A avaliação da Educação Física em debate
Resumo
É uma resposta ao artigo Avaliação da Educação Física em debate: implicações para a subárea pedagógica e sociocultural, publicado neste número. Apresenta uma síntese do trabalho comentado pelos autores, contesta algumas das análises feitas e traz esclarecimentos que podem subsidiar os debates sobre a pós-graduação em Educação Física.
Introdução
As avaliações da Capes são, antes de tudo, processos de coleta e julgamento de informações para a tomada de decisões e não podem reduzir-se apenas ao conceito final dos programas. O conjunto de informações deve ser analisado e interpretado a fim de orientar a formulação de políticas e ações estratégicas para o desenvolvimento de um sistema de pós-graduação que contribua efetivamente para o desenvolvimento da sociedade. Além disso, a implementação da avaliação, de políticas, de programas estratégicos e outras ações devem contar com o efetivo envolvimento dos diversos agentes que integram o sistema de pós-graduação.
Sem esse envolvimento, que pressupõe transparência e debate, há o risco dessas ações serem inócuas. São essas as premissas que têm norteado as diversas ações da Capes em geral e da comissão de avaliação da área de Educação Física em particular, as quais têm sido bastante enfatizadas desde a gestão do professor Dr. Go Tani como representante. Nesse contexto é que foi publicado o artigo de R B P G, v. 1, n. 2, p. 195-200, nov. 2004. debates 195
Educação Física: indicadores objetivos dos desafios e das perspectivas (Kokubun, 2003) em um número dedicado ao tema pós-graduação da Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Aquele número da revista consiste, certamente, em um importante marco para o debate da pós-graduação na área, na medida em que contou com valiosas contribuições de pesquisadores que expressaram seus pontos de vista sobre o sistema. Os dados contidos no artigo foram amplamente divulgados em eventos científicos e em reuniões da área e objeto de acalorados e enriquecedores debates. Os professores Betti, Carvalho, Daolio e Pires, em diversas oportunidades, apresentaram suas inquietações com relação àquele artigo e, atendendo à provocação desse representante, decidiram escrever uma crítica a oito mãos, cuja versão final é apresentada neste número da Revista Brasileira de Pós-Graduação.
Acompanhei a elaboração do manuscrito, quer prestando esclarecimentos sobre o conteúdo do artigo original, quer apresentando sugestões, quer rebatendo críticas que foram formuladas ou apresentando outras. O artigo reflete um debate recorrente na Educação Física que contrapõe pesquisas que se valem dos conhecimentos oriundos das ciências naturais (às quais se convencionou denominar de Biodinâmica) àquelas que buscam seu alicerce nas ciências sociais e humanidades (denominada de socioculturais). Betti, Carvalho, Daolio e Pires defendem que os critérios de avaliação utilizados na grande área de Saúde não atendem às especificidades da subárea sociocultural.
O artigo original
O artigo em debate (Kokubun, 2003) procurou analisar e interpretar dados sobre a pós-graduação na área e sem pretender esgotar o tema, levantou questões que pudessem servir como ponto de partida para reflexões sobre os rumos da pós-graduação em Educação Física. A pós-graduação foi apresentada como um sistema inter-relacionado com a formação de recursos humanos para a sociedade, o ensino superior e a pesquisa. Os debates recentes sobre pós-graduação têm enfatizado a formação de pesquisadores que ensinam, em vez de professores que pesquisam. O envolvimento do mestrando e doutorando em um sólido sistema de pesquisa e desenvolvimento potencializaria o ciclo de produção de conhecimentos, além de proporcionar-lhes as experiências necessárias para sua capacitação como pesquisador e como formador de recursos humanos críticos, reflexivos e inovadores. Por esse motivo, entendo que a pesquisa é um requisito necessário para a implantação da pós-graduação e não o inverso.
