No final do Império e Primeira República, a sociedade brasileira fica mais diversificada. Além da elite dominante, representada pela burguesia rural e urbana, as classes médias aparecem com força no cenário político. Surge também um proletariado urbano influenciado pelas tradições políticas anarquistas e socialistas trazidas pelos imigrantes europeus.
A burguesia é formada pelos representantes da lavoura tradicional e ex-escravocrata, como os do Vale do Paraíba, pelos cafeicultores modernos que empregam trabalho assalariado, como os do oeste de São Paulo, por banqueiros e grandes comerciantes ligados à exportação e à importação e pelos grandes e pequenos industriais. As classes médias urbanas incluem os imigrantes que se dedicam ao pequeno comércio e ao artesanato, os militares, os profissionais liberais e os altos funcionários públicos. O proletariado inclui funcionários públicos do baixo escalão, trabalhadores assalariados rurais e urbanos, e uma grande maioria de ex-escravos desempregados ou que trabalham como biscateiros.
Entre 1889 e 1928, entram no país 3.523.591 imigrantes. Mais de um terço são italianos, seguidos pelos portugueses, espanhóis, alemães e japoneses. A maior parte vai para a lavoura do café. Muitos, porém, de origem urbana, abandonam o campo e dedicam-se ao comércio ou à indústria, como assalariados ou donos de seus próprios negócios.
Movimento operário brasileiro
Em uma sociedade que acabara de sair da escravidão, a nascente classe operária enfrenta condições de trabalho adversas. Os salários são muito baixos, não existe legislação trabalhista e os sindicatos recém-formados não são reconhecidos. Os trabalhadores não contam com aviso prévio em casos de demissão, não têm direito a férias, a aposentadoria ou a qualquer tipo de seguro contra acidentes. A jornada de trabalho diária chega a 15 horas. A greve é encarada como crime e caso de polícia. Em 1889, há 54 mil operários no país, localizados principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em 1920, eles já são 275.512, a maioria imigrantes italianos e espanhóis, responsáveis pela difusão das ideias anarquistas e socialistas no país.
O anarquismo chega ao Brasil com os imigrantes europeus e, durante boa parte da Primeira República, é a ideologia predominante no movimento operário. Os anarquistas defendem a organização sindical autônoma para todas as categorias profissionais como forma de os operários reunirem forças para negociar com os patrões. Eles se opõem radicalmente ao Estado, à Igreja e à propriedade privada e pregam a completa extinção dessas instituições. Também são contrários a qualquer atuação político-partidária e aí reside sua principal diferença com os socialistas e comunistas. A influência anarquista sobre o movimento operário brasileiro diminui quando o Estado começa a criar mecanismos legais de proteção ao trabalhador.
Devido a esta oposição contra o Estado, os anarquistas propunham uma pedagogia diferenciada para que o filho do operário (e futuro trabalhador) se libertasse das ideologias dominantes disseminadas através da educação tradicional.
A ideologia anarquista
O Anarquismo tem como concepção política-filosófica a atitude fundamental de negação a toda e qualquer autoridade e a afirmação da liberdade.
O próprio ato de transformar essa atitude radical em um corpo doutrinário de ideias abstratas que possam vir a ser utilizadas em todas as circunstâncias seria já uma negação da liberdade. Dessa forma, o Anarquismo não deve ser considerado senão como um princípio gerador que, de acordo com as condições sócio-históricas encontradas, assume características particulares. O movimento de negação da autoridade e afirmação da liberdade que sustenta o pensamento anarquista é formado por quatro princípios básicos de teoria e de ação: autonomia individual, autogestão social, internacionalismo e ação direta.
Autonomia individual: o indivíduo é a célula fundamental de qualquer grupo ou associação e a sociedade só existe enquanto agrupamento de indivíduos que a constroem sem que, no entanto, percam sua condição de indivíduos, os quais não podem ser preteridos em nome do grupo. A ação anarquista é essencialmente social, mas baseada em cada um dos indivíduos que compõem a sociedade, e voltada para cada um deles.
