A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: Fichamento completo
Descubra como a cultura popular se desenvolveu durante a Idade Média e no Renascimento! Saiba mais sobre a influência da cultura popular e os efeitos que ela teve na história.
Livro – A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento
FICHAMENTO
1 – No entanto, Rabelais ocupa um dos primeiros lugares entre os autores europeus. Belinski qualificou-o de gênio, de “Voltaire” do século XVI, e a sua obra como uma das melhores de todos os tempos. Os especialistas europeus costumam colocar Rabelais pela força de suas ideias e de sua arte, e por sua importância histórica imediatamente depois de Shakespeare, por vezes mesmo ao seu lado. Os românticos franceses, principalmente Chateaubriand e Hugo, classificaram-no entre os mais eminentes gênios da humanidade de todos os tempos e de todos os povos. Ele foi considerado, e ainda o é, não apenas como um escritor de primeiro plano, no sentido próprio do termo, mas também como um sábio e um profeta.
2 – Evidentemente, todos os julgamentos e apreciações desse tipo são muito relativos. Não pretendemos decidir se é justo colocar Rabelais ao lado de Shakespeare, acima ou abaixo de Cervantes, etc. Não resta dúvida de que o lugar histórico que ele ocupa entre os criadores da nova literatura europeia está indiscutivelmente ao lado de Dante, Boccaccio, Shakespeare e Cervantes. Rabelais influiu poderosamente não só nos destinos da literatura e da língua literária francesas, mas também na literatura mundial (provavelmente no mesmo grau que Cervantes). É também indubitável que foi o mais democrático dos modernos mestres da literatura. Para nós, entretanto, sua principal qualidade é de estar ligado mais profunda e estreitamente que os outros às fontes populares, fontes específicas (as que Michelet cita são com certeza bastante exatas, mas estão longe de serem exaustivas): essas fontes determinaram o conjunto de seu sistema de imagens, assim como sua concepção artística.
3 – E é justamente esse caráter popular peculiar e, poderíamos dizer, radical, de todas as imagens de Rabelais que explica que o seu futuro tenha sido tão excepcionalmente rico, como o sublinhou exatamente Michelet. É também esse caráter popular que explica “o aspecto não-literário” de Rabelais, isto é, sua resistência a ajustar-se aos cânones e regras da arte literária vigentes desde o século XVI até os nossos dias, independentemente das variações que o seu conteúdo tenha sofrido. Rabelais recusou esses moldes muito mais categoricamente do que Shakespeare ou Cervantes, os quais se limitaram a evitar os cânones clássicos mais ou menos estreitos de sua época. As imagens de Rabelais se distinguem por uma espécie de “caráter não-oficial”, indestrutível e categórico, de tal modo que não há dogmatismo, autoridade nem formalidade unilateral que possa harmonizar-se com as imagens rabelaisianas, decididamente hostis a toda perfeição definitiva, a toda estabilidade, a toda formalidade limitada, a toda operação e decisão circunscritas ao domínio do pensamento e à concepção do mundo.
4 – Daí a solidão particular de Rabelais nos séculos seguintes: impossível chegar a ele seguindo qualquer dos caminhos batidos que a criação artística e o pensamento ideológico da Europa burguesa adotaram nos quatro séculos que o separam de nós. E mesmo se nesse intervalo encontramos numerosos admiradores entusiastas de Rabelais, em nenhuma parte achamos claramente formulada uma compreensão total de sua obra.
5 – A única maneira de decifrar esses enigmas é empreender um estudo em profundidade das suas fontes populares. Se Rabelais nos aparece como um solitário, sem afinidades com outros grandes escritores dos últimos quatro séculos, podemos, pelo contrário, afirmar que, diante do rico acervo atualizado da literatura popular, são precisamente esses quatro séculos de evolução literária que se nos apresentam isolados e isentos de afinidades, enquanto que as imagens de Rabelais estão perfeitamente posicionadas dentro da evolução milenar da cultura popular.
6 – Claro, Rabelais é difícil. Em compensação, a sua obra, se convenientemente decifrada, permite iluminar a cultura cômica popular de vários milênios, da qual Rabelais foi o eminente porta-voz na literatura. Assim, o romance de Rabelais deve ser a chave dos esplêndidos santuários da obra cômica popular, que permaneceram quase incompreendidos e pouco explorados. Antes de abordá-los, é fundamental possuir essa chave.
7 – Como já observamos, o riso popular e suas formas constituem o campo menos estudado da criação popular. A concepção estreita do caráter popular e do folclore, nascida na época pré-romântica e concluída essencialmente por Herder e os românticos, exclui quase totalmente a cultura específica da praça pública e também o humor popular em toda a riqueza das suas manifestações. Nem mesmo posteriormente os especialistas do folclore e da história literária consideraram o humor do povo na praça pública como um objeto digno de estudo do ponto de vista cultural, histórico, folclórico ou literário. Entre as numerosas investigações científicas consagradas aos ritos, mitos e às obras populares líricas e épicas, o riso ocupa apenas um lugar modesto. Mesmo nessas condições, a natureza específica do riso popular aparece totalmente deformada, porque são-lhe aplicadas ideias e noções que lhe são alheias, uma vez que formaram sob o domínio da cultura e da estética burguesa dos tempos modernos. Isso nos permite afirmar, sem exagero, que a profunda originalidade da antiga cultura cômica popular não foi ainda revelada.
8 – As múltiplas manifestações dessa cultura podem subdividir-se em três grandes categorias:
- formas dos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas representadas nas praças públicas, etc.);
- obras cômicas verbais (inclusive as paródicas) de diversa natureza: orais e escritas, em latim ou em língua vulgar;
- diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos, blasões populares, etc.).
9 – Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que, sem levá-la em consideração, não se poderia compreender nem a consciência cultural da Idade Média nem a civilização renascentista. Ignorar ou subestimar o riso popular na Idade Média deforma também o quadro evolutivo histórico da cultura europeia nos séculos seguintes.