Dados de formação de mestres e doutores foram utilizados para estimar a demanda de docentes titulados no ensino superior de graduação. Elas apontaram a possibilidade de haver equilíbrio entre essa demanda com a oferta até o final da década de 10 deste século. O artigo alertou para a necessidade de definir-se, com a maior brevidade possível, o perfil do pós-graduado: se apenas voltado para o magistério superior ou considerar a sua atuação para outros segmentos da sociedade.
Vinte e seis por cento dos NRD6, que atuavam na pós-graduação em Educação Física brasileira em 2000, tiveram sua formação de doutorado na própria área no exterior e 17% no Brasil. Outros 16% obtiveram o título no País em Ciências Humanas e 15% em Ciências Biológicas, o que foi interpretado como uma formação exógena, o que dificultaria o estabelecimento de uma identidade epistemológica, um problema frequentemente levantado por pesquisadores da área de Educação Física.
Valemo-nos do trabalho realizado por Guimarães e Gomes (2000) para avaliar a capacidade instalada de pesquisa na área no País. Dados disponíveis na base dos grupos de pesquisa do CNPq revelaram uma proporção adequada entre o número de grupos de pesquisas atuantes e o de programas existentes de pós-graduação, comparativamente a todas as áreas de conhecimento no País. Entretanto, a maioria das IES apresentavam número de grupos de pesquisas insuficientes para dar sustentação a programas de pós-graduação. A comparação de dados de produção intelectual da Educação Física com os de outras grandes áreas do conhecimento indicou:
- dramática redução na proporção de artigos em periódicos com índice de impacto entre 1996 e 2000;
- que 34% dos docentes NRD6 da pós-graduação em Educação Física nada publicaram entre 1998 e 2000;
- proporção reduzida de trabalhos publicados internacionalmente, mesmo quando as bases de comparação eram a grande área de Ciências Sociais e Aplicadas, Humanidades ou Letras/Linguística/Artes.
- o artigo apontou como falso o argumento de que, trabalhos que têm relações com aspectos socioculturais seriam predominantemente disseminados por meio de livros e capítulos, já que a proporção desses trabalhos nas grandes áreas de Humanidades, Ciências Sociais Aplicadas, Lingüística e Artes era menor do que aqueles publicados como artigos em periódicos.
As críticas de Betti, Carvalho, Daolio e Pires
Betti, Carvalho, Daolio e Pires (2005) apresentam uma série de questionamentos ao artigo original e outros temas diretamente relacionados com a avaliação dos programas de pós-graduação, sobretudo para a subárea sociocultural. Certamente o fazem, como explicitam em seu trabalho, com o intuito de contribuir com o debate sobre a política de avaliação da pós-graduação. Muitos dos aspectos apontados têm sido discutidos nas várias instâncias da Capes e outros órgãos envolvidos com a pós-graduação.
Entretanto, considero pertinente tecer comentários a alguns dos questionamentos apresentados pelos autores, da mesma forma que somente alguns dos aspectos tratados no artigo original foram por eles criticados. Os autores criticam o uso excessivo, ou exclusivo, de números para a argumentação, sugerindo que outras leituras podem ser realizadas. Concordo que números não têm alcance ilimitado e podem ser desprovidos de sentido sem a devida interpretação. Por outro lado, palavras também podem distorcer o sentido que poderia ser dado aos números. Entretanto, é preferível utilizá-los quando possível para evitar algumas armadilhas do relativismo. Sob o pretexto de que números podem ter outra leitura, os autores apontam as premissas que norteariam o artigo em debate. Ao discutirem a primeira das premissas que eles identificaram no meu artigo, segundo a qual a capacitação de recursos humanos para a produção de conhecimentos seria colocada em segundo plano, os autores deixam de lado a leitura dos números e apresentam uma série de argumentos que concordam com os meus argumentos.
Na Educação Física brasileira, a pós-graduação tem sido considerada primordialmente um meio para formação de recursos humanos para o magistério superior. Esta ênfase tem obscurecido o outro aspecto, talvez mais importante, da função da pós-graduação que é o de capacitar recursos humanos qualificados para a produção de conhecimentos relevantes e inovadores para o desenvolvimento da área.