Autogestão social: decorre do princípio anterior que a liberdade individual é contrária ao Poder instituído. Contra quaisquer autoridades hierárquicas e associações assim constituídas. A gestão da sociedade deve ser direta, fruto dela própria. O anarquista é contrário à democracia representativa, onde determinado número de representantes é eleito para agir em nome da população.
Internacionalismo: os Estados constituem-se como empreendimento políticos ligados à ascensão e consolidação do Capital, sendo, portanto, expressão de um processo de dominação e espoliação; o anarquista, ao lutar pela emancipação dos trabalhadores e pela construção de uma sociedade libertária, não pode se limitar a uma ou a algumas dessas unidades geopolíticas (Estado-país). Daí a defesa de um internacionalismo globalizado.
Ação direta: as massas devem construir a revolução gerindo o processo como obra delas próprias. A ação direta se traduz principalmente nas atividades de propaganda: jornais, revistas, literatura e teatro. Tem o intuito de despertar a consciência das contradições sociais a que estão submetidas, fazendo com que o desejo e a consciência da necessidade da revolução surjam em cada um dos indivíduos. Outro viés importante é o da educação, formal ou informal. Sustentado por esses quatro princípios fundamentais, o Anarquismo, enquanto princípio gerador, pode-se afirmar: é um paradigma de análise político-social, uma vez que existe apenas um único Anarquismo que assume diferentes formas de interpretação da realidade e de ação de acordo com o momento e condições históricas em que é aplicado.
O paradigma anarquista em educação
A educação, tanto formal quanto informal, sempre teve grande valor no pensamento anarquista para a transformação da sociedade. Começando como uma crítica à educação burguesa tradicional, tanto a oferecida pelo seu aparelho estatal quanto a educação mantida por instituições religiosas. A principal acusação sobre o sistema vigente é a de que a escola – com a sua propalada neutralidade – é, na realidade, arbitrariamente ideológica. O atual sistema simplesmente se dedica a reproduzir as estruturas cruéis de dominação e exploração, doutrinando os alunos a ocuparem seus lugares já predeterminados. Assim, a educação tem um caráter ideológico que é mascarado pela sua aparente “neutralidade”.
Em vista disso, a Pedagogia Libertária assume tal caráter, no entanto coloca-o não a serviço da manutenção dessa sociedade, mas sim de sua transformação, despertando nos indivíduos a consciência da necessidade de uma revolução social.
A suposta liberdade individual como meio (característica das perspectivas liberais) redundará em um modelo de escola cuja característica principal é perpetuar teorias burocráticas que impedem as manifestações das singularidades, instruindo apenas para classificar, portanto, excluir.
A corrente de pensamento Bakuniana tem a liberdade como fim. A liberdade é conquistada e construída socialmente; a educação não pode partir dela, mas pode, deve, chegar a ela. Uma vez que o desenvolvimento de todas as coisas, e por consequência da educação, implica a negação sucessiva do ponto de partida, este princípio deve enfraquecer-se à medida que avançam a educação e a instrução, para dar lugar à liberdade ascendente.
Toda educação racional nada mais é, no fundo, do que a imolação progressiva da autoridade em proveito da liberdade, onde esta educação tem como objetivo final formar homens livres, cheios de respeito e de amor pela liberdade alheia. Assim, o primeiro dia da vida escolar, se a escola aceita as crianças na primeira infância, quando elas mal começam a balbuciar algumas palavras, deve ser o de maior autoridade e de uma ausência quase completa de liberdade; mas seu último dia deve ser o de maior liberdade e de abolição absoluta de qualquer vestígio do princípio animal ou divino da autoridade.