10 – A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no estágio anterior da civilização primitiva. No folclore dos povos primitivos encontra-se, paralelamente aos cultos sérios (por sua organização e seu tom), a existência de cultos cômicos, que convertiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia (“riso ritual”); paralelamente aos mitos sérios, mitos cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos. Há pouco tempo que os especialistas do folclore começaram a interessar-se pelos ritos e mitos cômicos.
11 – Não se trata naturalmente de ritos religiosos, no gênero, por exemplo, da liturgia cristã, à qual eles se relacionam por laços genéticos distantes. O princípio cômico que preside aos ritos do carnaval, liberta-os totalmente de qualquer dogmatismo religioso ou eclesiástico, do misticismo, da piedade, e eles são além disso completamente desprovidos de caráter mágico ou encantatório (não podem nem exigem nada). Ainda mais, certas formas carnavalescas são uma verdadeira paródia do culto religioso. Todas essas formas são decididamente exteriores à Igreja e à religião. Elas pertencem à esfera particular da vida cotidiana.
12 – Por seu caráter concreto e sensível e graças a um poderoso elemento de jogo, elas estão mais relacionadas às formas artísticas e animadas por imagens, ou seja, às formas do espetáculo teatral. E é verdade que as formas do espetáculo teatral na Idade Média se aproximavam na essência dos carnavais populares, dos quais constituíam até certo ponto uma parte. No entanto, o núcleo dessa cultura, isto é, o carnaval, não é de maneira alguma a forma puramente artística do espetáculo teatral e, de forma geral, não entra no domínio da arte. Ele se situa nas fronteiras entre a arte e a vida. Na realidade, é a própria vida apresentada com os elementos característicos da representação.
13 – A ideia do carnaval foi percebida e manifestou-se de maneira muito sensível nas saturnais romanas, experimentadas como um retorno efetivo e completo (embora provisório) ao país da idade de ouro. As tradições das saturnais permaneceram vivas no carnaval da Idade Média, que representou, com maior plenitude e pureza do que outras festas da mesma época, a ideia da renovação universal. Os outros festejos de tipo carnavalesco eram limitados e encarnavam a ideia do carnaval de uma forma menos plena e pura; no entanto, a ideia subsistia e era concebida como uma fuga provisória dos moldes da vida ordinária (isto é, oficial).
14 – Os bufões e bobos são as personagens características da cultura cômica da Idade Média. De certo modo, os veículos permanentes e consagrados do princípio carnavalesco na vida cotidiana (aquela que se desenrolava fora do carnaval). Os bufões e bobos, como por exemplo o bobo Triboulet, “que atuava na corte de Francisco I (e que figura também no romance de Rabelais), não eram atores que desempenhavam seu papel no palco (à semelhança dos comediantes que mais tarde interpretariam Arlequim, Hans Wurst, etc). Pelo contrário, eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. Como tais, encarnavam uma forma especial da vida, ao mesmo tempo real e ideal. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte (numa esfera intermediária), nem personagens excêntricos ou estúpidos nem atores cômicos.
15 – Em resumo, durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica do carnaval, seu modo particular de existência.
16 – O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva. A festa é a propriedade fundamental de todas as formas de ritos e espetáculos cômicos da Idade Média.
17 – Por outro lado, as festas oficiais da Idade Média – tanto as da Igreja como as do Estado feudal – não arrancavam o povo à ordem existente, não criavam essa segunda vida. Pelo contrário, apenas contribuíam para consagrar, sancionar o regime em vigor, para fortificá-lo. O elo com o tempo tornava-se puramente formal, as sucessões e crises ficavam totalmente relegadas ao passado. Na prática, a festa oficial olhava apenas para trás, para o passado de que se servia para consagrar a ordem social presente. A festa oficial, às vezes mesmo contra as suas intenções, tendia a consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes. A festa era o triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a aparência de uma verdade eterna, imutável e peremptória. Por isso o tom da festa oficial só podia ser o da seriedade sem falha, e o princípio cômico lhe era estranho. Assim, a festa oficial traía a verdadeira natureza da festa humana e desfigurava-a. No entanto, como o caráter autêntico desta era indestrutível, tinham que tolerá-la e às vezes até mesmo legalizá-la parcialmente nas formas exteriores e oficiais da festa e conceder-lhe um lugar na praça pública.
18 – Contrastando com a excepcional hierarquização do regime feudal, com sua extrema compartimentação em estados e corporações na vida diária, esse contato livre e familiar era vivido intensamente e constituía uma parte essencial da visão carnavalesca do mundo. O indivíduo parecia dotado de uma segunda vida que lhe permitia estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com os seus semelhantes. A alienação desaparecia provisoriamente. O homem tornava a si mesmo e sentia-se um ser humano entre seus semelhantes. O autêntico humanismo que caracterizava essas relações não era em absoluto fruto da imaginação ou do pensamento abstrato, mas experimentava-se concretamente nesse contato vivo, material e sensível. O ideal utópico e o real baseavam-se provisoriamente na percepção carnavalesca do mundo, única no gênero.
19 – Em consequência, essa eliminação provisória, ao mesmo tempo ideal e efetiva, das relações hierárquicas entre os indivíduos, criava na praça pública um tipo particular de comunicação, inconcebível em situações normais. Elaboravam-se formas especiais do vocabulário e do gesto da praça pública, francas e sem restrições, que aboliam toda a distância entre os indivíduos em comunicação, liberados das normas correntes da etiqueta e da decência. Isso produziu o aparecimento de uma linguagem carnavalesca típica, da qual encontraremos numerosas amostras em Rabelais.
20 – Explicaremos previamente a natureza complexa do riso carnavalesco. É, antes de mais nada, um riso festivo. Não é, portanto, uma reação individual diante de um ou outro fato “cômico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente à própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é “geral”; em segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente.
21 – Uma qualidade importante do riso na festa popular é que escarnece dos próprios burladores. O povo não se exclui do mundo em evolução. Também ele se sente incompleto; também ele renasce e se renova com a morte. Essa é uma das diferenças essenciais que separam o riso festivo popular do riso puramente satírico que apenas emprega o humor negativo, coloca-se fora do objeto aludido e opõe-se a ele; isso destrói a integridade do aspecto cômico do mundo, e então o risível (negativo) torna-se um fenômeno particular. Ao contrário, o riso popular ambivalente expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem.