Para os autores, os cursos de pós-graduação continuarão a ser procurados por candidatos que buscam melhores colocações no ensino superior. Além disso, questionam a possibilidade dos egressos engajarem-se efetivamente com a produção de conhecimentos. Ora, isso suscita uma questão fundamental: qual é o perfil desejável do egresso? Aquele que busca a titulação como fim em si mesmo e que quando produz o conhecimento o faz por exigência trabalhista, ou outro que faz da titulação e do ensino, uma consequência de sua inserção na produção do conhecimento?
Aceitar o primeiro perfil é certamente admitir a incapacidade do sistema de pós-graduação em transformar pessoas. Temos sim que admitir que a solução ideal é possível, e nos esforçarmos para que isso se concretize. Uma vez aceita essa premissa, o sistema de avaliação da pós-graduação deve ser capaz de identificar se ela está efetivando-se. A segunda premissa questionada pelos autores diz respeito à demanda por docentes titulados no ensino superior.
O tempo necessário para equilibrar a oferta e demanda de titulados no ensino superior foi estimado com base na obrigatoriedade imposta pela LDB de manter pelo menos um terço de titulados no seu corpo docente. Entretanto, alertamos que essa estimativa necessitava ser vista com cautela e que mais dados seriam necessários para o correto dimensionamento. Argumentam os autores, com o que concordo, que o ideal seria ter a totalidade dos docentes em ensino superior com doutorado.
A partir da projeção acima, apontamos a possibilidade do mercado do ensino superior saturar-se ainda nesta década, razão pela qual, necessitaríamos repensar no perfil do egresso. Os autores apontam, e com isso concordo, que a questão do titulado para atuar em outros segmentos da sociedade não é necessariamente vinculada. Entretanto, nossas opiniões convergem quanto à necessidade de pensarmos em egressos do sistema de pós-graduação que tenham condições de atuar no segmento não acadêmico.
Betti, Carvalho, Daolio e Pires (2005) apresentaram críticas às premissas que fundamentaram a comparação da proporção do tipo de publicações da área de Educação Física com as grandes áreas que compõem a Capes. Para eles o desejável seria comparar uma área contra outra, por exemplo Educação ou Medicina. Ora, os próprios autores fornecem subsídios que suportam a legitimidade desse tipo de comparação, ao argumentarem por exemplo que é preciso compreender que, na área de Humanas. ou tal não parece ocorrer nas Biológicas ou Exatas. Escrevi ainda:
Freqüentemente tem-se argumentado que a produção de algumas subáreas da Educação Física, notadamente as relacionadas com as humanidades e educação, ocorreria predominantemente em forma de livros e capítulos de livros.
Após apontar que o número de publicações de artigos em periódicos na Educação Física era de 38% e que em Ciências Sociais e Aplicadas, Humanidades e Lingüística e Artes essa proporção estava entre 60% a 70%, concluo que é falso o argumento de que a produção em temas Sócio-Culturais (sic) e Pedagógicos deveria ser veiculado predominantemente em forma de livros e capítulos. Os autores constatam, a partir dos dados, que a proporção de livros e capítulos publicados em Educação Física é semelhante àquelas encontradas naquelas grandes áreas (16% em Humanidades note que realizam a comparação que antes era considerada inadequada: área x grande área) e concluem não nos parece excessiva a proporção de livros/capítulos publicados na Educação Física. Ora, a afirmação que fiz refere-se ao argumento de que nessas áreas não foi constatada a predominância de publicações de livros e capítulos. Para aqueles que gostam de números, 16% não é sinônimo de predominância. Os autores detectam, nos dados apresentados, a existência de um grande número de trabalhos em eventos científicos e que consideram importantes para a existência de uma comunidade acadêmica. A relevância dos eventos científicos é inquestionável. Ocorre que a comparação de dados com outras grandes áreas foi pertinente para sustentar a relevância de publicações de livros e capítulos.
