A compreensão diagnóstica em Gestalt terapia com crianças
A compreensão diagnóstica em Gestalt terapia com crianças implica em uma descrição da singularidade existencial da criança como parte de um campo cuja configuração total também é singular, dos elementos que compõem esse campo, da forma como eles se relacionam, particularmente das relações cristalizadas em formas disfuncionais de busca de satisfação com a identificação dos mecanismos de evitação de contato predominantes e das funções de contato distorcidas e/ou bloqueadas, além do levantamento dos recursos para transformação presentes no campo (FRAZÃO 1996).
Cabe ressaltar que a compreensão diagnóstica não determina intervenções, mas com certeza aponta ao terapeuta os pontos de interrupção, as funções de contato bloqueadas, as percepções distorcidas e as figuras pouco nítidas, e isso serve de referencial para escolher as possíveis intervenções diante daquilo que é trazido pela criança ao longo do processo terapêutico. O manejo clínico da psicoterapia com crianças é muito difícil e delicado pela quantidade e relevância dos elementos envolvidos na situação. A maior aliada nesse momento é a construção de uma clara compreensão diagnóstica (SOARES 2001).
Ao longo da compreensão diagnóstica, há a perspectiva de que o terapeuta não detenha no sintoma; se a criança é uma totalidade, o sintoma é apenas uma forma dessa totalidade manifestar-se. A criança é uma totalidade que interage com seu meio, buscando de todas as formas a melhor configuração para seu estar no mundo. Seu sintoma não pode ser encarado como algo destacado de seu todo e destituído de qualquer função. Pelo contrário, ele se apresenta como a melhor forma possível encontrada pela criança como um todo de se ajustar criativamente a um meio muitas vezes adverso e pouco facilitador (AGUIAR 2005).
Tal compreensão diagnóstica dentro de uma perspectiva gestáltica dá-se através de uma metodologia fenomenológica de investigação e, necessariamente, sob um ponto de vista processual. Seu fio condutor é a relação estabelecida entre o psicoterapeuta, a criança, seus responsáveis e outros possíveis adultos envolvidos no processo. Seus instrumentos são as entrevistas iniciais, onde são colhidos dados que posteriormente são correlacionados como peças de um grande quebra-cabeça que se configura diante do terapeuta e que vai gradativamente ganhando sentido (FRAZÃO 1996).
As entrevistas iniciais são as primeiras sessões realizadas com os responsáveis, a criança e demais pessoas que possam estar envolvidas na situação, com vistas à elaboração de uma compreensão diagnóstica que será compartilhada posteriormente com cada um dos envolvidos no processo. As entrevistas iniciais em psicoterapia com crianças podem variar em um continuum que vai da entrevista livre até a completamente direta (PIMENTEL 2001).
Na entrevista livre, o psicoterapeuta interfere o menos possível, seja com perguntas ou com intervenções, deixando que o entrevistado discorra livremente acerca dos motivos pelos quais ele se encontra no espaço terapêutico e quaisquer outras informações que surjam em seu discurso – no caso dos adultos – ou brinque livremente – no caso da criança. Na entrevista diretiva, como a própria expressão sugere, o psicoterapeuta traz perguntas ou técnicas específicas que devem ser respondidas e aceitas pelo entrevistado, de forma que se alcance os objetivos da investigação (PRAGER 2000).
No que diz respeito às crianças, costuma-se trabalhar exclusivamente com entrevistas livres. A observação constante nos níveis – processo e conteúdo – é de fundamental importância para a compreensão diagnóstica e para a intervenção terapêutica, já que permite integrar aspectos verbais e não verbais do entrevistado de modo que possa entendê-lo efetivamente como uma totalidade (SOARES 2001).
Vale a pena ressaltar a importância da entrevista com os responsáveis, uma vez que os mesmos trazem expectativas, formas de pensar, de relacionar-se e de perceber situações. É necessário entender qual o pedido e de que forma acham que o psicoterapeuta pode satisfazer essa necessidade. É necessário compreender como esse pedido e essa expectativa de ajuda relacionam-se com a criança (PIMENTEL 2001).
Na medida em que o terapeuta possui uma perspectiva de campo, entende-se que o comportamento da criança é a figura que emerge do campo familiar total, e que para elaborar a compreensão diagnóstica é preciso relacioná-las aos outros elementos do campo. Na maioria das vezes, os pais comparecem à psicoterapia com a postura de alguém que leva algo para ser consertado, sem nenhuma percepção de suas implicações na situação. Muitos já chegam com um “pré-diagnóstico” fornecido pela escola ou demais profissionais da saúde. É preciso que o psicoterapeuta fique muito atento aos pré-diagnósticos (SOARES, 2001).
