerca da democracia racial, fundado na igualdade formal, acabou por aprofundar a visão baseada nas principais suposições das teorias racistas européias acerca da inferioridade natural do negro.
Enquanto haveria, de um lado, igualdade de direitos e de oportunidades para todos, de outro, os afrodescendentes seguem vivendo dez anos a menos do que os brancos, ganham quase a metade que os brancos, são a maioria dos desempregados, dos pobres, dos indigentes, dos analfabetos e de toda a horda dos deserdados.
Então, isso seria de se atribuir, fatalmente, à sua intrínseca inferioridade. E mais: não havendo racismo, não há contra o que se protestar a este respeito. “Nós não somos racistas, os negros conhecem o seu lugar”. Aqui, a pobreza negra está tão “naturalizada” no terreno das representações sociais que, quando um negro é visto “fora de seu lugar”, por exemplo, ao volante de um carro de luxo, costuma suscitar as suspeitas da polícia ou, no melhor dos casos, vira alvo de comentários dos passantes: “Deve ser o motorista, cantor de pagode ou jogador de futebol”. Conforme alerta Emília Viotti da Costa, para se entender as complexas percepções dos padrões raciais é preciso olhar além dos limitados quadros de referência das relações raciais.
Costuma-se dizer no Brasil que, se não se tem uma compreensão histórica, tem-se uma compreensão histérica. De fato, a compreensão da situação do negro na sociedade brasileira atual não poderia ser descolada de uma reflexão acerca da ordem escravocrata e senhorial que, no entanto, fazer-nos-ia extrapolar os limites deste artigo. Para tanto, é indispensável remeter o nosso leitor às obras de Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Celso Furtado, Thales de Azevedo, Caio Prado Junior, José Murilo de Carvalho, João Ribeiro Fragoso, além dos que já foram citados anteriormente.
Uma lista que continuaria, quase sem fim. Um antídoto ao histerismo racista, que atribui ao negro toda a culpa pelas suas mazelas, explicadas como “características próprias de sua raça” (como a preguiça, a ignorância, a criminalidade, todas elas inatas e inelutáveis) e não como resultado da escravidão, de uma abolição incompleta e da contínua opressão. A estreita vinculação entre a “condição social de escravo” e a condição de “cor”, que vinha se definindo a partir das “Grandes Navegações”, encontrou no continente americano meios para sua plena consolidação. Já no início da ocupação colonial do Brasil, superada a breve fase do escambo, foi imposto o regime de exploração de trabalho escravo ao índio e ao africano.
Foi então, gradativa e aceleradamente, constituída a mais longeva e poderosa organização escravista das Américas. Nesse cenário, conforme nos ensinou Florestan Fernandes, as relações e estruturas sociais que constituíram a ordem social escravocrata implicavam as mais diversas formas de discriminação racial e operavam no sentido de manter a posição e as relações existentes entre as “raças” dos senhores e aquelas dos escravos. Ao negro era proibido o acesso a papéis sociais que pressupunham prerrogativas que lhes eram vedadas pela “condição social” e pela “cor”.
As elites, contudo, aprenderam a abrir exceções para alguns indivíduos negros ou “mulatos”. No século XIX, nos últimos anos da escravatura, eram oferecidas poucas alternativas de inserção ao negro que se libertava legalmente do jugo escravista. Como mostra Maria Rosa Nogueira e Silva, o negro livre não tinha lugar na sociedade. Abandonado à própria sorte, alternava mendicância e trabalho temporário (com uma precariedade de fazer inveja aos mais afoitos adeptos da flexibilização neoliberal).
Não raro, o ex-escravo tinha que recorrer a roubos, agressões, assaltos, fugas e bebedeiras, já que no mundo dos senhores não havia mecanismos para atender às suas necessidades e anseios. Quando conseguia trabalho, era mal pago e identificado com a escravidão. Com o colapso do regime escravista, a abolição (1888) e a proclamação da República (1889), estabeleceram-se as condições preliminares da tese da “harmonia das raças, da paz social entre negros e brancos e da cordialidade do brasileiro”. Ocorreu então a reinterpretação do jugo escravista no Brasil: “Em nenhum outro lugar a nefanda instituição apresentou traços tão suaves, doces e cristãmente humanos”.
Com a revogação do estatuto servil, “o negro não tem mais problemas”, pois “as oportunidades de acumulação de riqueza, conquista de prestígio social e poder estão abertas a todos”. Claro. O Brasil vai dormir escravista e acorda uma democracia racial. No ano seguinte é composto o Hino à República, que à certa altura diz: “Nós nem cremos que escravos outrora/Tenha havido em tão nobre país…”. Varremos para debaixo do tapete a maior mancha de nossa história. E se isso é coisa de “outrora”, não são lícitos pedidos de reparação.
