A Contextualização das Políticas Sociais de Proteção à Criança e ao Adolescente
A História Social da Infância e da Família
O tratamento dado à criança, pela família e sociedade, tem sofrido profundas modificações durante a história, estando relacionado à visão política, social e econômica de cada etapa de vida em sociedade. Cada sociedade, em certo momento histórico, apresenta uma visão a respeito da infância e os direitos a ela conferidos, bem como ao papel atribuído à família.
A visão sobre a infância varia amplamente: de centro das atenções do mundo adulto, quando considerada como um adulto em potencial, até o completo abandono à sua própria sorte. Segundo o autor, quanto mais se retorna ao princípio da história da humanidade, mais se encontram pais e sociedade pouco envolvidos com os cuidados de seus filhos.
Portanto, falar de família envolve definições muito complexas e, quando se fala de criança na família, a complexidade torna-se maior à medida que se discorre sobre a trajetória histórica da convivência dessas duas realidades. As relações entre crianças e adultos foram se transformando ao longo da história. Durante muito tempo, a criança foi vista como miniatura de adulto, passando por sucessivas mudanças a partir do século XV.
Conforme Ferriani (1992), verifica-se que a infância, independentemente da classe social, era considerada uma fase bastante curta, pois assim que demonstravam condições de viver sem os cuidados básicos maternos para sua sobrevivência, as crianças ingressavam no mundo dos adultos, passando a ser consideradas iguais. Para saber mais sobre a evolução da infância, veja Habilidades da BNCC: História no Ensino Fundamental 1.
Dentro do contexto familiar, não era considerada importante, sendo, não raramente, considerada um verdadeiro transtorno. Ignoravam-se as etapas de crescimento e desenvolvimento infantil. Inexistia registro de nascimento, uma vez que era pouco significativa a idade real para identificar as pessoas.
O infanticídio ocorria frequentemente nas famílias mais pobres da sociedade e, na maioria das vezes, de maneira acidental, quando, ao dormirem, os bebês morriam asfixiados na cama dos pais. Para essas famílias, o filho chegava a ser uma ameaça à própria sobrevivência dos pais, sendo frequentemente abandonado.
Até o início do século XVI, as crianças não eram diferenciadas dos adultos, não havendo preocupação social com essa fase do desenvolvimento do homem. Segundo Áries, a aprendizagem infantil era transmitida de uma geração à outra de forma direta, porém, as crianças de 7 a 9 anos de idade, de qualquer classe social, eram enviadas para casas alheias a fim de serem educadas.
Durante aproximadamente 7 a 9 anos, passavam com famílias alheias e, quando retornavam, eram totalmente estranhas à família. A partir da influência dos eclesiásticos, as crianças passaram a ser consideradas como “anjos”. Com essa nova visão, instituiu-se a necessidade de proteção especial às mesmas, com o objetivo de protegê-las do “perverso” mundo dos adultos. Esse pensar sobre a infância ganhou apoio dos moralistas, que se preocupavam, no momento, com o bem comum, com a saúde e com a moral social. Assiste-se, dessa forma, profundas alterações ocorridas durante o século XVI, marcadas por grandes mudanças de costumes, fruto da influência de religiosos e moralistas.
Quanto à área educacional, durante todo o século XVI, crianças e adultos eram educados conjuntamente, não havendo separações entre as diferentes idades. A partir do século XVII, intensifica-se a preocupação em educar separadamente crianças e jovens, visando a transmissão de disciplina e o aperfeiçoamento espiritual e moral. Surgem, nessa época, os primeiros colégios, “instituições complexas de ensino, vigilância e enquadramento da juventude“. O internato de crianças passou a se tornar prática aceitável no final do século XVII, com a criação dos grandes colégios internos, para onde a burguesia levava seus filhos, e com a instalação dos conventos onde as meninas se preparavam para o casamento, “ao abrigo de todas as tentações contrárias à virtude“.
Havia, portanto, até o início do século XVII, grande diferenciação entre a educação destinada às crianças do sexo masculino e às do sexo feminino, assim como entre as famílias burguesas e as famílias operárias. Às meninas, cabia apenas uma educação visando a formação de donas de casa, sendo que somente no final do século foi criada a primeira instituição voltada para a educação feminina.