É fundamental que no contato inicial com os responsáveis, também seja dada a possibilidade deles serem informados e tirarem qualquer dúvida a respeito do que é psicoterapia, de seus limites e possibilidades, da forma como o trabalho se desenrola e de quais são as condições objetivas e subjetivas para que isso aconteça, até para que eles possam escolher se efetivamente querem ingressar em um trabalho como esse (SOUZA 1997).
Estabelecer e clarificar as condições objetivas e subjetivas que permeiam e permitem que o trabalho terapêutico aconteça é de crucial importância para esse processo inicial de escolha dos responsáveis, evitando uma série de transtornos e mal-entendidos posteriores ao longo do processo terapêutico. A esse conjunto de condições objetivas e subjetivas que permeiam o processo terapêutico desde o momento da compreensão diagnóstica dá-se o nome de contrato (LIMA FILHO 1995).
O contrato envolve regras e princípios não só objetivos, tais como preço da sessão, duração, frequência, horários, procedimentos com relação às faltas, feriados, férias, formas de pagamento, como também a disponibilidade para viver o trabalho terapêutico como um trabalho de parceria e não algo unilateral, particularmente no caso da psicoterapia com crianças, onde a participação dos responsáveis, segundo nossa visão de homem relacional e contextual, é de extrema importância para o desenrolar do processo (AGUIAR 2001).
O estabelecimento do contrato demanda um compromisso recíproco para a prestação e o recebimento de serviços e delimita o campo onde a relação terapêutica irá se construir, com suas regras e responsabilidades (GREENSPAN 1993).
O objetivo das entrevistas iniciais com a criança é, antes de tudo, estabelecer um vínculo de confiança. Nada é mais importante nesse momento, uma vez que sem ele dificilmente conseguirá desenvolver algum tipo de trabalho (RODRIGUES 2000).
Para que esse vínculo se estabeleça, é fundamental que o terapeuta adote uma postura de aceitação, acolhimento e respeito pela criança e sua forma de estar naquele momento, independente do que possa acontecer (ZORZI 1991).
Isto significa que não se pode estabelecer a priori a forma como a entrevista vai acontecer e precisa-se estar preparado para lidar com uma grande diversidade de situações, tais como a criança não querer entrar na sala, querer entrar somente acompanhada da mãe ou outro familiar, não querer brincar, sentar-se amuada em um canto, não querer sair no final da sessão, querer levar para casa um ou mais objetos da sala, não atender a nenhuma solicitação do psicoterapeuta, comportar-se como se não estivesse vendo e/ou ouvindo o psicoterapeuta, chorar, querer sair antes da sessão finalizar, sair da sala inúmeras vezes, vomitar, ter dor de barriga, quebrar coisas, ter crise de raiva, tentar machucar o psicoterapeuta ou se machucar (AGUIAR 2001).
Acredita-se de fato que a criança é um ser de potencialidades, que ela possui uma sabedoria organísmica que guia seus ajustamentos criativos, que suas fronteiras se encontram configuradas da melhor forma possível, que seu comportamento é a expressão de onde ela se encontra no momento (ZORZI 1991).
O pressuposto básico da psicoterapia com crianças privilegia a linguagem lúdica em detrimento da linguagem verbal. Esperar que uma criança fale sobre seus problemas e questões costuma ser algo bastante frustrante para o psicoterapeuta e uma ameaça para o vínculo com a criança, já que não pode fazer com que ela sinta-se exigida e pressionada a agir de uma forma que não lhe convém (AGUIAR 2001).
Greenspan (1993) descreve três momentos da entrevista com a criança: um momento inicial onde os principais objetivos são o estabelecimento de vínculo, verificar como a criança lida com situações novas e a ideia que possui a respeito do propósito da sessão, tanto em termos de conteúdo quanto de processo, realizando um mínimo de intervenções somente para facilitar o desenrolar da entrevista, e um momento final para verificar como a criança lida com términos e resumir questões importantes comunicadas por ela na sessão.