22 – Rabelais foi o grande porta-voz do riso carnavalesco popular na literatura mundial. Sua obra permite-nos penetrar na natureza complexa e profunda desse riso.
23 – A literatura latina paródica ou semiparódica estava extremamente difundida. Possuímos uma quantidade considerável de manuscritos nos quais toda a ideologia oficial da igreja, todos os seus ritos são descritos do ponto de vista cômico. O riso atinge as camadas mais altas do pensamento e do culto religioso.
24 – Posteriormente, surgem dúplices paródicos de todos os elementos do culto e do dogma religioso. É o que se chama a paródia sacra, um dos fenômenos mais originais e ainda menos compreendidos da literatura medieval. Sabemos que existem numerosas liturgias paródicas (Liturgia dos beberrões, Liturgia dos jogadores, etc), paródias das leituras evangélicas, das orações, inclusive as mais sagradas (como o pai-nosso, a ave-maria, etc.), das litanias, dos hinos religiosos, dos salmos, assim como de diferentes sentenças do Evangelho, etc. Escreveram-se testamentos paródicos (“Testamento do porco”, “Testamento do burro”), epitáfios paródicos, decisões paródicas dos concílios, etc. Esse gênero literário quase infinito estava consagrado pela tradição e tolerado em certa medida pela Igreja. Uma parte era composta e existia sob a égide do “riso pascal” ou do “riso de Natal”, a outra (liturgias e orações paródicas) estava em relação direta com a “festa dos tolos” e era interpretada nessa ocasião.
25 – Além disso, existiam outras variedades da literatura cômica latina, como, por exemplo, as disputas e diálogos paródicos, as crônicas paródicas, etc. Seus autores deviam possuir seguramente um certo grau de instrução – em alguns casos muito elevado. Eram os ecos do riso dos carnavais públicos que repercutiam dentro dos muros dos mosteiros, universidades e colégios.
26 – A literatura cômica latina da Idade Média chegou à sua apoteose durante o apogeu do Renascimento, com o Elogio da loucura de Erasmo (uma das criações mais eminentes do riso carnavalesco na literatura mundial) e com as Cartas de homens obscuros (Epistole obscurorum virorum).
27 – Como resultado, a nova forma de comunicação produziu novas formas lingüísticas: gêneros inéditos, mudanças de sentido ou eliminação de certas formas desusadas, etc. É muito conhecida a existência de fenômenos similares na época atual. Por exemplo, quando duas pessoas criam vínculos de amizade, a distância que as separa diminui (estão em “pé de igualdade”) e as formas de comunicação verbal mudam completamente: tratam-se por tu, empregam diminutivos, às vezes mesmo apelidos, usam epítetos injuriosos que adquirem um tom afetuoso: podem chegar a fazer pouco uma da outra (se não existissem essas relações amistosas, apenas um “terceiro” poderia ser objeto dessas brincadeiras), dar palmadas nos ombros e mesmo no ventre (gesto carnavalesco), não necessitam polir a linguagem nem observar os tabus, podem usar, portanto, palavras e expressões inconvenientes, etc.
28 – O que nos interessa especialmente, são as grosserias blasfematórias dirigidas às divindades e que constituíam um elemento necessário dos cultos cômicos mais antigos. Essas blasfêmias eram ambivalentes: embora degradassem e mortificassem, simultaneamente regeneravam e renovavam. E são precisamente essas blasfêmias ambivalentes que determinaram o caráter verbal típico das grosserias na comunicação familiar carnavalesca. De fato, durante o carnaval essas grosserias mudavam consideravelmente de sentido: perdiam completamente seu sentido mágico e sua orientação prática específica, e adquiriam um caráter e profundidade intrínsecos e universais. Graças a essa transformação, os palavrões contribuíam para a criação de uma atmosfera de liberdade, e do aspecto cômico secundário do mundo.
29 – Os demais fenômenos verbais, como por exemplo as diversas formas de obscenidade, tiveram sorte semelhante. A linguagem familiar converteu-se, de uma certa forma, em um reservatório onde se acumularam as expressões verbais proibidas e eliminadas da comunicação oficial. Apesar de sua heterogeneidade original, essas palavras assimilaram a concepção carnavalesca do mundo, modificaram suas antigas funções, adquiriram um tom cômico geral e converteram-se, por assim dizer, nas centelhas da chama única do carnaval, convocada para renovar o mundo.
30 – Costuma-se assinalar a predominância excepcional que tem na obra de Rabelais o princípio da vida material e corporal: imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades naturais, e da vida sexual. São imagens exageradas e hipertrofiadas. Alguns batizaram Rabelais como o grande poeta “da carne” e “do ventre” (Victor Hugo, por exemplo). Outros o censuraram por seu “fisiologismo grosseiro”, seu “biologismo” e seu “naturalismo”, etc. Os demais autores do Renascimento (Boccaccio, Shakespeare, Cervantes) revelaram uma propensão análoga, embora menos acentuada. Alguns a interpretaram como uma “reabilitação da carne” típica da época, surgida como reação ao ascetismo medieval. Às vezes, outros quiseram ver nele uma manifestação típica do princípio burguês, isto é, do interesse material do “indivíduo econômico”, no seu aspecto privado e egoísta.
31 – As explicações desse tipo são apenas formas de modernização das imagens materiais e corporais da literatura do Renascimento; são-lhes atribuídas significações restritas e modificadas de acordo com o sentido que a “matéria”, o “corpo” e a “vida material” (comer, beber, necessidades naturais, etc.) adquiriram nas concepções dos séculos seguintes (sobretudo o século XIX).
32 – No realismo grotesco (isto é, no sistema de imagens da cultura cômica popular), o princípio material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É um conjunto alegre e benfazejo.