Do século XVII ao século XIX, as representações sociais sobre a infância, bem como a forma de lidar com os problemas dos quais eram vítimas, se alteravam: de miniatura de adulto, exigindo dela responsabilidade de adulto, a caso de polícia, tratando-as como objeto de tutela judicial.
Estudos realizados demonstram que parentesco não tem o mesmo significado que família. Embora ambos tratem de fatos básicos da vida, nascimento, acasalamento e morte, a família se distingue por ser um grupo social concreto, enquanto o parentesco é uma abstração, que resulta da combinação de três tipos de relações básicas: a relação de descendência (entre pais e filhos), a de consanguinidade (entre irmãos) e a de afinidade, que se dá pela aliança, através do casamento.
Dessa forma, a família passa a ser entendida como uma instituição que não é natural e que assume configurações diversificadas nos distintos grupos sociais e na sociedade como um todo. Entendemos por isso que a família, até os dias de hoje, vem sofrendo diferentes mudanças quanto ao modelo familiar, o que se faz deduzir que a mutabilidade (instabilidade, volubilidade) é outra característica essencial do grupo familiar.
Bruschini (1993) dá ênfase a três funções do grupo familiar: a econômica porque a família é um grupo que divide o orçamento com entradas e saídas de dinheiro; a socializadora, uma vez que a família é um núcleo de procriação cuja função principal é a formação da personalidade e socialização primária da criança; e a ideológica, realizada através da transmissão de hábitos, costumes, ideias e padrões de comportamento, e da internalização das normas sociais e da ideologia.
Outra definição sobre as funções da família é dada por Luiz Carlos Osório (1996: 1922). O autor divide tais funções em biológicas, psicológicas e sociais, sendo que nenhuma delas pode ser estudada isoladamente, uma vez que estão intrinsecamente relacionadas e confundem-se uma com as outras. Segundo Osório, a função psicossocial baseia-se no afeto dado pelos pais aos filhos. Sabe-se que esse alimento afetivo é de fundamental importância para a sobrevivência do ser humano. Com a privação deste afeto, o ser humano não se desenvolve adequadamente. Entre as funções sociais da família, encontra-se a transmissão da cultura e a apropriação do exercício da cidadania.
A família moderna, nuclear, que conhecemos hoje, composta por pai, mãe e filhos, só se consolidou a partir do século XVIII. Foi neste momento que a família passou a se organizar em torno da criança e a erguer entre ela mesma e a sociedade o muro da vida privada. Até então, para as mulheres pobres, o filho constituía-se em um estorvo, uma vez que essa era obrigada a trabalhar. A única alternativa que dispunham era a de entregar seu filho para as amas, e muitas vezes não voltava para pegá-lo. Muitas dessas crianças morriam e outras eram abandonadas pelas amas em asilos próprios.
Com o surgimento do sistema de produção capitalista, percebe-se uma crescente preocupação com a infância, iniciando um movimento para mudar o conceito de amor materno. Acentua-se, ainda, a distinção na educação entre crianças pobres e ricas, onde os filhos de burgueses passam a frequentar os liceus e colégios de educação secundária, e os filhos da classe operária a escola primária. O início dos tempos modernos é também marcado por uma divisão da população em classes sociais, tendo-se que anteriormente existia uma certa mistura e proximidade tanto entre as idades, como entre as condições de vida.
Verifica-se que a evolução do conceito de infância e família é também acompanhada pela evolução do conceito de classe. A configuração do lar operário da classe trabalhadora, no início da industrialização, não se limitava às atividades domésticas, devido às condições precárias de sobrevivência. A família, para sua sobrevivência, dependia muito do trabalho das crianças de ambos os sexos, e a socialização era feita mais no espaço da fábrica do que na casa.
Verifica-se que a mortalidade infantil, decorrente do abandono dos pais, se tornara onerosa para o Estado. O valor econômico do ser humano passa a ter grande importância para o Estado. “Um Estado só é poderoso na medida em que é povoado […] em que braços que manufaturam e os que defendem são mais numerosos” (DIREROT, in BADINTER, 1985, p.154).
A mentalidade quanto ao dever da família para com seus filhos altera-se. À mãe passa a ser requerido os cuidados aos filhos, a quem deve amamentar e cuidar até que se tornem independentes.