No final da sessão inicial ou no início da sessão seguinte, também é oferecido algumas pastas coloridas para que a criança escolha uma que ficará reservada caso ela queira guardar algo que foi realizado durante a sessão. Esta pasta terá o seu nome e será utilizada somente por ela nesse espaço terapêutico. O objetivo é servir como um pequeno espaço de privacidade onde a criança pode deixar algumas coisas que não queira levar consigo e que possam ficar guardadas em um lugar seguro durante o tempo que ela quiser, até o momento em que julgar necessário (ZANELLA 2004).
O momento de ir embora também pode ser de especial interesse para o psicoterapeuta observar a interação criança/responsável e como ambos lidam com despedidas. Considera-se fundamental intervir nesse momento, ainda que seja em uma primeira sessão, mostrando gentilmente que não há necessidade de uma despedida formal, que existem muitas formas de se despedir que não só com beijos e abraços, que geralmente nos despedimos do nosso encontro ainda dentro da sala e que, nesse espaço, fica a critério da criança a forma como vai ser feito (AGUIAR 2005).
O trabalho principal na compreensão diagnóstica é fundamentalmente baseado naquilo que o psicoterapeuta observa e nem tanto na história, nos sintomas ou na queixa dos responsáveis ou na escola. É observado como a história e os sintomas articulam-se com os movimentos, gestos, sons, maneirismos, expressões – todas essas coisas que, combinadas, formam uma criança única (FRAZÃO 1996).
Ao destacar a importância da entrevista inicialmente aos responsáveis sem a presença da criança, não consideram-se adequadas as sessões familiares em um momento inicial em razão do próprio momento de auto-regulação da família que formula demanda de psicoterapia à criança e não para si. Na grande maioria das vezes, tais famílias não possuem, em um primeiro momento, auto-suporte suficiente para se beneficiar desse tipo de entrevista (WINNICOTT 1984).
O critério básico para a inserção de uma entrevista familiar antes das sessões de devolução sempre diz respeito às necessidades da criança. Ao longo das entrevistas iniciais, se o psicoterapeuta percebe que existem questões que podem ser mais desenvolvidas e/ou classificadas com a presença dos demais membros da família, e a criança mostra-se receptiva e interessada, podemos propor uma entrevista familiar. A sessão familiar tem como objetivo prioritário proporcionar a oportunidade de observar a família funcionando como uma unidade sem fazer intervenções (AGUIAR 2001).
O objetivo é convidar a família a uma descrição de sua experiência no campo e não especificamente de promoção de awareness acerca de suas relações e implicações na problemática da criança. A condução da entrevista familiar diagnóstica dá-se a partir das instruções do psicoterapeuta para que a família realize algo em conjunto (YONTEF 1998).
Após um momento inicial que compreende uma sequência de duas a três sessões com os responsáveis pela criança, cinco a oito sessões com a própria criança e uma a duas sessões com quaisquer outras pessoas que por ventura possam contribuir para a compreensão diagnóstica, realiza-se o que costuma-se designar de entrevista devolutiva ou entrevista de devolução (GREENSPAN 1993).
É nesse momento que o terapeuta compartilha com quem o procurou e solicitou ajuda, bem como a criança em questão, a compreensão geral acerca do funcionamento da criança no mundo, articulando-a com a queixa inicial e os sintomas apresentados (PRAGER 2000).
Inicia-se segundo as categorias diagnósticas, organizando-as em totalidades cada vez mais amplas, elaborando hipóteses e correlacionando com o motivo da consulta, para conseguirmos responder às questões diagnósticas básicas e, com isso, montar um cenário a respeito da criança e suas manifestações que podem ser descritas em seus elementos e relações principais (AGUIAR 2001).
Nesse processo, é particularmente importante identificar elementos que se repetem e aqueles que se complementam, pois eles costumam ser bastante expressivos sobre a natureza das relações estabelecidas no campo. Tais informações devem ser organizadas e diferenciadas segundo o destinatário; deve-se verificar, a partir do que foi observado ao longo do momento inicial da psicoterapia, o que pode-se devolver em um primeiro momento e qual seria a melhor forma de se realizar tal tarefa (RIBEIRO 1991).
A observação acurada dos limites e recursos, tanto dos responsáveis quanto da criança, dá-nos uma medida prévia do funcionamento de suas fronteiras e, portanto, de até onde pode-se caminhar com as intervenções. Daí a importância do contato com os responsáveis no momento inicial da psicoterapia, sem pressa ou ansiedade por “ver logo a criança”, pois se entende que conhecê-los suficientemente é de crucial importância, tanto para reunir dados diagnósticos quanto para encaminhar posteriormente o processo terapêutico (PIMENTEL 2001).