Entretanto, ao defenderem a veiculação de trabalhos em congressos, esse mesmo tipo de comparação não foi considerado. O mesmo equívoco cometem os autores ao defenderem a baixa internacionalização das publicações (5% em Educação Física contra 11% a 13% nas grandes áreas de Humanas, Ciências Sociais e Aplicadas e Artes/Letras/Lingüística). Ao interpretarem esses números, Betti, Carvalho, Daolio e Pires (2005) argumentam que esses dados confirmam que, às vezes, a pesquisa pedagógica e sociocultural produz trabalho de natureza local.
Minha constatação com base nesses números foi: Esse panorama da produção intelectual da Educação Física, comparativamente às demais áreas do conhecimento ilustram a grande deficiência que vem, há anos, sendo apontada como o maior desafio da área. Não foi feita, portanto, nenhuma distinção entre as diferentes subáreas da Educação Física. A baixa produtividade e o baixo grau de internacionalização foram apontados como problema crônico da área.
Considerações finais
O artigo apresentado por Betti, Carvalho, Daolio e Pires (2005) é uma resposta ao convite ao debate sobre os rumos da pós-graduação na área de Educação Física. A construção de uma área de conhecimento, além do desenvolvimento de projetos bem elaborados que atendam ao rigor exigido pelo universo acadêmico, deve passar por debates acerca do seu significado e relevância para a sociedade. A área de Educação Física, assim como muitas outras áreas do conhecimento, sobretudo aquelas que envolvem algum tipo de intervenção no homem e na sociedade, é plural e multifacetada.
Nesse contexto, temos que admitir a existência de diferentes abordagens e possibilitar um diálogo franco e aberto entre os diversos interlocutores. Convém mencionar que o artigo original que desencadeou essa discussão foi elaborado com dados relativos ao final do triênio 1998-2000. O triênio seguinte, cuja avaliação foi concluída em 2004, foi marcado por intenso envolvimento dos programas no processo de avaliação da Capes e que culminou com a criação de um Fórum de Coordenadores. Os dados da avaliação no período 2001-2003 revelaram o enorme crescimento da produtividade docente, que duplicou entre 2000 e 2003 (de 1,9 para 3,8 autorias por ano por NRD6), sobretudo em artigos completos, além de indicar um maior grau de internacionalização (de 4% para 20% dos docentes em NRD6 publicaram pelo menos um artigo Qualis Internacional A ou B por ano).
Além disso, a comissão de avaliação, em seu documento de área, aponta explicitamente a valorização da produção intelectual proveniente das subáreas socioculturais como um desafio a ser enfrentado. Está em curso, um estudo para a elaboração de um Qualis Livro, com ampla participação dos programas de pós-graduação. O modelo de avaliação da pós-graduação da Capes tem o grande mérito de fornecer parâmetros desafiadores aos programas, introduzindo uma dinâmica necessária para a evolução das diferentes áreas.
Ela pauta-se, entre outras, na premissa de que é preferível correr o risco de errar ao realizar avaliações do que não fazê-las. Também reconhece que nenhum sistema de avaliação é perfeito, devendo ser constantemente revisto e aperfeiçoado. A transparência e o debate em anverso é certamente o caminho adequado para esse aperfeiçoamento. Tudo indica que, essas premissas estão corretas, se consideramos o sucesso do sistema de pós-graduação stricto sensu no País.
Referências
BETTI, M.; CARVALHO, Y. M.; DAOLIO, J.; PIRES, G. D. L. A avaliação da pós-graduação em Educação Física em debate, 2005. GUIMARÃES, J. A.; GOMES, J. Pós-graduação 2001: Desempenho, perspectivas, desafios e riscos. Infocapes. v. 8, n. 4, p. 6-29, 2000. KOKUBUN, E. Pós-graduação em educação física no Brasil: indicadores objetivos dos desafios e das perspectivas. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 24, n. 2, p. 9-26, 2003.
R B P G, v. 1, n. 2, p. 195-200, nov. 2004.
Eduardo Kokubun
UNESP – Rio Claro
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