33 – O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo. O centro capital de todas essas imagens da vida corporal e material são a fertilidade, o crescimento e a superabundância. As manifestações da vida material e corporal não são atribuídas a um ser biológico isolado ou a um indivíduo “econômico” particular e egoísta, mas a uma espécie de corpo popular, coletivo e genérico (esclareceremos mais tarde o sentido dessas afirmações). A abundância e a universalidade determinam por sua vez o caráter alegre e festivo (não cotidiano) das imagens referentes à vida material e corporal. O princípio material e corporal e o princípio da festa, do banquete, da alegria, da “festança”. Esse aspecto subsiste consideravelmente na literatura e na arte do Renascimento, e sobretudo em Rabelais.
34 – O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato. É o caso, por exemplo, da Coena Cypriani (A Ceia de Ciprião) que já mencionamos, e de várias outras paródias latinas da Idade Média cujos autores em grande parte extraíram da Bíblia, dos Evangelhos e de outros textos sagrados, todos os detalhes materiais e corporais degradantes e terra-a-terra. Em certos diálogos cômicos muito populares na Idade Média como, por exemplo, os que mantêm Salomão e Marcul, há um contraponto entre as máximas salomônicas, expressas em um tom grave e elevado, e as máximas jocosas e pedestres do bufão Marcul que se referem todas premeditadamente ao mundo material (bebida, comida, digestão, vida sexual). É preciso esclarecer, também, que um dos procedimentos típicos da comicidade medieval consistia em transferir as cerimônias e ritos elevados ao plano material e corporal, assim faziam os bufões durante os torneios, as cerimônias de iniciação dos cavaleiros e em outras ocasiões solenes. Numerosas degradações da ideologia e do cerimonial cavaleiresco que aparecem no Dom Quixote, são inspiradas pela tradição do realismo grotesco.
35 – A gramática jocosa estava muito em voga no ambiente escolar e culto da Idade Média. Essa tradição, que remonta ao Vergilius Gramaticus, já mencionado, estende-se ao longo da Idade Média e do Renascimento e subsiste ainda hoje oralmente nas escolas, colégios e seminários religiosos da Europa Ocidental. Nessa gramática alegre, todas as categorias gramaticais, casos, formas verbais, etc, são transferidas ao plano material e corporal, sobretudo erótico.
36 – Não são apenas as paródias no sentido estrito do termo, mas também todas as outras formas do realismo grotesco que rebaixam, aproximam da terra e corporificam. Essa é a qualidade essencial desse realismo, que o separa das demais formas “nobres” da literatura e da arte medieval. O riso popular que organiza todas as formas do realismo grotesco, foi sempre ligado ao baixo material e corporal. O riso degrada e materializa.
37 – As degradações (paródicas e de outros tipos) são também características da literatura do Renascimento, que perpetua desta forma as melhores tradições da cultura cômica popular (de modo particularmente completo e profundo em Rabelais). Mas já nessa época o princípio material e corporal muda de sentido, torna-se cada vez mais restrito e seu naturalismo e seu caráter festivo atenuam-se. No entanto, esse processo está apenas começando nessa altura, como o demonstra claramente o exemplo do Dom Quixote.
38 – A linha principal das degradações paródicas conduz em Cervantes a uma reaproximação da terra, a uma comunhão com a força produtora e regeneradora da terra e do corpo. É a prolongação da linha grotesca. Mas, ao mesmo tempo, o princípio material e corporal já se empobreceu e se debilitou um pouco. Está num estado de crise e desdobramento originais, e as imagens da vida material e corporal começam a adquirir uma vida dupla.
39 – O grande ventre de Sancho Pança, seu apetite e sua sede são ainda fundamental e profundamente carnavalescos; sua inclinação para a abundância e a plenitude não tem ainda caráter egoísta e pessoal, é uma propensão para a abundância geral. Sancho é um descendente direto dos antigos demônios pançudos da fecundidade que podemos ver, por exemplo, nos célebres vasos coríntios. Nas imagens da bebida e da comida estão ainda vivas as ideias do banquete e da festa.
40 – Esse é o sentido primordial e carnavalesco da vida que aparece nas imagens materiais e corporais no romance de Cervantes. É precisamente esse sentido que eleva o estilo do seu realismo, seu universalismo e seu profundo utopismo popular.
41 – Na consciência artística e ideológica do Renascimento, essa ruptura não se consumou ainda por completo; o “baixo” material e corporal do realismo grotesco cumpre ainda suas funções unificadoras, degradantes, destronadoras, mas ao mesmo tempo regeneradoras. Não importa quão dispersos, desunidos e individualizados estivessem os corpos e as coisas “particulares”, o realismo do Renascimento não cortara ainda o cordão umbilical que os ligava ao ventre fecundo da terra e do povo. O corpo e as coisas individuais não coincidem ainda consigo mesmo, não são idênticos a si mesmos, como no realismo naturalista dos séculos posteriores; formam parte ainda do conjunto material e corporal do mundo em crescimento e ultrapassam, portanto, os limites do seu individualismo; o particular e o universal estão ainda fundidos numa unidade contraditória. A visão carnavalesca do mundo é a base profunda da literatura do Renascimento.
42 – É imprescindível conhecer o realismo grotesco para compreender o realismo do Renascimento, e outras numerosas manifestações dos períodos posteriores do realismo. O campo da literatura realista dos três últimos séculos está praticamente juncado de destroços do realismo grotesco, destroços que às vezes, apesar disso, são capazes de recuperar sua vitalidade. Na maioria dos casos, trata-se de imagens grotescas que perderam ou debilitaram seu pólo positivo, sua relação com um universo em evolução. É apenas através da compreensão do realismo grotesco que se pode entender o verdadeiro valor desses destroços ou dessas formas mais ou menos vivas.
43 – A atitude em relação ao tempo que está na base dessas formas, sua percepção e tomada de consciência, durante seu desenvolvimento no curso dos milênios, sofrem, como é natural, uma evolução e transformações substanciais. Nos períodos iniciais ou arcaicos do grotesco, o tempo aparece como uma simples justaposição (praticamente simultânea) das duas fases do desenvolvimento: começo e fim: inverno-primavera, morte-nascimento. Essas imagens ainda primitivas movem-se no círculo biocósmico do ciclo vital produtor da natureza e do homem. A sucessão das estações, a semeadura, a concepção, a morte e o crescimento são os componentes dessa vida produtora. A noção implícita do tempo contida nessas antiquíssimas imagens é a noção do tempo cíclico da vida natural e biológica.