A entrevista de devolução é um momento muito importante e delicado, pois é a partir dela que fica estabelecido o destino da criança e da família no espaço terapêutico (AGUIAR 2001).
Considera-se fundamental a realização da entrevista de devolução uma vez que o terapeuta é procurado e essas pessoas fazem um pedido, com uma pergunta, trouxeram uma solicitação. A entrevista de devolução também possui um importante papel no sentido de minimizar a ansiedade dos responsáveis, dissipando fantasias, esclarecendo fatos, compreendendo situações e atribuindo significados novos a velhas questões (PRAGER 2000).
A própria devolução de impressões diagnósticas mobiliza o surgimento de outras questões, que por sua vez, reconfiguram a compreensão diagnóstica, levando a realizar outras observações, que podem promover outras reconfigurações e assim por diante (PIMENTEL 2003).
Cabe ao psicoterapeuta não só realizar uma devolução para os responsáveis, como também realizá-la para a própria criança. A devolução para a criança não precisa ser realizada de modo formal (GREENSPAN 1993).
O que é extremamente importante neste momento é não perder de vista até onde vai a possibilidade da criança de ouvir nossas devoluções, tal qual observamos na realização com os adultos (PIMENTEL 2003).
Da mesma forma, a devolução precisa ser adequada à compreensão da criança e conter tópicos que o psicoterapeuta considere possíveis de serem abordados nesse momento ainda precoce do processo. Com a criança, vale os mesmos critérios utilizados com adultos: não se devolve tudo, mas aquilo que é possível de ser ouvido no momento. Naturalmente, ela vai fornecer pistas o tempo inteiro a respeito de sua possibilidade de ir ou não adiante nos assuntos levados e cabe ao psicoterapeuta ficar atento a isso (AGUIAR 2001).
Quando a criança simplesmente disser que não quer saber, isso deve ser respeitado, pois mostra que ela ainda não está disponível para suportar devoluções acerca de suas formas de estar e agir no mundo. O importante é que saiba que existe a possibilidade dela saber aquilo que o psicoterapeuta pensa e tem a intenção de discutir com seus responsáveis, e que a escolha do que fazer com isso está em suas mãos (RIBEIRO 1994).
Quando a outros profissionais que, por ventura, estejam envolvidos na situação da compreensão diagnóstica, caso seja necessário, o psicoterapeuta pode realizar uma pequena devolução focalizando somente aquilo que vier facilitar o contato desse profissional com a criança (PRAGER 2000).
Considera-se de crucial importância, sobretudo dentro de uma abordagem gestáltica que usualmente não se mostra muito afinada com tais demandas, abordar a questão do informe psicológico, uma vez que, particularmente, o psicoterapeuta de crianças costuma ser frequentemente solicitado a apresentar informações por escrito decorrentes de suas avaliações diagnósticas, independente de sua abordagem (GINGER 1995).
O informe psicológico consiste em um resumo por escrito das conclusões da compreensão diagnóstica inicial, incluindo as recomendações terapêuticas, e geralmente é endereçado a outros profissionais da área de saúde, que, por ventura, estejam trabalhando com a criança, tais como neurologistas, pediatras, fonoaudiólogos e psiquiatras, ou profissionais da área da educação, geralmente a partir de encaminhamentos iniciais oriundos do âmbito escolar (MARTINS 1995).
É fundamental que seja redigido em linguagem objetiva, e tal como a entrevista de devolução, adaptada ao destinatário. Isso significa relatar somente as informações necessárias relacionadas à demanda, solicitação ou petição, de tal forma que sempre possa ser compreendido com a objetividade e não possa ser usado em prejuízo da criança. Questões relativas ao sigilo terapêutico devem ser observadas com a finalidade de preservar tanto a criança quanto os familiares de exposições desnecessárias e o profissional deve ter condições de se responsabilizar por tudo o que foi relatado (PRAGER 2000).
Em resumo, em gestalt terapia há uma perspectiva própria de diagnóstico, pode-se afirmar que há uma discriminação criativa nessa questão (AGUIAR 2001).
Para mais informações sobre a elaboração de trabalhos acadêmicos, consulte as normas da ABNT.
Autor: André Henrique Oliani
Muito esclarecedor. Parabéns pelo trabalho. Esse artigo me trouxe uma visão bem esclarecedora sobre a Abordagem da Gestalt terapia.