Os contos de fadas podem ir além do encantamento
Uma afirmação que necessita de alguma reflexão, pois aparentemente parece meio incoerente, é a de que ouvir histórias ajuda a desenvolver a criatividade. Isto porque ouvir histórias pressupõe uma atitude passiva, sem oportunidade de contribuir com quem a está contando.
A justificativa é que esta atitude passiva é meramente aparente, porque o corpo se prostra perante o êxtase e o turbilhão de sensações que as histórias provocam.
As histórias transportam o ouvinte para outro mundo, permitindo que ele sinta as emoções que as sensações deste mundo despertam. Para saber mais sobre a importância das histórias, confira textos e histórias infantis.
As narrações não têm barreiras; elas conduzem a qualquer ponto geográfico, a qualquer época e utilizam diversos povos e costumes. E quando se esgotam os milhares de combinações destes elementos, a fantasia nos leva ao mundo dos duendes, fadas e bruxas, ao centro da terra ou às galáxias perdidas, enfim, às infinitas possibilidades criadas pela imaginação.
Este processo provoca a absorção de conhecimentos, aqueles oriundos do próprio contexto, do enredo e aqueles oriundos das emoções decorridas do texto. O primeiro grupo é comum a todos os ouvintes, o segundo é particular e característico para cada ouvinte.
Este cabedal de conhecimentos são referências que, agrupadas com outros adquiridos através de outras histórias, de processos similares, agregam-se à sua cultura e provocam combinações novas. O processo que leva à conclusão de um projeto novo e acabado é um exercício da criatividade.
Mas em que o desenvolvimento da criatividade é desejável para cidadãos comuns sem dons ou aspirações para seguirem uma carreira artística?
Nos dias de hoje, a criatividade, o senso crítico e a expressividade são mais desejáveis do que valores universalmente aceitos pelos educadores, como a disciplina e a atenção.
Quando falamos em fornecer referências, até em um clima que coloca a formação da criatividade como desejável, existe o perigo de estruturar demais este processo e torná-lo enfadonho, muito próximo do real. Portanto, conviver com um processo de desenvolvimento de criatividade em crianças significa aceitar os domínios da fantasia.
A fantasia está na liberdade da imaginação, em deixá-la flutuar por sua livre vontade, sem a colocação de freios, sem direção. É acreditar que o bem e o belo podem se manifestar de diversas formas e que têm significações próprias para cada um.
Quando lemos um conto de fadas, somos atingidos por uma áurea de fantasia que nos transporta para um mundo de imaginação, envolto em uma névoa que, embora indescritível, é suficiente para justificar um ambiente onde tudo é possível, não necessitando de muita explicação.
A verdade é que os contos de fadas são os preferidos especialmente pelas crianças pequenas, em uma faixa etária de até 6 ou 7 anos.
Porque?
Betelheim, no livro “A Psicanálise dos Contos de Fada”, explica como as situações presentes nos contos de fadas podem ser identificadas com as sensações, os temores que as crianças enfrentam e as situações novas que se apresentam que elas não sabem lidar.
Os predicados humanos que os personagens apresentam são sempre básicos e, portanto, de fácil compreensão. O maniqueísmo aparece como um fator que permite que essa compreensão aconteça. Os personagens são bons ou ruins, egoístas ou generosos, falsos ou leais, sem muita necessidade de explicações. Não existem “meias-palavras”, textos de “entrelinhas” ou situações que irão expor o verdadeiro caráter de uma pessoa. Desde o começo da história, cada um se apresenta da mesma maneira que realmente é e da forma como isso irá se desenrolar na trama. Isso é compreensível mesmo para crianças muito pequenas, de 3 ou 4 anos.
Interessante como Betelheim explica que os contos de fadas atuam muito melhor na formação de modelos simbólicos do que as narrações de fatos reais. Isso pode confundir os adultos, porque na maturidade, muito da vivência adquirida se dá através da observação de fatos e desfechos ocorridos com outras pessoas. Este arcabouço de referenciais pode orientar que atitude tomar em uma situação nova, nunca antes vivida por aquela pessoa.
Mas o que acontece com as crianças é que elas não conseguem compreender uma série de símbolos e suas prováveis significações presentes em uma história real. A imaturidade de pensamento da criança se apresenta por um conjunto de impressões mal ordenadas, que frequentemente não possuem elos de ligações entre si, e estas lacunas são preenchidas por fantasias alimentadas pela sua imaginação. Estas impressões são maniqueístas e básicas: são indicadores de satisfações, de dor, de medo.
E aí que encontramos a identidade de elementos entre aqueles personagens formatados de forma elementar e suas ações, igualmente objetivas, e as emoções da criança. A maneira pela qual uma criança pode botar alguma ordem na visão de mundo é classificando tudo de forma maniqueísta.
Assim, se para nós é impossível conceber que, como João e Maria, tenham sido mandados embora de casa pelos pais que não podem sustentá-los, para a criança é absolutamente compreensível que esse desligamento da proteção de seus pais e do aconchego de sua casa é uma ameaça que se concretizará quando ela precisar ir para a escola, por exemplo.
Outra coisa tranquilizadora dos contos de fadas é que acontecem em tempos e lugares indiscriminados, longínquos, onde se pode ir e voltar sem qualquer comprometimento. Assim, as histórias sempre iniciam com um cordial e descomprometedor convite: Era uma vez… No tempo das fadas… Em um reinado bem distante…
Interessante, também, é que os personagens, além de não terem nuances de personalidade e comportamento, raramente têm nomes: são os príncipes, as reais, as bruxas, a bela princesinha, a madrasta etc. Isso auxilia para que o símbolo que estes personagens encerram tenha os mesmos significados em diferentes histórias.
As histórias de fadas atuam então no emocional da criança e sua contribuição está em auxiliá-la a tomar decisões para a sua independência, acomodar os seus sentimentos de ambivalência e lhe dar esperanças de que seus esforços poderão conduzi-la a um final feliz.
Enfim, os contos de fadas dão esperanças de que “as pessoas podem viver felizes para sempre” e que, como diz Betelheim, se todos os males do mundo são representados pela bruxa má, ótimo, pois podemos simplesmente queimá-la!
Que bom que seja assim, nós contadores ingênuos e românticos poderemos continuar conversando com gnomos, reverenciando princesas e rainhas, viajando na garupa de lindos pégasos alados, e nos encantando com fadas e magos, envoltos em estrelinhas amarelas e brilhantes. Certos de que, além de encantar, estaremos exercendo um papel importante na vida de cada um dos pequeninos que sempre temos, por força da “profissão”, ao nosso redor!
Autor: Vania Dohme
Sobre o Autor: pesquisadora em Educação com foco no uso do lúdico nas novas metodologias educacionais, capacitadora em ludoeducação e autora dos livros: “32 IDÉIAS DIVERTIDAS QUE AUXILIAM O APRENDIZADO” e “TÉCNICAS DE CONTAR HISTÓRIAS”.
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Amei o texto. É tudo isso mesmo. Acredito em contos de fadas desde criança. Passei a vida inteira, (tenho 58 anos), com crianças ao meu redor. Sou a fundafora do Movimento REI em Fortaleza e através desse Movimento, ajudo crianças e adolescentes a sonhar, ser artistas, brincar, sortir e viver com alegria e pureza sua infância e adolescência. Parabéns pelo belo trabalho. #BruxaDoBem