44 – Mas, evidentemente, as imagens grotescas não permanecem nesse estágio primitivo. O sentimento do tempo e da sucessão das estações que lhes é próprio, amplia-se, aprofunda-se e abarca os fenômenos sociais e históricos; seu caráter cíclico é superado e eleva-se à concepção histórica do tempo. E então as imagens grotescas, com sua atitude fundamental diante da sucessão, com sua ambivalência, convertem-se no principal meio de expressão artística e ideológica do poderoso sentimento da história e da alternância histórica, que surge com excepcional vigor no Renascimento.
45 – Uma das tendências fundamentais da imagem grotesca do corpo consiste em exibir dois corpos em um: um que dá a vida e desaparece e outro que é concebido, produzido e lançado ao mundo. É sempre um corpo em estado de prenhez e parto, ou pelo menos pronto para conceber e ser fecundado, com um falo ou órgãos genitais exagerados. Do primeiro se desprende sempre, de uma forma ou outra, um corpo novo.
46 – Além disso, esse corpo aberto e incompleto (agonizante-nascente ou prestes a nascer) não está nitidamente delimitado do mundo: está misturado ao mundo, confundido com os animais e as coisas. É um corpo cósmico e representa o conjunto do mundo material e corporal, em todos os seus elementos. Nessa tendência, o corpo representa e encarna todo o universo material e corporal, concebido como o inferior absoluto, como um princípio que absorve e dá à luz, como um sepulcro e um seio corporais, como um campo semeado que começa a brotar.
47 – No domínio literário, a paródia medieval baseia-se completamente na concepção grotesca do corpo. Essa concepção organiza as imagens do corpo na massa considerável de lendas e obras referentes às “maravilhas da Índia” e do mar céltico. Serve também de base para as imagens corporais na imensa literatura de visões de além-túmulo, nas lendas de gigantes, na epopéia animal, fabliaux e Schwanke (bufonarias alemãs).
48 – Nas grosserias contemporâneas não resta quase mais nada desse sentido ambivalente e regenerador, a não ser a negação pura e simples, o cinismo e o mero insulto: dentro dos sistemas significantes e valorativos das novas línguas, essas expressões, estão totalmente isoladas (também o estão na organização do mundo): são fragmentos de uma língua estrangeira, na qual se podia outrora dizer alguma coisa, mas que agora só expressa insultos carentes de sentido. No entanto, seria absurdo e hipócrita negar que conservam um certo encanto, apesar de tudo (aliás, sem nenhuma conotação erótica). Parece dormir nelas a recordação confusa da verdade carnavalesca e de suas antigas ousadias. Não se colocou ainda adequadamente o grave problema de sua indestrutível vitalidade na língua.
49 – Na época de Rabelais, as grosserias e imprecações conservavam ainda, no domínio da língua popular de que saiu seu romance, a significação integral e sobretudo o seu pólo positivo e regenerador. Eram profundamente ligadas a todas as formas de degradação, herdadas do realismo grotesco, aos disfarces populares das festas e carnavais, às imagens das diabruras e dos infernos na literatura das peregrinações, das soties, etc. Por isso, essas expressões podiam desempenhar um papel primordial na sua obra.
50 – A idade preferida é a que está o mais longe possível do seio materno e do sepulcro, isto é, afastada ao máximo dos “umbrais” da vida individual. Coloca-se ênfase sobre a individualidade acabada e autônoma do corpo em questão. Mostram-se apenas os atos efetuados pelo corpo num mundo exterior, nos quais há fronteiras nítidas e destacadas que separam o corpo do mundo; os atos e processos intracorporais (absorção e necessidades naturais) não são mencionados. O corpo individual é representado sem nenhuma relação com o corpo popular que o produziu.
51 – Demos aqui a definição desses dois cânones na sua expressão pura e, por assim dizer, no seu limite. Na realidade histórica viva, esses cânones (mesmo o clássico) nunca foram estáticos nem imutáveis, mas encontravam-se em constante evolução, produzindo diferentes variedades históricas do clássico e do grotesco. Além disso, sempre houve entre os dois cânones muitas formas de interação: luta, influências recíprocas, entrecruzamentos e combinações. Isto é válido sobretudo para a época renascentista, como já observamos. Inclusive em Rabelais, que foi o porta-voz da concepção grotesca do corpo mais pura e consequente, existem elementos do cânon clássico, principalmente no episódio da educação de Gargantua por Ponocrates e no Télema. No quadro do nosso estudo, o mais importante é a diferença capital entre os dois cânones na sua expressão pura e sobre ela focalizaremos nossa atenção.
52 – O médico de construção das imagens grotescas procede de uma época muito antiga: encontramo-lo na mitologia e na arte arcaica de todos os povos, inclusive na arte pré-clássica dos gregos e romanos. Não desaparece tampouco na época clássica; excluído da arte oficial, continua vivendo e desenvolvendo-se em certos domínios “inferiores” não-canônicos: o das artes plásticas cômicas, sobretudo as miniaturas, como, por exemplo, as estatuetas de terracota que já mencionamos, as máscaras cômicas, silênios, demônios da fecundidade, estatuetas extremamente populares do disforme Tersites, etc.; nas pinturas cômicas de vasos, por exemplo, figuras de sósias cômicos (Hércules, Ulisses), cenas de comédias, etc.; e também nos vastos domínios da literatura cômica, relacionada de uma forma ou outra com as festas carnavalescas: no drama satírico, antiga comédia ática, mimos, etc.. Nos fins da antiguidade, o tipo de imagem grotesca atravessa uma fase de eclosão e renovação, e abarca quase todas as esferas da arte e da literatura.
53 – Os elementos essenciais do realismo formaram-se durante as três fases do grotesco antigo: arcaico, clássico e pós-antigo. É um erro considerar o grotesco antigo apenas como um “naturalismo grosseiro”, como às vezes se fez. Contudo, a fase antiga do realismo grotesco ultrapassa o quadro do nosso estudo. Nos capítulos seguintes, trataremos apenas dos fenômenos que influíram na obra de Rabelais.