A educação não pode ser um espaço de liberdade em meio à coerção social; pois constituir-se-ia em uma ação inócua e os efeitos da relação do indivíduo com as demais instâncias sociais seriam muito mais fortes. A educação anarquista, partindo do princípio de autoridade, insere-se na sociedade e, coerente com seu objetivo de crítica e transformação social, não faz senão ultrapassar aquela autoridade, superando-a.
A construção coletiva da liberdade é um processo no qual ocorre, paulatinamente, a desconstrução, por assim dizer, da autoridade. Esse processo, a Pedagogia Libertária, o assume como sendo uma atividade ideológica. Como não há educação neutra, pois toda educação é fundamentada numa concepção de homem e de sociedade, é necessário, pois, definir de qual homem e de qual sociedade estamos a falar. A Educação Libertária conduz o homem a comprometer-se não com a manutenção da sociedade de exploração, mas sim engajado na luta e na construção de uma nova sociedade. Portanto, pode-se afirmar que o indivíduo assim criado seria um desajustado, por assim dizer, para os padrões sociais da educação contemporânea. A Educação Libertária constitui-se, assim, numa educação contra o Estado, alheia, portanto, aos sistemas públicos de ensino.
A pedagogia libertária
A Pedagogia Libertária do início do século XX está centrada no pensamento do educador Francisco Ferrer y Guardia (1889-1909). Os anarquistas tinham em seus projetos se educar libertariamente. Para tanto, fundaram escolas dentro dos métodos da Escola Moderna de Francisco Ferrer (Espanha).
O proletariado europeu (e mais tarde o brasileiro) recebeu os ensinamentos de Ferrer com entusiasmo. Pela primeira vez, era-lhe apresentado um autêntico hino de Amor e de Paz, em forma de ensino, partindo dos bancos escolares, com explicações como estas:
“Não se educa integralmente o homem disciplinando a sua inteligência, esquecendo seus sentimentos e desprezando sua vontade. O homem, na unidade do seu funcionamento cerebral, é complexo, tem várias facetas fundamentais, é uma energia que vê, afeto que repele ou recebe, concebendo voluntariamente e tornando em atos as leis do organismo do homem, que abre um abismo onde precisa existir uma saudável e bela continuidade. E sem dúvida, elemento favorável ao divórcio entre o pensar e o sentir.
Muitos deles serão, indubitavelmente, potentes em suas faculdades mentais, possuindo riqueza de ideias, até compreendem a orientação real, dentro de um conceito formoso, que prepara a ciência da vida, do indivíduo e dos povos. Mas, com todas as suas desatenções egoístas, e as próprias conveniências dos seus fins… tudo isto mesclado com uma levedura de sentimentos tradicionais, formam uma camada impermeável em volta de seus corações, para que não se infiltrem neles ideias progressistas, e não se convertam num jogo de sentimentos propulsores, imediato determinante da conduta do homem.”
O educador libertário do início do século XX demonstra clara noção da importância do Estado capitalista na organização da dominação burguesa. O critério de recrutamento de professores e de programas do ensino burguês (diga-se tradicional ou novo) é de vital importância para a consolidação da dominação ideológica burguesa. A criação do consenso social, que consiste na aceitação acrítica da dominação e da direção que a classe burguesa dá à sociedade, passa pelo controle do aparelho educacional e da instrução popular.
O aumento de escolas para o povo, patrocinado pelo Estado capitalista no início do século XX, tem a preocupação de ensinar aos alunos crenças religiosas, amor pelas pátrias, respeito às autoridades, obediência às leis, proteção à propriedade privada, e milhares de monstruosidades análogas. Esta escola procura e consegue passar para os subalternos a ideologia que interessa à burguesia, criando a hegemonia desta.
O objetivo deste ensino, então, é ministrar aos trabalhadores ideias, ou antes, os preconceitos favoráveis à supremacia dos dirigentes. Para a elite dominante, é importante manter grande parte da população analfabeta ou semi-analfabeta.