“BRANQUEAMENTO” SOCIAL, “BRANQUEAMENTO” BIOLÓGICO E “TERRA NOSTRA”
Nunca houve no país ideologias segregacionistas tais como as dos EUA, onde impera um “preconceito de origem”, segundo o qual qualquer descendente de uma união entre um negro e um branco é considerado negro. Aqui, onde qualquer pessoa que não seja obviamente negra pode ser considerada branca, prevalece um “preconceito de cor”: uma pessoa é branca ou negra segundo sua aparência. E não só: alguém pode deixar de ser negro à medida que passe por um processo de “branqueamento” social e cultural. No Brasil, a partir do fim do século XIX, as ideias racistas européias sofreram uma retradução, no bojo da qual foram excluídas duas de suas principais suposições: a natureza inata das diferenças raciais e a degeneração dos sangues mestiços.
Embora as elites brasileiras afirmassem constantemente sua fé na superioridade dos brancos, elas tinham meios para aceitar negros em suas fileiras. Historicamente, a gradativa absorção do negro dava-se por um processo de seleção e assimilação dos que se mostrassem mais identificados com os círculos dirigentes da “raça dominante” e os que ostentassem total lealdade a seus interesses e valores sociais. As elites brancas podiam aceitar em suas camadas um negro mestiço de pele mais clara (o “mulato”), que adquiria assim o status de branco.
A assimilação se dava à medida que os negros que ocupavam uma posição superior passavam a se identificar a si mesmos como integrantes da comunidade branca. Para sair do lugar que a sociedade inicialmente lhe designou, o negro tem que “embranquecer”, renunciar à sua identidade e à sua comunidade. Um “branqueamento” social que produziu o “preto de alma branca”. A este propósito, Darcy Ribeiro lembra a resposta comovida do pintor negro Santa Rosa a um jovem negro que se lamentava das dificuldades postas às “pessoas de cor” na carreira diplomática: “Compreendo perfeitamente o seu caso, meu caro. Eu também já fui negro”.
As elites ainda elaboraram uma visão que os “mulatos” estariam, biológica e evolutivamente falando, a meio caminho entre os negros e os brancos. A mestiçagem era louvada e não criminalizada, posto que vista como possibilidade de resgate da “qualidade da raça”. E mais: o sangue bom e forte, o sangue branco, prevaleceria e o país, no arco de algumas décadas, estaria inteiramente branco.
O então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, o cientista João Batista Lacerda, ao participar do I Congresso Internacional das Raças, realizado em 1911, apresentou a tese que era “lógico supor que, na entrada do novo século, os mestiços terão desaparecido no Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós”. Um “branqueamento” biológico, eugênico. Neste sentido convergia o incentivo à imigração européia ao país: embranquecê-lo, elevar a qualidade do patrimônio genético nacional.
À medida que o regime escravista dava sinais de estar prestes a colapsar-se e se aprofundavam as transformações sócio-econômicas, sobretudo nas regiões centro-sul do país, as classes dominantes reestruturaram eficazmente seu sistema de recrutamento de força de trabalho, substituindo a mão de obra escrava por imigrantes, sobretudo da Europa. Viu-se então surgir o imigrante europeu como agente natural do trabalho livre, como esperança de progresso e de “branqueamento” da nação.
O imigrante não viria simplesmente para ocupar o lugar do escravo, mas sim um lugar novo em uma nova estrutura de trabalho, própria da ordem social competitiva, da qual o ex-escravo foi sistematicamente impedido de participar em face da precariedade do processo de ressocialização ao qual foi submetido. Tolhido inclusive da possibilidade de encontrar uma identidade de classe, o negro foi conduzido a uma existência ambígua à margem da sociedade, sem condições de integrar-se ao novo sistema.
Na célebre frase de Celso Furtado, “o negro foi liberto para o ócio”. Por essa razão, Suely Carneiro considera uma das coisas mais cruéis e perversas traçar um simples paralelo entre a situação do escravo com a do imigrante. São situações dramaticamente diferentes a imigração e a redução à escravidão. No primeiro caso, alguém pode estar deixando para trás parentes, amores e amigos, condições sociais adversas, guerras, pobreza, discriminações e perseguições. Mas lhe resta algo: a humanidade, que a condição de escravo liquida e tenta aniquilar completamente.
Neste último caso, diante do apresamento, do desenraizamento, da aculturação e da perda da condição humana, a sobrevivência, o resgate de uma identidade sócio-cultural e a reconstrução da estrutura psicológica representam praticamente um “milagre sociológico”. Entendamo-nos: ninguém está desfazendo do sofrimento de Giuliana e Matteo, de “Terra Nostra”. Mas, como lembra Edson Lopes Cardoso, eles ao menos tiveram tempo de fazerem suas malas. Isso sem falar que inúmeros imigrantes encontraram facilitações por parte do Estado brasileiro para aqui se instalarem, em total detrimento da população negra, desamparada, deixada à sua própria sorte.
Vale lembrar que para a colonização do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul, os alemães não apenas contaram com terras e recursos concedidos pelo Estado: o mesmo decreto que lhes instituía os direitos de colonização simplesmente proibia a presença negra na região. (É impressionante, muito embora não surpreenda por demais, como os cursos nas universidades sobre imigração italiana tendam, com frequência, a silenciar-se sobre isto).