54 – Essa descoberta surpreendeu os contemporâneos pelo jogo insólito, fantástico e livre das formas vegetais, animais e humanas que se confundiam e transformavam entre si. Não se distinguiam as fronteiras claras e inertes que dividem esses “reinos naturais” no quadro habitual do mundo: no grotesco, essas fronteiras são audaciosamente superadas. Tampouco se percebe a imobilidade habitual típica da pintura da realidade: o movimento deixa de ser o de formas completamente acabadas – vegetais e animais – num universo também totalmente acabado e estável; metamorfoseia-se em movimento interno da própria existência e exprime-se na transmutação de certas formas em outras, no eterno inacabamento da existência.
55 – Sente-se, nesse jogo ornamental, uma liberdade e uma leveza excepcional na fantasia, essa liberdade, aliás, é concebida como uma alegre ousadia, quase risonha. E não resta dúvida que Rafael e seus discípulos compreenderam e transmitiram com exatidão o tom alegre dessa decoração nova quando, pintando as galerias do Vaticano, imitaram o estilo grotesco.
56 – Mas a ampliação do vocábulo realizou-se muito lentamente, sem uma consciência teórica clara acerca da originalidade e da unidade do mundo grotesco. A primeira tentativa de análise teórica ou, para ser mais preciso, de simples descrição e apreciação do grotesco, foi a de Vasari que, baseando-se sobre um julgamento de Vitrúvio (arquiteto romano que estudou a arte da época de Augusto), emitiu uma opinião desfavorável sobre o grotesco.
57 – Na segunda metade do século XVIII, ocorrem mudanças fundamentais no campo literário e estético. Na Alemanha, discute-se ardorosamente a personagem Arlequim, que então figurava obrigatoriamente em todas as representações teatrais, mesmo as mais sérias. Gottsched e os demais representantes do classicismo pretendiam expulsar Arlequim da cena “séria e decente”, e o conseguiram por algum tempo. Lessing, pelo contrário, saiu em defesa de Arlequim.
58 – Ora, na mesma época em que apareceram essas obras, que pareciam orientadas para o passado, para as etapas anteriores do grotesco, este entrava numa nova fase de desenvolvimento. Na época pré-romântica e em princípios do Romantismo, assiste-se a uma ressurreição do grotesco, dotado então de um novo sentido. Ele serve agora para expressar uma visão do mundo subjetiva e individual, muito distante da visão popular e carnavalesca dos séculos precedentes (embora conserve alguns de seus elementos). A primeira e importante expressão do novo grotesco subjetivo é o romance de Sterne, Vida e opiniões de Tristram Shandy (tradução original da visão do mundo de Rabelais e Cervantes na linguagem subjetiva da época). Outra variedade do novo grotesco é o romance grotesco ou negro.
59 – O grotesco romântico foi um acontecimento notável na literatura mundial. Representou, em certo sentido, uma reação contra os cânones da época clássica e do século XVIII, responsável por tendências de uma seriedade unilateral e limitada: racionalismo sentencioso e estreito, autoritarismo do Estado e da lógica formal, aspiração ao perfeito, completo e unívoco, didatismo e utilitarismo dos filósofos iluministas, otimismo ingênuo ou banal, etc. O romantismo grotesco recusava tudo isso e apoiava-se principalmente em Shakespeare e Cervantes, que foram redescobertos e à luz dos quais se interpretava o grotesco da Idade Média. Sterne exerceu uma influência considerável sobre o romantismo, a tal ponto que pode ser considerado o seu iniciador.
60 – A influência direta das formas carnavalescas de espetáculos populares (já muito empobrecidos) era aparentemente fraca, pois predominavam as tradições literárias. É preciso, contudo, notar a influência muito importante do teatro popular (principalmente do teatro de marionetes) e de certas formas cômicas dos artistas de feira.
61 – O autor (através do narrador, o guarda-noturno) dá uma outra explicação original: investiga o mito da origem do riso; o riso foi enviado à terra pelo diabo, apareceu aos homens com a máscara da alegria e eles o acolheram com agrado. No entanto, mais tarde, o riso tira a máscara alegre e começa a refletir sobre o mundo e os homens com a crueldade da sátira.
62 – O grotesco, integrado à cultura popular, faz o mundo aproximar-se do homem, corporifica-o, reintegra-o por meio do corpo à vida corporal (diferentemente da aproximação romântica, totalmente abstrata e espiritual). No grotesco romântico, as imagens da vida material e corporal: beber, comer, satisfazer necessidades naturais, copular, parir, perdem quase completamente sua significação regeneradora e transformam-se em “vida inferior”. As imagens grotescas da cultura popular não procuram assustar o leitor, característica que compartilham com as obras-primas literárias do Renascimento. Nesse sentido, o romance de Rabelais é a expressão mais típica, não há vestígio de medo, a alegria percorre-o integralmente. Mais do que qualquer outro no mundo, o romance de Rabelais exclui o temor.
Outras particularidades do grotesco romântico denotam o enfraquecimento da força regeneradora do riso. O motivo da loucura, por exemplo, é característico de qualquer grotesco, uma vez que permite observar o mundo com um olhar diferente, não perturbado pelo ponto de vista “normal”, ou seja, pelas ideias e juízos comuns. Mas, no grotesco popular, a loucura é uma alegre paródia do espírito oficial, da gravidade unilateral, da “verdade” oficial. É uma loucura festiva. No grotesco romântico, porém, a loucura adquire os tons sombrios e trágicos do isolamento do indivíduo.
63 – O motivo da máscara é mais importante ainda. É o motivo mais complexo, mais carregado de sentido da cultura popular. A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos, a máscara encarna o princípio de jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos. O complexo simbolismo das máscaras é inesgotável.
64 – No grotesco romântico, a máscara, arrancada da unidade da visão popular e carnavalesca do mundo, empobrece-se e adquire várias outras significações alheias à sua natureza original: a máscara dissimula, encobre, engana, etc. Numa cultura popular organicamente integrada, a máscara não podia desempenhar essas funções.