É somente no século XX que a criança deixa de ser misturada aos adultos e de aprender a vida em contato com eles, sendo inventada, então, uma condição especial: a infância. Legalmente, a criança só passa a ser considerada pessoa na segunda metade do século XX. No final do século XIX, surge um tipo de família na qual existe uma maior igualdade entre os sexos, a natalidade é mais controlada e o número de casamentos e de separações aumenta, porém, ainda é forte a dupla moral sexual. Os casamentos passam a ser efetivados a partir de escolhas individuais e as mulheres começam a entrar no mercado de trabalho. A partir do fim do século XIX e começo do XX, a palavra “menor” aparece frequentemente no vocabulário jurídico brasileiro. Antes dessa época, o uso da palavra não era tão comum e tinha significado restrito.
A criança e os direitos adquiridos no século XX
A especificidade da criança e a necessidade de se formular seus direitos surgem no século XX, com os avanços das ciências médicas, jurídicas, pedagógicas, entre outras.
Em 1923, a Internacional Union for Child Welfare (organização não-governamental) estabelece os primeiros princípios dos Direitos da Criança. Tais princípios foram incorporados no ano seguinte pela Liga das Nações que, reunida em Genebra neste mesmo ano, constitui a Primeira Declaração dos Direitos da Criança:
- A criança tem o direito de se desenvolver de maneira normal, material e espiritualmente.
- A criança que tem fome deve ser alimentada; a criança doente deve ser tratada; a criança retardada deve ser encorajada; o órfão e o abandonado devem ser abrigados e protegidos.
- A criança deve ser preparada para ganhar sua vida e deve ser protegida contra todo tipo de exploração.
- A criança deve ser educada dentro do sentimento de que suas melhores qualidades devem ser postas a serviço de seus irmãos.
A ONU, por volta de 1946, visando concretizar ações em âmbito mundial em prol das crianças castigadas pela pobreza absoluta, cria um Fundo Internacional de Ajuda Emergencial à Infância Necessitada, sendo que em 11 de outubro de 1946, surge o Unicef-United Nations International Child Emergency Fund, com o objetivo de socorrer as crianças dos países pobres.
É criada em 1948, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, que aprova no mesmo ano, na data de 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, visando atingir todos os homens, valorizando a família e as aspirações sociais do povo e expressando uma ética garantindo a condição de verdadeiro cidadão a todos os homens.
Em 1959, as Nações Unidas proclamaram a Declaração Universal dos Direitos da Criança, onde a ONU reafirma a importância de se garantir a universidade, objetividade e igualdade na consideração de questões relativas aos direitos da criança, e enfatizando a importância de se intensificarem esforços nacionais para a promoção do respeito dos direitos da criança à sobrevivência, proteção, desenvolvimento e participação, sendo que o abuso de crianças deveria ser ativamente combatido atacando-se as suas causas.
Pela primeira vez na história, a criança passa a ser considerada prioridade absoluta e sujeito de Direito. Em 1989, a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos promove a Convenção da Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, sendo que até 1996 seus termos já haviam sido ratificados por 96% dos países, obrigando-se estes por lei a tomar as medidas adequadas determinadas pela convenção.
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças vem, desde então, procurando influenciar governantes de diversos países para observância dos direitos humanos da criança. Em 20 de novembro de 1989, através de 54 artigos, entre os quais, os que advogam o direito da criança de ser cuidada e manter contato com os pais, de preservar sua identidade; de ter liberdade de opinião, de informação, de pensamento, religião e associação; o direito de manter sua privacidade; o direito à saúde, à educação e à recreação (WILCOX & NAIMARK, 1991, p. 49-51). Em seu artigo 19, coloca que:
A criança deve ser protegida contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.
Com a convenção, o termo criança passa a ser adotado para qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade (artigo 1), cujos melhores interesses devem ser considerados em todas as situações (artigo 3). A convenção estabelece ainda, artigos que visam proteger os direitos da criança, entre eles: o direito à sobrevivência, a um padrão de saúde, a expressão de seus pontos de vista, a receber informações, a ser registrada logo após o nascimento, a ter um nome e uma nacionalidade, a ter o direito de brincar, de receber proteção contra exploração e abuso sexual.
Autor: Carlos Alexandre Constantino
Alem de ser um texto de fácil compreensão, esse texto me ajudou muito em algumas atividades do curso de formação de docentes, então para quem criou esse texto meus parabéns !!!
muito bom seu texto. bem resumido e esclarecedor.