UMA NEGRA À ALTURA DE UM BRANCO
A luta contra a discriminação racial no Brasil começa ainda no período colonial, com a resistência do africano e do índio diante da violência do projeto colonial português. De lá para cá, os combates contra a opressão racial têm assumido diversas conformações. Hoje, de um lado, tal empenho volta-se a reivindicações de políticas públicas de combate à discriminação racial, como a adoção de cotas, cuja proposição se faz imediatamente acompanhar do coro: “Estão importando o racismo e os modelos dos Estados Unidos!”.
Se isso fosse verdadeiro, o movimento negro não estaria fazendo nada que fosse radicalmente diferente do que faz uma sociedade, como a nossa, cada vez mais envolvida em um processo de macdonaldização. De resto, a “ação afirmativa”, é importante lembrar, não é necessariamente uma invenção norte-americana e, além do mais, nem tudo que provém dos EUA deve ser necessariamente ruim.
De outro, tal luta se desdobra também em uma miríade de trabalhos comunitários, nos mais variados campos, marcadamente o da escola e o da consolidação de uma postura crítica em relação aos meios de comunicação, que continuam sendo formidáveis espaços de reprodução e ampliação do racismo no país. Por falar nisso, vale mencionar uma publicidade de um novo café solúvel, lançado há alguns meses por uma empresa de laticínios italiana no Brasil.
Ao lado de uma foto de um belo modelo branco (nórdico), que aparece abraçado por uma negra igualmente bela, surgem os seguintes dizeres: “Chegou o Café Parmalat. O café à altura de nosso leite.” É preciso dizer algo mais? Acrescente-se apenas que a situação da mulher negra no país é a da mais extrema subalternização. As estatísticas oficiais dão-nos conta da ampla diversificação na participação das mulheres no mercado de trabalho, uma vez que elas começam a conquistar espaços tradicionalmente masculinos.
Contudo, se cruzarmos as variáveis de gênero à de cor, veremos logo que as mulheres negras continuam confinadas no emprego doméstico, de onde, como tão bem ilustram (e encarecem) as nossas telenovelas, elas se desdobram, felizes em servir o melhor possível às famílias brancas. No que se refere a salários (formidável índice de valorização de alguém em uma sociedade), o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e de Estudos Sócio-Econômicos) confirma: no Brasil, duas negras e meia equivalem a um homem branco. A hierarquia fica então estabelecida: no topo o homem branco, seguido pela mulher branca, depois vem o homem negro e só, por fim, a mulher negra.
A “mulata” da Parmalat, como os dizeres deixam claro, é uma exceção. Vale ainda ressaltar que a ascensão social de um negro no Brasil não lhe garante uma imunidade ao racismo e à discriminação. Ele pode até deixar de sofrer carências materiais, mas não se livrará das insídias da “democracia racial” brasileira ou da “neodemocracia racial”, como diz Suely Carneiro: neste caso, o negro incluído é somente encarado na sua dimensão de consumidor, mas não na de cidadão. O mercado, esse bezerro de ouro, acaba, assim, por definir o projeto de inclusão do negro.
Uma inclusão subordinada e minoritária (Carneiro, 2000a: 28). Para terminar, é quase obrigatório falar de Jane Elliot, uma esplêndida e corajosa professora norte-americana que concebeu um exercício (“Blue Eyed”) que usou inicialmente para explicar aos seus jovens alunos por que haviam matado Martin Luther King. Apesar das retaliações que teve de enfrentar durante toda a sua vida por isso, ela nunca desistiu ou perdeu a oportunidade de sublinhar que a omissão das “pessoas boas” tem tornado possível a extrema violência do racismo. Lembro dela, diante de uma plateia, pedindo aos brancos presentes que ficassem de pé caso desejassem ser tratados como os negros normalmente são.
Como, obviamente, ninguém se levantou, Elliott concluiu: “Se não se levantaram é porque sabem o que está acontecendo e não o desejam para si. O problema, então, é saber por qual razão permitem que isso continue acontecendo com os outros.”
O autor é professor de Sociologia ao UniCEUB e IESB de Brasília.
Referências bibliográficas:
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D’INCAO, Maria Ângela (org.). O saber militante. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
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CARDOSO, Edson Lopes. Bruxas, espíritos e outros bichos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1992.
CARNEIRO, Suely, “Terra Nostra” só para os italianos. Folha de S. Paulo, 27.12.1999.
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COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república. 7. ed., São Paulo: Unesp, 1999.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed., São Paulo: Ática, 1978, 2 vols.
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FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 39. ed., Rio de Janeiro: Record, 2000. (Padroni e Schiavi. Torino: Einaudi, 1965).
______ Novo mundo nos trópicos. São Paulo: Editora Nacional, EDUSP, 1971.
FURTADO, Celso, Formação econômica do Brasil. 27 ed., São Paulo: Nacional, 1998.
INSTITUTO INTERSINDICAL INTERAMERICANO PELA IGUALDADE RACIAL. Mapa da população negra no mercado de trabalho, São Paulo: INSPIR/DIEESE, 1999.
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SCHWARZ, Roberto, Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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