65 – É preciso observar que, no grotesco romântico, a ambivalência se transforma habitualmente em um contraste estático brutal ou em uma antítese petrificada. Assim, por exemplo, o guarda-noturno que narra as Rondas noturnas tem como pai o diabo e como mãe uma santa canonizada; ele costuma rir nos templos e chorar nos bordéis. Dessa forma, a antiga ridicularização ritual da divindade e o riso no templo, típicos na Idade Média durante a festa dos loucos, convertem-se em princípios do século XIX no riso excêntrico de um original no interior de um templo.
66 – Esses são os elementos que caracterizam o grotesco romântico alemão. Estudaremos mais adiante sua variante romântica. Por agora, vamos nos deter um pouco sobre a teoria romântica do grotesco. No seu Discurso sobre a poesia (Gesprach uber die Poesie, 1800), Friedrich Schlegel examina o conceito de grotesco, que qualifica habitualmente de “arabesco”. Considera-o a “forma mais antiga da fantasia humana” e a “forma natural da poesia”. Encontra elementos grotescos em Shakespeare, Cervantes, Sterne e Jean-Paul. Para ele, trata-se de mescla fantástica dos elementos heterogêneos da realidade, a destruição da ordem e do regime habituais do mundo, a livre excentricidade das imagens e a “alternância do entusiasmo e da ironia”.
67 – Não separa o grotesco do riso: ele compreende que, sem o princípio cômico, o grotesco é impossível. Mas a sua concepção teórica só conhece o riso reduzido (humor), destituído de força regeneradora e renovadora positiva e, portanto, sombrio e sem alegria. Destaca o caráter melancólico do “humor destrutivo” e afirma que o diabo (na sua acepção romântica, claro) teria sido o maior dentre os humoristas.
68 – O aspecto essencial do grotesco é a deformidade. A estética do grotesco é em grande parte a estética do disforme. Mas, ao mesmo tempo. Hugo enfraquece o valor autônomo do grotesco, considerando-o como meio de contraste para a exaltação do sublime. O grotesco e o sublime completam-se mutuamente, sua unidade (que Shakespeare alcançou melhor que qualquer outro) produz a beleza autêntica que o clássico puro é incapaz de atingir.
69 – À guisa de conclusão, devemos destacar dois aspectos positivos: em primeiro lugar, os românticos procuraram as raízes populares do grotesco; em segundo lugar, não se limitaram a atribuir ao grotesco funções exclusivamente satíricas.
70 – Nesse aspecto, Fischer diverge de Hegel. Para ele, a própria essência e a força motriz do grotesco são risível e o cômico. “O grotesco é o cômico ou seu aspecto maravilhoso, é o cômico mitológico.” Essa definição tem uma certa profundidade.
71 – No século XX, assistimos a um novo e poderoso renascimento do grotesco, se bem que o termo de “renascimento” seja dificilmente aplicável a certas formas do grotesco ultramoderno.
72 – Kayser propôs-se a escrever uma teoria geral do grotesco, a revelar a própria essência do fenômeno. Na realidade, seu livro contém apenas a teoria (e um breve histórico) dos grotescos românticos e modernista, ou, para ser mais preciso, do segundo apenas, uma vez que o autor só vê o grotesco romântico através do prisma do grotesco modernista, razão pela qual ele o compreende e aprecia de uma forma um pouco desvirtuada. A teoria de Kayser é absolutamente inaplicável aos milênios de evolução anteriores ao Romantismo: fase arcaica, antiga (por exemplo, o drama satírico ou a comédia ática), Idade Média e Renascimento, integrados na cultura cômica popular. O autor nem sequer investiga essas manifestações (contenta-se com mencioná-las). Baseia suas conclusões e generalizações na análise do grotesco romântico e modernista, mas é a concepção modernista que determina sua interpretação. Tampouco compreende a verdadeira natureza do grotesco, inseparável do mundo da cultura cômica popular e da visão carnavalesca do mundo. No grotesco romântico, essa natureza está enfraquecida, empobrecida e em grande parte reinterpretada. Contudo, mesmo no grotesco romântico, os grandes temas originários do carnaval conservam reminiscências do poderoso conjunto a que pertenceram. Essa reminiscência desponta nas melhores obras do grotesco romântico (com uma força particular, embora de tipo diferente, em Sterne e Hoffmann). Essas obras são mais poderosas, profundas e alegres que a sua própria concepção subjetiva e filosófica do mundo. Mas Kayser ignora essas reminiscências e não as investiga. O grotesco modernista que dá o tom à sua concepção, olvida quase completamente essas reminiscências e interpreta de maneira extremamente formalista a herança carnavalesca dos temas e símbolos grotescos.
73 – Na realidade, o grotesco, inclusive o romântico, oferece a possibilidade de um mundo totalmente diferente, de uma ordem mundial distinta, de uma outra estrutura da vida. Franqueia os limites da unidade, da indiscutibilidade, da imobilidade fictícias (enganosas) do mundo existente. O grotesco, nascido da cultura cômica popular, tende sempre, de uma forma ou outra, a retornar ao país da idade de ouro de Saturno, e contém a possibilidade viva desse retorno.
74 – É preciso sublinhar ainda uma vez que o aspecto utópico (“a idade de ouro”) revela-se no grotesco pré-romântico, não sob a forma do pensamento abstrato ou das emoções internas, mas na realidade total do homem: pensamento, sentimentos e corpo. A participação do corpo num outro mundo possível, a faculdade de compreensão do corpo adquire uma importância capital para o grotesco.
75 – Para Kayser, ‘id’ representa algo mais existencialista do que freudiano; “id” é a força estranha que governa o mundo, os homens, suas vidas e seus atos. Kayser reduz vários motivos fundamentais do grotesco a uma única categoria, a força desconhecida que rege o mundo, representada, por exemplo, através do teatro de marionetes. Essa é também a sua concepção de loucura. Pressentimos sempre no louco algo que não lhe pertence, como se um espírito não-humano se tivesse introduzido na sua alma. Já mencionamos que o grotesco empregou de maneira radicalmente diferente o motivo da loucura: a fim de liberar-se da falsa “verdade deste mundo” e contemplá-lo com um olhar liberto dessa “verdade”.