Fazia parte do discurso contra a educação burguesa ainda a situação da mulher. A mulher, neste caso, sofre as piores consequências, permanecendo, salvo raras exceções, na mais profunda ignorância. As que se revoltam contra o homem e os preconceitos burgueses sofrem tenaz repressão. Para os libertários, era lastimável que a mulher não tivesse acesso à cultura, porque bastava considerar a educação do filho para medir o alcance da educação intelectual da mulher. Criar um filho, educar um filho é um problema que exige uma instrução vasta e variada. Toda mãe de família deveria ser uma pedagoga; mas pedagogia se baseia na psicologia e na fisiologia, que supõem o preparo em ciências correlatas, digamos melhor em todas as ciências. O papel da mãe, portanto, seria de grande importância na formação intelectual das crianças.
Os anarquistas não concebiam, também, a educação da juventude apenas sob a responsabilidade e exclusividade da escola; seria importante a contribuição que a família poderia dar na educação dos jovens. É certo que a família teria que ser revolucionada e organizada sob uma orientação libertária, não consistindo em uma instituição formalizada e burocrática como sempre foi.
Na prática pedagógica, as relações entre professores e alunos inscreviam-se num quadro estrutural autogestionário, mutualista e federativo. A auto-organização da educação e da pedagogia baseava-se em pressupostos de solidariedade e fraternidade, o que, em princípio, inviabilizaria todo o tipo de relações hierárquicas traduzidas em tipos de autoritarismo e de dominação entre professores e alunos. Pedagogicamente, a escola modelo para os anarquistas é a “escola-oficina” que permitia um processo de aprendizagem de conhecimentos politécnicos. A politecnia era uma pedagogia que permitia um acesso ao conhecimento dos diferentes ofícios, através da experiência e da racionalidade científica e simultaneamente de relações sociais espontâneas e simples, sem hierarquias e autoridades morais exteriores ao indivíduo e ao coletivo a que pertencia.
Conclusão
Para os anarquistas e sindicalistas revolucionários que aspiravam libertar as massas trabalhadoras da exploração e a opressão exercida pelo Estado e a burguesia, ao criarem uma cooperativa estruturada em princípios e práticas autogestionárias e libertárias, significava criar as condições básicas para educá-las, de forma a extinguir essa realidade negativa e desenvolveram a sua luta no sentido da revolução social. Estava-se, portanto, a desenvolver uma experiência autogestionária em que as massas trabalhadoras tinham um espaço de manobra estratégica para dinamizarem um projeto educacional e pedagógico de características populares.
A liberdade, a criatividade e a espontaneidade existentes entre alunos, professores e restantes cooperantes, ao permitirem uma aprendizagem de conhecimentos numa perspectiva integral, desenvolviam proficientemente o intelecto, o físico e a moral das crianças. Em termos pedagógicos, acentuava-se a autonomia e a liberdade das crianças, privilegiava-se o estudo das diferentes ciências numa perspectiva racionalista e prescindia-se da classificação dos alunos em moldes hierarquizados.
Várias críticas, no entanto, foram feitas a essa prática pedagógica. Os especialistas em educação dizem que não há a possibilidade de existir um relacionamento livre entre professores e alunos sem o reconhecimento deste como autoridade, nem de um ensino não sistematizado e baseado em um currículo pré-estabelecido.
No entanto, a partir destas tentativas e da firmação desta ideologia anarquista é que surgiram outras práticas pedagógicas, entre elas a Pedagogia Libertadora, de Paulo Freire.
Bibliografia
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2. CHAVES, Lázaro Curvelo. Educação para a Redenção. Disponível em Acesso ocorrido em 27/02/2005.
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6. SILVA, Custódio Gonçalves da. Pedagogia Anarquista: uma concepção libertária. Disponível em: Acesso ocorrido em 27/02/2005.
Autor: Julia Regina Romeiro Nogueira de Sá
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