76 – Kayser refere-se frequentemente à liberdade da fantasia característica do grotesco. Mas como poderia existir liberdade num mundo dominado pela força estranha do “id”? A concepção de Kayser contém uma contradição insuperável.
77 – Leonardo da Vinci disse: “Quando o homem espera com alegre impaciência o novo dia, a nova primavera, o ano novo, não pensa que deste modo aspira à sua própria morte”. Embora expressão numa forma não-grotesca, o aforismo está inspirado na concepção carnavalesca do mundo.
78 – O tema da morte concebida como renovação, a superposição da morte e do nascimento e as imagens de mortos alegres têm um papel fundamental no sistema de imagens de Rabelais, e por isso vamos analisá-las concretamente nos capítulos seguintes do nosso estudo.
79 – O problema do grotesco e de sua essência estética só pode ser corretamente colocado e resolvido dentro do âmbito da cultura popular da Idade Média e da literatura do Renascimento, e nesse sentido Rabelais é particularmente esclarecedor. Para compreender a profundidade, as múltiplas significações e a força dos diversos temas grotescos, é preciso fazê-lo do ponto de vista da unidade da cultura popular e da visão carnavalesca do mundo: fora desses elementos, os temas grotescos tornam-se unilaterais, débeis e anódinos.
80 – Não resta mais que um grotesco mutilado, efígie do demônio da fecundidade com o falo cortado e o ventre encolhido. É o que dá origem a todos os tipos estéreis do “característico”, a todos os tipos “profissionais” de advogados, mercadores, alcoviteiras, velhos e velhas, etc., simples máscaras de um realismo falsificado e degenerado. Esses tipos existiam também no realismo grotesco, mas não constituíam o quadro de toda a vida, eram apenas a parte agonizante da vida renascente. Na realidade, a nova concepção de realismo traça outras fronteiras entre os corpos e as coisas. Separa os corpos duplos e poda do realismo grotesco e folclórico as coisas que brotaram junto com o corpo, procura aperfeiçoar cada individualidade, isolando-a da totalidade final que já perdeu a antiga imagem, sem ter ainda encontrado uma nova. A compreensão do tempo, também, modificou-se consideravelmente.
81 – Infelizmente, toda essa imensa literatura, com raras exceções, é destituída de espírito teórico. Ela não visa estabelecer generalizações teóricas com alguma amplitude e valor de princípio. Daí que essa documentação quase infinita, minuciosamente recolhida e às vezes escrupulosamente estudada, não seja nem unificada nem interpretada. O que para nós é o mundo unitário da cultura cômica popular, aparece nessas obras como um aglomerado de curiosidades heterogêneas, impossível de incluir numa história “séria” da cultura e da literatura europeia, apesar das suas grandes proporções.
82 – Em primeiro lugar, Reich tenta reduzir toda a história da cultura cômica à do mimo, ou seja, de um único gênero cômico, ainda que muito característico dos fins da Antiguidade. Para o autor, o mimo é o centro e quase que o único veículo da cultura cômica. E é por isso que ele reduz à influência do mimo antigo todas as formas de festas populares assim como a literatura cômica da Idade Média. Partindo em busca da influência do mimo antigo, Reich ultrapassa os limites da cultura europeia. Tudo isso leva fatalmente a exageros e à ignorância de tudo o que não quiser entrar no leito de Procusto do mimo. É preciso esclarecer que às suas próprias concepções, pois a sua documentação é de tal forma abundante que o obriga a evadir-se do quadro estreito do mimo.
83 – Em segundo lugar, Reich moderniza e empobrece um pouco não só o riso mas também o princípio material e corporal que lhe está indissoluvelmente ligado. Na sua concepção, os aspectos positivos do princípio do riso – sua força liberadora e regeneradora – são abafados (embora o autor conheça perfeitamente a filosofia do riso antigo). O universalismo do riso popular, seu caráter utópico, seu valor de concepção do mundo tampouco foram compreendidos e apreciados na sua justa medida. Mas é sobretudo o princípio material e corporal que parece especialmente empobrecido: Reich o considera através do prisma do pensamento dos tempos modernos, abstrato e diferenciador, logo compreende-o de uma maneira estreita e quase naturalista.
84 – O segundo estudo que citaremos aqui é o livro de Konrad Burdâch, Reforma, Renascimento, Humanismo (reformation, Renaissance, Humanismus, Berlim, 1918). Esse breve estudo aproxima-se também de uma colocação do problema da cultura popular, mas de maneira completamente diferente da de Reich. Ele não fala jamais do princípio material e corporal. Seu único herói é a ideia-imagem do “renascimento”, da “renovação”, da “reforma”.
85 – Burdach segue o processo lento e progressivo da secularização da ideia-imagem do renascimento em Dante, nas ideias e atividades de Rienzi, em Petrarca, Boccaccio, etc.
86 – Ele explica o fato da seguinte maneira: “O Humanismo e o Renascimento não são os produtos do conhecimento (Produkte des Wissens). Não aparecem porque os sábios descobrem os monumentos perdidos da arte e da cultura antiga e aspiram a ressuscitá-las. O Humanismo e o Renascimento nasceram de uma expectativa e de uma aspiração apaixonadas e limitadas da época envelhecida, cuja alma, profundamente abalada, ansiava por uma nova juventude.”
87 – A melhor maneira de resolver o problema é transportar-se ao próprio terreno onde foi recolhida essa cultura, onde ela foi concentrada e interpretada literariamente, na etapa superior do Renascimento; em outras palavras, transportar-nos à obra de Rabelais. Ela é sem dúvida insubstituível, quando se trata de penetrar na essência mais profunda da cultura cômica popular. No mundo criado por ele, a unidade interna de todos os elementos heterogêneos revela-se com excepcional clareza, de tal forma que sua obra constitui uma enciclopédia da cultura popular.
Autor: Elideusa Mendes da Costa